Com a verdade me enganas.
O Diabo está nos detalhes. Num país onde a confiança nas instituições é das mais baixas da Europa (e com boa razão para sê-lo), ninguém teve dificuldade em acreditar nas notícias de que o Governo tinha ignorado o resultado de um concurso europeu para a nova Procuradoria Europeia, nomeando antes alguém da sua confiança política.
Esta semana, o Governo contra-atacou. Numa audição na Assembleia da República e num comunicado onde desenrola uma longa "cronologia do processo de selecção para procurador europeu nacional", a ministra da Justiça jurou que não houve interferência política no processo e que tudo decorreu com lisura e segundo as regras.
Quem não tenha seguido o caso ao detalhe ficará com dúvidas acerca da verdade e acabará formando opinião segundo os seus (pre)conceitos de origem. Se à partida desconfia do Governo, achará que o processo de seleção foi uma golpada para punir uma magistrada incómoda. Se apoia o Governo, dirá que esta polémica foi uma "inventona" da oposição, que lançou suspeições sobre um processo limpo e legal.
Ou seja, uma questão substantiva acaba reduzida a uma guerra de perceções alimentada pelas máquinas de comunicação dos dois lados. Ora, isto é tóxico para a democracia porque autoriza a noção perigosíssima de que cada um pode ter "a sua verdade", completamente independente e separada da verdade dos outros. Os partidos e os Governos tornaram-se exímios nestas artes de massajar a realidade e fazer leituras, digamos, altamente editadas dos factos – seja para convencer o povo da sua narrativa seja, no mínimo, para semear a dúvida que depois permite a cada um manter-se convicto na sua trincheira, armado de umas frases de ataque ao campo oposto.
Os factos importam – e neste caso obrigam a explicar, ponto por ponto, o processo de seleção do procurador português na nova Procuradoria Europeia. Vai ser maçador e peço desculpa. Quem queira passar diretamente para a reflexão, que é o que importa, sobre o impacto que estas campanhas têm na qualidade da democracia pode saltar os próximos parágrafos.
O que se passou
Tudo o que vem no comunicado do Governo com a tal longa cronologia do processo de seleção é verdade, tanto quanto é possível saber. O problema é que não é toda a verdade. Vamos a isto:
A Procuradoria Europeia foi criada ao abrigo do mecanismo europeu da chamada "cooperação reforçada" que permite a alguns Estados-membros avançarem com políticas públicas mesmo sem o acordo unânime de todos. É por isso que esta Procuradoria só conta com 22 dos 27 Estados-membros – países como a Hungria, por exemplo, não quiseram submeter-se a um organismo que terá poder para investigar crimes cometidos nos Estados-membros que atentem contra os interesses financeiros da União. Esta questão é relevante: ninguém obrigou Portugal a aderir à Procuradoria Europeia. Se quiséssemos, podíamos ter ficado de fora. O que mais razão é para, estando dentro, levarmos os processos internos da instituição a sério.
A lei europeia que cria a Procuradoria e estabelece a forma de seleção dos procuradores é o Regulamento 2017/1939 da UE. Logo à partida, estabelece (Art. 6º) que "a Procuradoria Europeia é independente" e que "os Estados-Membros da União Europeia […] respeitam a independência da Procuradoria Europeia e não tentam influenciá-la no exercício das suas funções". O propósito é aqui clarinho: a Procuradoria não pode admitir interferências políticas.
Cada país nomeia um Procurador Europeu para este organismo. Como? O Regulamento explica: cada Estado-membro manda uma lista de três candidatos para Bruxelas, esses candidatos são depois avaliados por um júri composto por magistrados ou juristas europeus independentes e de mérito, que faz uma recomendação ao Conselho Europeu – o órgão da UE composto pelos representantes dos Governos e que é, infelizmente, a instituição mais opaca da União Europeia, onde não temos acesso a atas nem às tomadas de posição dos Governos à porta fechada. A decisão final é do Conselho Europeu.
Em Portugal, a Lei 112/2019, que estabelece a aplicação do Regulamento da Procuradoria, determinou que cabe ao Conselho Superior da Magistratura e ao Conselho Superior do Ministério Público fazerem os concursos para determinar a lista dos nomes a enviar para Bruxelas. Cada um destes dois conselhos indica até três nomes e, destes seis, o Governo decide os três que submete à UE, depois de todos os candidatos serem ouvidos no Parlamento. A intervenção destes conselhos superiores acaba aqui – isso é também clarinho no texto da lei e na aplicação do próprio regulamento europeu. Lembremo-nos disto quando, mais à frente nesta história, ouvirmos a ministra da Justiça dizer que "a indicação do procurador europeu foi feita pelo Conselho Superior do Ministério Público". Não foi.
Deste processo de seleção saíram três procuradores do Ministério Público e um juiz. Dentre estes quatro, o Governo acabou por mandar para a UE os três procuradores – caiu o juiz. Foram estes três procuradores que se submeteram à avaliação do júri independente europeu. E o júri independente recomendou ao Conselho Europeu que escolhesse a magistrada Ana Carla Almeida.
O que se passou na reunião do Conselho Europeu só sabe quem lá esteve. Mau grado todo o poder de que dispõe, este órgão não publica atas, não tem reuniões à porta aberta, tipicamente não responde sequer a pedidos de informação. Sabemos apenas que para três países – Portugal, Bélgica e Bulgária – os procuradores escolhidos não foram aqueles que o júri independente recomendou. Porque é que o painel independente foi ignorado? Ninguém explicou ou prestou contas.
Desagradados com a opacidade deste processo, académicos de vários países europeus, incluindo os portugueses Miguel Poiares Maduro e Rui Tavares, pediram explicações às instituições europeias. O professor italiano Alberto Alemanno pediu acesso a documentos do Conselho que ajudassem a explicar a reviravolta: depois de lhe listarem mais de 20 papéis que ajudariam a perceber o mistério, negaram-lhe o acesso a todos eles!
O que sabemos, porque está no comunicado do Governo, é que foi o representante português nessa reunião do Conselho Europeu – Francisca Van Dunem ou quem a tenha substituído nesse encontro – quem mostrou incómodo com a designação de Ana Carla Almeida. Foi o Governo português que pediu que fosse ignorada a recomendação do júri europeu. Foi o Governo português que pediu para ser antes nomeado o procurador José Guerra porque, justifica-se agora a ministra, tinha ficado mais bem colocado no concurso interno do Conselho Superior do Ministério Público.
Deixemos de lado que nem o regulamento europeu nem a lei nacional encomendaram ao Conselho Superior do Ministério Público que fizesse a pontuação ou hierarquização dos candidatos; apenas que indicasse três nomes, que seriam depois hierarquizados pelo júri europeu. Deixemos isso de lado. O que não podemos deixar de lado é que a pontuação superior do procurador José Guerra é justificada por um critério de antiguidade que não está previsto nem no regulamento europeu, nem na lei nacional, nem no aviso do concurso. Um critério de antiguidade que só foi criado depois de se conhecerem os candidatos e que permitiu a José Guerra passar à frente de Ana Carla Almeida. Um critério enfiado a martelo que aliás motivou uma queixa da procuradora Ana Carla Almeida, ainda o concurso ia a meio.
O que também sabemos é que este processo, que a ministra da Justiça jura a pés juntos foi lindo e límpido, causou desconforto no próprio Conselho Europeu. Tanto que quatro países – Áustria, Estónia, Luxemburgo e Países Baixos – assinaram uma rara declaração de voto em que recordam que não foi à toa que se criou um júri independente, necessário para dar legitimidade à nova Procuradoria Europeia, e que entrarmos logo à partida num esquema "em que cada país segue exclusivamente a classificação feita internamente, será prejudicial para a legitimidade da Procuradoria Europeia", segundo citou o Expresso.
Não, isto não foi bem conduzido. Não, isto não foi transparente, nem límpido, nem livre de interferência política – e mesmo que possa não ter violado a letra da lei europeia, seguramente violou o seu espírito, de tal forma que quatro Estados-membros deixaram isso registado em declaração de voto.
Esta semana, no Parlamento, disse a ministra da Justiça: "Eu respeito os órgãos constitucionais nacionais que têm funções nesta matéria. Aquilo que era importante aqui era que não houvesse interferência do Governo. Não houve. Não ouve interferência do Governo, esta é a essência da questão. Aquilo que a Europa não quer é que os procuradores europeus estejam a dever aos Governos a sua nomeação. Neste caso, a indicação do procurador europeu foi feita pelo Conselho Superior do Ministério Público".
Só que não foi. O Conselho Superior do Ministério Público pronunciou-se no início do processo. E como a ministra não gostou do resultado produzido no final desse processo, resolveu ignorá-lo e impor uma escolha diferente, usando o Conselho Superior do Ministério Público como álibi, alicerçado num critério de antiguidade que não está na lei, nem no regulamento europeu, nem no aviso do concurso. Eis como uma leitura fortemente editada de factos verdadeiros culmina numa afirmação da ministra que é absolutamente falsa.
O que se está a passar
Donald Trump podia matar alguém a tiro no meio da Quinta Avenida que não perderia votos, gabou-se ele em 2016. Desde então, a sua presidência tem sido um festival de mentiras e de desprezo pela verdade, carimbada como "fake news". Não é à toa, nem do nada, que os autoritarismos populistas se dão ao luxo de ignorar a realidade. Mesmo sendo chocante, não nasceu ontem.
Há anos que os partidos estabelecidos, neste país e em tantos outros, vêm tornando mais lassas e frágeis as cordas que deviam amarrar a política à realidade concreta, factual, empírica das comunidades que governam. Foram anos de retórica tática e oportunista, de tirar dos factos só as partes que nos interessam, que abriram a porta a um ambiente envenenado em que os responsáveis políticos, os líderes de opinião, os comentadores avençados e as máquinas de propaganda se dão ao luxo de criarem a sua própria verdade e ignorarem tudo o que foge dessa ficção.
É por isto que as democracias se têm tornado incapazes de gerar soluções – porque se tornaram antes incapazes de sequer reconhecer os problemas. O populismo e a demagogia dos novos partidos iliberais – também aqui em Portugal – chocam muita gente, eu incluído. Mas estes campeões da mentira desbragada não são uma rutura com o que tínhamos às mãos dos velhos partidos centristas. São um corolário.
16-10-2020 por SÁBADO // João Paulo Batalha
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