quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Vaiado em Boticas, Galamba diz que foi obrigado a dar concessão de exploração de lítio ?!

Depois de ter sido recebido com protestos em Boticas, devido à exploração do lítio, o secretário de Estado Adjunto e da Energia, João Galamba, assegurou que o Governo foi obrigado a dar a concessão, em Montalegre, à empresa Lusorecursos Portugal Lithium, no seguimento do contracto assinado no tempo de Passos Coelho.

O negócio do lítio tem estado envolvido em suspeitas de ilegalidades. Na sexta-feira passada, os grupos parlamentares de PSD e PAN requereram uma audição urgente de Galamba na Comissão de Ambiente, Energia e Ordenamento do Território, para analisar o contracto de concessão de exploração de lítio à Lusorecursos.

O povo diria que esta afirmação, “deste feito á pressa” secretário de estado, é nojenta! Vindo de quem vem, nada me espanta pois é o mesmo que está ligado por aviso a José Sócrates, quando ia ser detido…

O partido onde se acoita está a governar desde o fim de 2015, com o beneplácito do PR!!!

“Qualquer Governo tem sempre que lidar com decisões do Governo anterior”, defendeu o secretário de Estado. “Nós fomos obrigados a dar a concessão [da exploração de lítio em Montalegre à Lusorecursos]”, acrescentou, remetendo para o Decreto-lei 88/90, que determina que “a empresa detentora de prospecção e pesquisa tem o direito de requerer a exploração”.

- Não é totalmente verdade, pois o governo deste Sr., só para recordar reverteu tudo aquilo que quis!

e passo a citar:

Função Pública

Em 2011, os salários dos funcionários públicos que auferissem mais de 1.500 euros brutos por mês foram cortados progressivamente, entre os 3,5% e os 10%, uma medida que esteve em vigor durante todo o período do resgate e que começou a ser revertida ainda pelo governo de Pedro Passos Coelho, que em 2015 devolveu 20% daquele corte.

O executivo liderado por António Costa já aumentou a parcela devolvida, com início nos salários de Janeiro, e pretende eliminar a totalidades dos cortes salariais gradualmente ao longo do ano, de maneira a que os salários dos funcionários públicos não sofram qualquer corte a partir de Outubro.

Outra medida que entrou em vigor no período do resgate e que deverá ser retirada ainda este ano prende-se com o número de horas que os funcionários públicos trabalham por semana.

Desde Setembro de 2013 que a função pública trabalha 40 horas, mas o parlamento já aprovou na generalidade propostas tanto do PS, como do BE, do PCP e dos Verdes para retomar as 35 horas de trabalho semanais. No entanto, o PS pretende que a medida entre em vigor apenas em Julho, ao passo que os outros partidos de esquerda querem a sua aplicação o mais rápido possível.

Também a sobretaxa de 3,5% em sede de IRS, uma medida anunciada durante o resgate financeiro, vai deixar de se aplicar totalmente em 2017, tendo sido reduzida já este ano para os rendimentos mais baixos e mantida nos 3,5% para os contribuintes com rendimentos anuais acima de 80 mil euros.

Pensões e Segurança Social

A Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES), que foi implementada como medida transitória em 2011, acabou por se manter ao longo do tempo, embora o modo de aplicação tenha vindo a ser alterado.

Tal como em 2015, este ano, a CES irá incidir apenas sobre as pensões superiores a 4.611,42 euros e será reduzida a metade: é de 7,5% para o montante entre os 4.611,42 euros e os 7.126,74 euros e de 20% para o valor que excede este montante. Em 2017, a medida cai.

No esboço do Orçamento do Estado para 2016, que o Governo enviou para Bruxelas e que entregou no parlamento no dia 22 de Janeiro, está a reversão de uma série de medidas de austeridade relacionadas com prestações sociais impostas durante o resgate e que deverão ser revertidas ao longo deste ano.

É o caso da actualização de 0,4% das pensões e complementos até 628,82 euros, da revogação da suspensão do pagamento dos complementos de pensão aos trabalhadores do sector empresarial do Estado (como as empresas de transportes) e também da reposição do valor de referência do Complemento Solidário para Idosos (CSI) nos 5.022 euros, o valor que estava em vigor em 2012.

Trabalho

O salário mínimo nacional esteve congelado nos 485 euros entre 2011 e Outubro de 2014, quando aumentou para os 505 euros, na sequência de um acordo estabelecido entre o então governo de coligação PSD/CDS-PP, as confederações patronais e a UGT.

O Governo de Costa voltou a subir esta remuneração que é de 530 euros desde Janeiro deste ano e que deverá aumentar gradualmente todos os anos para atingir os 600 euros em 2019.

Repostos estão também dois dos quatro feriados nacionais que foram retirados desde 2013: em Janeiro, o parlamento aprovou a reposição já em 2016 do 5 de Outubro, que assinala a Implantação da República, e do 1.º de Dezembro, Dia da Restauração da Independência, como dias de feriado.

Quanto aos outros dois feriados, de índole religiosa, que tinham sido retirados, o de Corpo de Deus (móvel) e o 01 de Novembro (dia de Todos os Santos), o Governo já anunciou que a Santa Sé deu parecer favorável à decisão mas que prosseguem os contactos.

Impostos

Na área fiscal, depois de o anterior Governo ter realizado a reforma do IRC, que entrou em vigor em 2014, o objectivo agora é reverter algumas das medidas aí aprovadas, incluindo o regime de eliminação da dupla tributação internacional e manutenção da taxa nos 21%, em vez de a reduzir gradualmente.

No IRS, o executivo já anunciou que quer melhorar as deduções à colecta para as famílias com baixos e médios rendimentos e também substituir o quociente familiar, introduzido pela primeira vez em 2015, por uma dedução fixa por filho.

Além disso, está também anunciada a intenção de aumentar a progressividade do IRS, "nomeadamente através do aumento do número de escalões", depois de, em 2013, os escalões do IRS terem passado de oito para cinco, uma alteração que implicou um "enorme aumento de impostos", como foi assumido pelo então ministro das Finanças, Vítor Gaspar, e que continua em vigor.

Há ainda a intenção de reduzir o IVA da restauração para os 13%, uma medida que já consta do esboço de Orçamento do Estado para 2016, mas o Governo pretende adoptar  apenas na segunda metade do ano.

Nos impostos sobre o património, o Governo quer recuperar a cláusula de salvaguarda para limitar a 75 euros por ano os aumentos de IMI decorrentes de reavaliação do imóvel. Em 2011, o executivo determinou uma avaliação geral dos imóveis e, para impedir que houvesse aumentos bruscos do IMI, determinou um regime de salvaguarda de prédios urbanos que vigorou até 2013 e que deixou de se aplicar em 2014 e em 2015.

Transportes

Na área dos transportes, o Governo iniciou o processo de reversão da concessão dos transportes de Lisboa e Porto e tem em curso negociações com o consórcio Gateway para o Estado recuperar a maioria do capital da companhia aérea TAP, entregue a privados em Novembro passado.

A 07 de Janeiro, o ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, afirmou esperar concluir a reversão da concessão dos transportes de Lisboa e Porto no prazo de um mês, adiantando que as empresas não deverão receber qualquer compensação.

O processo de subconcessão das empresas públicas de transporte de Lisboa e Porto foi lançado pelo governo PSD/CDS-PP, constava do Plano Estratégico dos Transportes 2011-2015 e foi alvo de uma grande contestação por parte dos sindicatos, autarquias e partidos políticos.

O executivo PSD/CDS-PP tinha atribuído a concessão das empresas em Lisboa ao grupo espanhol Avanza, o Metro do Porto à Transdev e a rodoviária STCP -- Sociedade de Transportes Coletivos do Porto à Alsa, do Grupo Nacional Express.

Os contractos aguardavam visto prévio do Tribunal de Contas para entrarem em vigor quando o Governo PS entrou em funções e decidiu suspender o processo de obtenção de visto prévio.

No que respeita à TAP, decorrem as negociações entre o Governo e o consórcio Gateway, de Humberto Pedrosa e David Neeleman, para o Estado recuperar a maioria do capital, tendo o Governo já admitido a possibilidade de partilhar a gestão da companhia aérea com o consórcio.

O acordo de conclusão da venda directa de 61% do capital da TAP foi assinado no dia 12 de Novembro entre a Parpública, empresa gestora das participações públicas, e o agrupamento Gateway.

Montepio alerta para “buraco” de 282 milhões no fundo de pensões.

Banco garante que todas as responsabilidades estão financiadas na totalidade e em níveis superiores aos limites mínimos definidos pelo Banco de Portugal.

O Banco Montepio tem um para um desvio atua­rial do fundo de pensões de 282 milhões de euros. O alerta foi feito pela instituição financeira no prospeto de emissão de dívida a 31 de outubro, segundo noticia este sábado o Expresso (acesso pago). O desvio implica que o banco poderá ser obrigado a injetar capital no fundo em caso de défice das obrigações.

“No caso de haver um défice das suas obrigações com pensões, o Banco Montepio pode ser obrigado a avançar com pagamentos adicionais para o Fundo de Pensões, o que dependendo do valor a injetar, poderá ter um impacto material adverso, sobre os negócios, reputação e resultados operacionais do banco”, alerta o banco, citado pelo Expresso.

Este é um dos riscos listados pelo Montepio no prospeto do programa de emissão de dívida do banco. Os 223 milhões de euros, referentes a 31 de dezembro de 2018 comparam com 188 milhões no final de 2017. O semanário acrescenta que, no primeiro semestre deste ano, o desvio agravou-se em mais 59 milhões de euros.

Questionado pelo Expresso, fonte oficial do Banco Montepio rejeitou que seja um “buraco” e garantiu que “as responsabilidades totais do Banco Montepio encontravam-se totalmente financiadas e em níveis superiores aos limites mínimos definidos pelo Banco de Portugal“.

https://eco.sapo.pt/2019/11/09/montepio-alerta-para-buraco-de-282-milhoes-no-fundo-de-pensoes/

terça-feira, 12 de novembro de 2019

ALEMANHA EM RECESSÃO E PORTUGAL A CRESCER

O Eurostat divulga a estimativa rápida para o PIB e emprego da Zona Euro e da União Europeia do terceiro trimestre. Neste dia, ficam a conhecer-se os números da Alemanha, que deverão mostrar a entrada em recessão do país. Já Portugal deverá mostrar um crescimento que se estima perto de 2% no terceiro trimestre. Também o Japão revela o seu PIB.

A lesbicazinha afrodescendentezinha da minha tia.

A minha tia descobriu agora que o sem-abrigo Joaquim não é um dos mais desfavorecidos da sociedade. “O menino sabia que o Joaquim é homem, heterossexual, cis e branco? Faz parte da classe opressora!”

Na minha família, as tias velhas têm pobres. Obviamente, as minhas tias não se referem a essas pessoas nestes termos, com um insensível “o meu pobre”. Usa-se, isso sim, um carinhoso “o meu pobrezinho”. Trata-se de um costume típico de uma certa classe social lisboeta, em que uma senhora patrocina um mendigo da freguesia, a quem dá algumas moedas de vez em quando, roupa velha do marido e dos filhos, um cabaz de víveres na Páscoa e outro no Natal. Em troca, o mendigo, vagueando pelo bairro com mais viço e vestido com roupas não andrajosas (e marcadas com as iniciais do antigo dono), mostra-se à vizinhança e proporciona prestígio à sua benemérita. O pobre é uma espécie de anúncio ambulante da bondade dela. Porque a minha tia – e as outras beatas como ela – sabem que a filantropia não é para publicitar directamente, como Nosso Senhor bem avisou ao pedir para a mão esquerda não saber o que a direita faz.

(Uma regra que a minha tia faz questão de cumprir escrupulosamente, pois é também com a mão direita que telefona às amigas para se gabar do bem que pratica. A mão esquerda nunca é incluída neste negócio).

Percebe-se a necessidade desta bazófia caridosa. Com o avanço económico e social dos últimos anos, sobram cada vez menos pobres. Há míngua de gente à míngua. Daí que manter um pobre em exclusividade seja uma virtude que tem de ser sinalizada. Há senhoras de sociedade que são forçadas a dividir pobres, coitadas.

Há dias, a minha tia anunciou que já não ajuda o Joaquim, o seu pobrezinho predilecto. Habitualmente, o prazo de validade de um mendigo destes varia entre 12 e 15 anos, de maneira que achei que o mais provável era o Joaquim ter sucumbido à cirrose. Foi assim que nos deixaram os outros pobrezinhos que a minha tia teve antes. Pelas minhas contas, o Joaquim é o terceiro que lhe conheço.

Mas fiquei em choque ao perceber que ele não morreu, ela é que o largou. Segundo a minha tia, ajudar o Joaquim, um mendigo que dorme num banco do Jardim da Parada (em cima, no Verão, por baixo, no Inverno), sobrevive de esmolas e cuja fortuna se resume a 10 kg de cartão, é o oposto da caridade cristã, que manda amparar os mais necessitados. É que a minha tia descobriu agora que o Joaquim não é um dos mais desfavorecidos da sociedade. Pelo contrário, é um privilegiado. O Joaquim, revelou-me ela, horrorizada, é um representante do heteropatriarcado branco. “O menino sabia que o Joaquim é homem, heterossexual, cis e branco? Faz parte da classe opressora!”

Não deixa de ter razão. Realmente, o Joaquim é: 1) homem, como testemunham os mais velhos do bairro, que ainda se lembram da fase em que ele expunha a sua virilidade na rua, até o Padre Zé o ter convencido a, pelo menos, usar cuecas; 2) heterossexual, uma vez que só se expunha a senhoras; 3) cis, pois, apesar de destituído, nunca aceitou as roupas velhas das minhas primas que a minha tia lhe tentou impingir, além de que nem sequer tem estudos suficientes para saber o que é cis e para achar que pode não o ser; 4) e branco, facto comprovado por todos lá em casa, desde o dia em que a minha tia o obrigou a tomar banho, via mangueirada no jardim, e se constatou que, debaixo do sarro, o Joaquim não só é caucasiano, como até lhe dá uns ares de nórdico.

Ou seja, ao ajudar aquele indigente, estava a perpetuar o status quo. Durante anos, revelou chorosa, ela protegeu um supremacista branco. E nunca se tinha apercebido. Sabe agora que sofria de sexismo internalizado. O que ela praticava era caridade tóxica com um homem que vivia à conta de explorar uma mulher. Aliás, acrescentou, o mundo da mendicância é machista: a maioria dos lugares foi açambarcado por homens. Falta diversidade.

Felizmente, a minha tia ainda vai a tempo de corrigir o seu erro e dirigir o seu altruísmo para auxiliar aqueles que são, verdadeiramente, os mais desamparados da comunidade. Agora, em vez do Joaquim, a minha tia patrocina a Danila. Em vez de um pobrezinho, a minha tia tem agora uma lesbicazinha afrodescendentezinha. É filantropia progressista.

Não foi a primeira escolha. Havia lá no bairro um anão bissexual cigano, mas alguém pegou nele primeiro. Literalmente. De maneira que a minha tia optou pela Danila. Mas está contentíssima com quem lhe calhou. Diz que, finalmente, dirige a sua compaixão católica para quem necessita mesmo. Não o mendigo privilegiado, mas a oprimida jovem universitária a preparar a sua tese de doutoramento em “Racismo sistémico nos anúncios de comida para cães – O discurso de ódio em Pedigree Pal”. Alguém a quem um vizinho já deixou fechar a porta do elevador da garagem na cara, apenas por ser lésbica e negra e estar a demorar algum tempo numa chamada telefónica para outra lésbica negra. Alguém que, quando se mudou para o condomínio, sentiu que a confundiram com a porteira. No fundo, alguém marcado pela exclusão a que a nossa sociedade remete os desvalidos.

Quando lhe perguntei se uma estudante com carro, que mora num condomínio com garagem e porteira, é mais desfavorecida que um sem-abrigo, a minha tia disse que já estava à espera da minha misoginia xenófoba a defender outro homem branco. E mandou-me calar. Contou-me que, entretanto, o Joaquim se revelara um opressor. Ao cruzar-se com a Danila (num render da guarda que eu achei mesquinho, mas que a minha tia considerou essencial como forma de reparação pelo que o povo de Danila sofreu), houve, segundo a minha tia, uma microagressão: “O menino acredita que o Joaquim lhe disse «Bom dia»? Assim, só. Foi incapaz de lhe pedir desculpa pelos Descobrimentos!”

Agora a minha tia pratica misericórdia inclusiva. É diferente, diz. Antigamente, um mendigo precisava de comida e de agasalho. Agora, um membro de uma minoria oprimida precisa que ouçam as suas queixas e lhe peçam desculpa muitas vezes. Mas é uma caridade muito mais recompensadora para quem a pratica. Ajudar a Danila é mais estimulante, porque ela é vítima por ser mulher, negra e LGBT. O Joaquim é-o apenas por ter fome. E a fome não intersecciona com nada, é pouco interessante. A minha tia diz que se está a habituar. Até já sabe ir ao Twitter fazer likes nos posts woke da Danila.

Apesar de ser mais moderna, esta caridade ainda tem alguns traços da antiga. A minha tia continua a dar conselhos paternalistas juntamente com a esmola. Só que, em vez de advertir o Joaquim para não gastar em vinho e cigarros na taberna, agora diz à Danila para não gastar em sandes e galões no Starbucks, por causa do glúten e da lactose. E continua a oferecer cabazes de Páscoa e Natal. Só não lhes chama isso, porque são festas cristãs, símbolos do imperialismo europeu. E também continua a retirar as pratas da sala, quando a visitam. Antes era por medo que o Joaquim caísse em tentação, agora é porque são relíquias que um antepassado trouxe da Índia e ela tem medo que a Danila se ofenda com a apropriação cultural.

Na semana passada, encontrei o Joaquim. Surpreendentemente, estava com bom ar. Pediu-me dinheiro. “Para comer?”, perguntei. “Não”, disse ele. “Para estrogénio”. O Joaquim está em processo de transição. Percebeu que, para ser desfavorecido, não chega ser miserável. Por isso, vai mudar de sexo. A fome até vai fazer bem, porque ele não quer ser “uma gaja gorda”. Perguntei-lhe se não se iria arrepender e ele acusou-me de estar a fazer mansplaining a uma pessoa trans. Percebi que se vai safar. Comprei-lhe duas ampolas de hormonas e desejei-lhe boa sorte.

José Diogo Quintela

Salários mínimos e gastos máximos

A valorização do salário mínimo transformou-se numa espécie de desígnio nacional. Claro que subsistem divergências quanto ao valor, mas o que antes era unia bandeira dos partidos de esquerda e dos sindicatos transformou-se agora num objectivo colectivo, que conta com o apoio do PSD e das confederações patronais. Até a Comissão Europeia deixou de fazer alertas sobre os malefícios do aumento do salário mínimo. Tal como o Negócios escreveu na semana passada, há vários factores que explicam esta mudança. Por um lado, a experiência recente de =lento do salário mínimo sem que se notassem efeitos negativos no emprego encoraja novos aumentos. Por outro, a percepção de que o crescimento das desigualdades está a alimentar os fenómenos populistas pela Europa fora toma os decisores políticos mais sensíveis aos mínimos salariais. Há também urna aprendizagem do lado das empresas. Todo o dinheiro gasto em aumentos para trabalhadores que ganham 600 euros (que não têm margem para poupar) traduzem-se numa subida proporcional do consumo destas famílias, o que beneficia as empresas que vivem do mercado interno. Por outro lado. o factor salarial é hoje menos determinante do que foi para a competitividade externa das empresas, corno demonstram os ganhos de quota de mercados das exportações portuguesas. Finalmente, as confederações patronais também sabem que podem obter contrapartidas relevantes quando aceitam aumentar o salário — veja-se o que aconteceu com a lei laborai na passada legislatura. O país pode, portanto, agradecer às confederações patronais por aceitarem agora o salário mínimo corno um instrume n to de justiça social. No entanto, não deve agradecer ao Governo. Um governo que se diz determinado em reduzir a pobreza pode fazer mais e onde a sua intervenção é decisiva e duradoura é do lado dos gastos destas famílias que sobrevivem com o salário mínimo e outras remunerações baixas, que são muitas vezes as que a nossa economia e as nossas empresas podem pagar. E do lado dos gastos há áreas fundamentais onde qualquer governo pode interferir. Nos transportes públicos, reduzindo as tarifas como já se começou a fazer, e aumentando a oferta; na melhoria do acesso efectivo aos cuidados de saúde no SNS: no reforço da rede pública de creches e de lares de idosos; no investimento num parque público de imóveis que crie oferta de rendas verdadeiramente acessíveis às classes médias e baixas. Claro que tudo isto implica mais investimento e despesa pública. A pergunta a que é mais difícil responder é se um país atolado em dívida pública e ainda traumatizado com a bancarrota de 2011 pode e está disposto apagar este preço para reduzir a pobreza. O resto é conversa.


MANUEL ESTEVES Editor executivo mesteves@negocios.pt

Caos no novo registo de animais domésticos

A plataforma Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC), que reúne informação dos municípios e veterinários, está com problemas. Nuns casos, há cães que estão a ser dados como mortos. Noutros, os cães surgem classificados como sendo de raça perigosa sem o ser. A equipa do SIAC está a receber uma média de mil e-mails por dia e está a tentar resolver o problema informático. Leia a notícia completa no Jornal de Notícias (acesso pago)

IRS, apoios à natalidade e Anafre

Dos jornais aos sites, passando pelas rádios e televisões, leia as notícias que vão marcar o dia.

Em entrevista, o antigo secretário dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio considera que “muitos milhares de famílias poderão vir a sofrer um acréscimo significativo de IRS” se o Governo avançar para o englobamento total dos rendimentos. Outros destaques do dia: muitas das câmaras em Portugal não têm políticas amigas da família, com 75% dos municípios a chumbarem na avaliação de medidas de apoio à natalidade; um dirigente da Anafre foi pago para fazer lobby junto das freguesias de Castelo Branco por uma empresa de informática.

O antigo secretário dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio considera que se o Governo avançar para o englobamento total dos rendimentos, “muitos milhares de famílias poderão vir a sofrer um acréscimo significativo de IRS”. O antigo governante referia-se às famílias que pagam uma taxa superior a 28%, que no atual sistema são “milhares” que podem vir a ser afetados com esta medida. Paulo Núncio duvida ainda que seja possível o Governo fazer novas alterações aos escalões do IRS por considerar que não há margem para reforçar mais a progressividade. Leia a notícia completa no Jornal de Negócios (acesso pago)

Membro da Anafre pago por privados para fazer lobby junto das freguesias

Um membro do conselho diretivo da Associação Nacional de Freguesias (Anafre), e presidente da Assembleia de Freguesia de Castelo Branco foi pago para fazer lobby junto das freguesias de Castelo Branco por uma empresa de informática, depois de esta empresa ter ganho contratos na ordem dos 367 mil euros com a Anafre. José Neves, que foi vice-presidente da Câmara Municipal de Castelo Branco, terá recebido cerca de 36 mil euros para apresentar os produtos destas empresas junto das câmaras municipais do distrito de Castelo Branco. Leia a notícia completa no Público (acesso pago)

Devia ser melhor.

Comissão Europeia apresentou umas previsões para a economia portuguesa que a mostram a crescer mais do que o Governo prevê e acima da média da Zona Euro. Parece, pois, que está tudo a correr muito bem. Infelizmente, não é verdade. Crescer acima da média da Zona Euro não é um feito especialmente notável, dado que a Zona Euro é das economias com menor crescimento no mundo, apesar dos estímulos estratosféricos de Mario Draghi. E depois há o facto de a economia portuguesa ser, de entre as que crescem acima da média, aquela que menos cresce. A Irlanda e todos os países do grupo do Leste da Europa crescem bastante acima de Portugal. Este comportamento acentua um dos aspectos mais deprimentes da evolução da economia portuguesa nas últimas décadas: um após outro, os países que saíram do comunismo nos anos 90 num estado de miséria ainda maior do que Portugal foram -nos passando ou ameaçam faze- lo. A Eslovénia, a República Checa, a Eslováquia, a Estónia ou a Lituânia já são mais ricas do que Portugal, para além de Chipre e Malta. A Polónia e a Hungria espreitam e outros, como a Roménia, a Croácia ou a Bulgária, aproximam-se rapidamente. Houve um tempo em que gozávamos com esses subdesenvolvidos, do alto da nossa superioridade 'ocidental'. É melhor começar a rever as piadas. O resultado disto tudo é que somos mais pobres do que éramos em 2000, quando nos comparamos com os países mais ricos, e somos mesmo mais pobres em termos absolutos do que éramos nós próprios em 2008, quando a crise começou. Passaram 11 anos e ainda não conseguimos regressar à riqueza de então. Tudo deveria ter corrido muito melhor, se pensarmos que a nossa é uma economia que praticamente não cresceu entre 2000 e 2010 e teve um verdadeiro colapso entre 2011 e 2014. Esta deveria ser a questão obsessiva dos nossos dias. Mas não se vê muita gente obcecada com ela.

Stabat Mater depenadinha

A mãe de Sócrates faz lembrar a Virgem a sofrer pelo filho. A diferença é que Nossa Senhora sofria por Cristo à beira da cruz, enquanto Adelaide Pinto de Sousa sofre por Sócrates à beira do Multibanco.

O país está em choque com o caso do recém-nascido abandonado num contentor. Mas, apesar da forte censura social, tenho a certeza de que todos os portugueses sentem compaixão por aquela mãe. Quer dizer, todos, todos, não. Há uma portuguesa que o que sente pela mãe que abandonou o filho, não é compaixão, é inveja. Trata-se da mãe de José Sócrates. Neste momento, Maria Adelaide Pinto de Sousa deve estar a pensar porque é que não se lembrou de enjeitar o seu filho, mal o trouxe ao mundo. Devia ter percebido, quando o mini-Sócrates mamava um bocadinho mais do que era preciso, o abusador.

Tinha-se poupado a muitas agruras. Aliás, não ficava por aí em termos de poupanças: também poupava os 5 milhões de euros que, sabemos agora, José Sócrates lhe torrou em férias, quadros, restaurantes e amigas. De herdeira milionária de um milhão de contos, a mãe de Sócrates passou a pensionista remediada, sobrevivendo a pedinchar esmolas ao mesmo filho que lhe esbanjou a fortuna. Agora, sentada na sala do seu casinhoto de 70 m2 – o tamanho do closet, tão típico da classe média, onde José Sócrates guardava os seus fatos e sapatos, em Paris – Maria Adelaide Pinto de Sousa lamenta não ter tido a presença de espírito para se livrar da sanguessuga ingrata a que o resto do país se habituou a chamar Engenheiro Sócrates.

Se o tivesse feito, hoje teria uma vida mais confortável, a usufruir da herança que o seu pai lhe deixou. (Já nós, portugueses, de certeza que nos teríamos lixado de igual forma. Sócrates começaria por endrominar o sem-abrigo que o encontrasse no lixo, surripiando-lhe com o cartão todo, e ia arranjar maneira de chegar a primeiro-ministro, para cumprir o seu desígnio de intrujar Portugal).

José Sócrates é uma espécie de filho pródigo, mas sem a parte da redenção. Na parábola bíblica, o filho pede ao pai a herança adiantada e vai estourá-la. Já na penúria, regressa, humilde, para os braços de seu pai. Sócrates é ligeiramente diferente: também é perdulário com a herança que a mãe lhe adianta, mas, depois de tudo gasto, não aprende qualquer lição de humildade. Pelo contrário, enquanto Sócrates continua com a fanfarronice habitual, é a mãe, que o sustentou, que está mais humilde. Basta ler a transcrição das escutas telefónicas entre os dois, com a mãe a dizer que está “depenadinha” e a suplicar ajuda para comprar um agasalho e para conseguir ir de férias. Mais humilde que isto, só se cantasse “A minha casinha” ao telefone.

A mãe de Sócrates faz lembrar a Virgem Maria, desolada, a sofrer pelo filho. A diferença é que Nossa Senhora sofria por Cristo à beira da cruz, enquanto Adelaide Pinto de Sousa sofre por Sócrates, à beira da Caixa Multibanco, sem fundos para levantar, com o bonequinho no ecrã a encolher os ombros como quem diz “o teu filhou já esvaziou tudo”. Stabat mater dolorosa, uma, Stabat mater depenadinha, outra. Faz sentido a mãe de Sócrates dizer-se sem penas, já que caiu na conversa do filho que nem uma patinha.

É por isso que tantos socialistas continuam a admirar José Sócrates. Como bom homem de esquerda que odeia os ricos, Sócrates conseguiu esmifrar de tal forma uma milionária, que a pôs a viver como uma pessoa de classe média-baixa. Está bem que é a sua mãe, mas isso confere ainda mais valor ao processo de redistribuição de riqueza executado por Sócrates. Com o que Sócrates fez à mãe, Portugal ficou um país menos desigual.

domingo, 10 de novembro de 2019

A secretária que espiava a embaixada em Berlim e o diplomata que ia ser expulso. Como a Stasi vigiou e usou os portugueses até 1989

A polícia política da Ex-RDA recrutou informadores portugueses, infiltrou secretárias alemãs na embaixada e acusou um diplomata de transportar pessoas na mala do carro. Era mentira mas iam expulsá-lo.

“Havia um amigo com quem eu tinha um caso em Berlim Oriental. Era dentista. Pensei seriamente: como é que vou reagir se ele me pedir para o levar na mala do carro para Berlim Ocidental? Mas nunca ocorreu. Ele nunca chegou a pedir-me isso. Hoje, 40 anos depois, mantemos uma excelente relação. Ele já sabe que eu pensei isso sem nunca lhe ter dito. E ele nunca me pediu porque não quis pôr em risco a amizade comigo”.

Fernando Cesário Nunes de Almeida, adido de imprensa da embaixada de Portugal na RDA (República Democrática Alemã) desde 1974, intérprete, hoje com 70 anos e homossexual assumido, estranhou aquela manhã de 27 de Julho de 1979 em que chegou ao gabinete e a secretária lhe disse que o embaixador tinha sido chamado de urgência ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, com a indicação expressa de não ir com ele. O press-attaché inquietou-se porque era o único funcionário da representação portuguesa que falava alemão, pelo que acompanhava sempre o embaixador nos contactos com o governo da ex-RDA.

Percebeu logo que algo estava errado. Uns dias antes, Portugal tinha expulsado um adido de imprensa da RDA em Lisboa, por estar a incitar manobras subversivas contra a reforma agrária. Pensou que teria sido ele o escolhido pela ditadura comunista para retaliar — uma prática frequente entre diplomacias quando um país declara um cidadão estrangeiro como persona non grata.

E com que pretexto? Achou que talvez usassem um delito menor, com o qual já o tinham confrontado: o transporte de antiguidades e porcelanas da Alemanha de Leste para o lado ocidental, na mala do carro, sem a autorização burocrática oficial. (Ainda hoje tem algumas dessas peças a decorar a sua casa em Berlim, desde uns jarrões de estanho, a cristais e um candeeiro de tecto.)

O recado da secretária da embaixada não lhe soou bem e Fernando reagiu por instinto: “Vou embora daqui para fora. Há confusão, tem a ver com a história de Lisboa ter expulso o diplomata da RDA”.

Fernando-Cesário Nunes de Almeida, adido de imprensa (à esq.), ao lado de Rui Medina, primeiro embaixador de Potugal na RDA em 1975

A falsa acusação de transportar pessoas na mala do carro

Ainda o embaixador português se encontrava a ser recebido pelo ministro, quando Fernando Almeida formalizou um pedido de demissão e se pôs a caminho da fronteira para passar para o lado de Berlim Ocidental. “Sabia que ia ser declarado persona non grata, era muito arriscado esperar para falar com o embaixador”, recorda agora ao Observador. À noite, outro funcionário diplomático, Tadeu Soares, encontrou-se com ele já em Berlim Ocidental: “Tem a certeza que quer deixar a embaixada? Não quer que façamos mais nada?” Fernando Almeida já estava a pensar sair mais menos mês, já tinha acabado os seus estudos de Ciências Políticas e Romanísticas na Alemanha e tinha concorrido a um lugar de tradutor nas Nações Unidas. Não hesitou em deixar o lugar na embaixada e entregou ao colega as placas de matrícula do corpo diplomático.

Sem ele saber, nessa manhã, pelas 11h30, o embaixador português foi confrontado pelo governo da RDA com uma informação segundo a qual Fernando Almeida teria transportado pessoas na mala do carro de Berlim Leste para o lado ocidental. É pelo menos o que consta no documento conservado no arquivo da Stasi (a polícia política da ex-RDA) sobre a reunião entre o chefe do departamento da Europa Ocidental no MNE da Alemanha de Leste (“Comrade Dr. Herbert Plaschke”) e o embaixador Henrique Coelho Lopes. O resumo do encontro foi elaborado pelos alemães, pelo que não é possível indicar exatamente que partes da conversa estão descritas com rigor. Eis as principais linhas:

“O embaixador português foi informado de que o adido de imprensa Almeida, abusando dos seus privilégios de diplomata, tem actuado já há um longo período de forma criminosa contra a RDA e está a planear praticar crimes ainda mais graves”.

“Devido às boas relações entre os dois países, o Ministério dos Negócios Estrangeiros preferia não ter de o declarar persona non grata. Mas espera que Almeida deixe a RDA imediatamente e que sejam devolvidos todos os documentos que o identificam como um diplomata acreditado na RDA”.

“Tenho a certeza de que colegas nossos (diplomatas) da América latina se deixavam aliciar por este tipo de propostas. Nas fronteiras, havia um raio x, e lembro-me que um colega do Egipto foi apanhado com gente na mala do carro."

Fernando Almeida, ex-adido de imprensa que a RDA quis declarar como persona non grata

Segundo o resumo alemão, o embaixador português terá agradecido a não declaração de persona non grata e lamentado o desrespeito de um funcionário da embaixada. Garantiu ainda desconhecer estes incidentes e manifestou esperança de que não perturbassem as relações entre os dois países.

A informação que suportou as alegações contra o diplomata português foi redigida dois dias antes, a 25 de Julho de 1979, e refere que “o Ministério para a Segurança do Estado da RDA encontrou indícios claros de que Fernando Almeida teria transportado um empregado de mesa na mala do seu Mercedes para Berlim Ocidental” e que já teria combinado transportar mais duas mulheres, mãe e filha, a troco de dinheiro, usando o estatuto diplomático que lhe permitia atravessar a fronteira sem ser fiscalizado.

Outra nota nos arquivos da Stasi dá conta de uma conversa sobre o tema entre o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Herbert Krolikowski, e um outro alto funcionário, na qual admitem a hipótese de o embaixador português rejeitar as acusações e combinam que teriam de declarar o adido de imprensa português como persona non grata — mas nesse caso a informação sobre as alegações de tráfico humano deveria ser completada com mais detalhes para ser tornada pública.

Fernando Almeida, ouvido pelo Observador 40 anos depois, não sabia que estas acusações se encontravam no arquivo da Stasi e desmente-as. “Não é verdade. São tudo calúnias. Só pode ter sido uma invenção para me colocarem numa situação difícil”, garante, recordando a necessidade da RDA de expulsar um português para responder à expulsão de Lisboa de um alemão do leste.

Como vivia em Berlim Ocidental com um carro de matricula diplomática da RDA, foi abordado umas 5 ou 6 vezes, por pessoas que diziam querer retirar familiares da Alemanha comunista. Chegaram a fazer-lhe uma proposta concreta de ir com o carro à garagem de um hotel, deixar a mala aberta para entrar alguém e atravessar a fronteira, a troco de 15 mil marcos.

“Tenho a certeza de que colegas nossos (diplomatas) da América latina se deixavam aliciar por este tipo de propostas. Nas fronteiras, havia um raio x, e lembro-me que um colega do Egipto foi apanhado com gente na mala do carro. Mas não havia qualquer necessidade disso: o transporte de pessoas à margem da lei a partir de Berlim Ocidental estava muito bem organizado.”

No arquivo da Stasi, há uma alegação parecida relacionada com outro funcionário da embaixada portuguesa, “provavelmente eletricista”. Um informador relatou que em Agosto de 1976 uma mulher divorciada tinha conseguido passar para o lado ocidental, depois de ter entrado na mala do carro do funcionário, a troco de 5 mil marcos.

Os relatórios sobre a vida íntima dos diplomatas portugueses na hora da saída

Outra informação elaborada já depois da saída de Fernando Almeida da RDA está cheia de informações íntimas e avaliações de caráter. Há documentos semelhantes no arquivo da Stasi elaborados sobre pelo menos outros três diplomatas depois de terem deixado o país, cheios de alegadas informações comprometedoras. Têm todos o mesmo título: “Informação sobre um diplomata da embaixada de Portugal, que acabou o seu trabalho na RDA”.

Seguem-se dados completos de identificação e residência, na Alemanha e em Portugal, data da primeira entrada no país, e alegados vícios ou outros comportamentos que pudessem ser vistos como censuráveis. Por exemplo, um dos diplomatas foi descrito assim: “Passado algum tempo a sua actividade profissional entrou em declínio. A razão era o consumo de álcool em excesso, que pode ter sido a razão para o fim do seu casamento. (…) Tinha muitos contactos sexuais na RDA”. Seguem-se os nomes de três parceiras sexuais, uma das quais seria sua noiva e teria pedido para viajar para países capitalistas, o que não foi autorizado.

Segundo o relatório da Stasi, um diplomata português estava a pagar a um informador que usava o nome de código “Feuerbach”. E teria mostrado disponibilidade para também trabalhar para a RDA, provavelmente colaborando com a polícia política. A Stasi encarou esta informação com cautela

Indicam-se vários internamentos hospitalares devido ao consumo de álcool, bem como situações em que apareceu alcoolizado na embaixada, nas ruas de Berlim e na Feira de Leipzig— e ainda acidentes rodoviários. O facto de este funcionário português ter participado algumas vezes o desaparecimento dos seus documentos diplomáticos levou a Stasi a desconfiar que ele estivesse a encobrir atividades subversivas.

Depois surge este detalhe insólito: “Feuerbach”, o nome de código de um dos muitos informadores da Stasi que espiavam a embaixada portuguesa, relatava que o alvo lhe estava a pagar mensalmente 200 marcos ocidentais para obter informações sobre a representação de um banco italiano na RDA, pedindo-lhe documentos originais, a serem entregues de forma secreta. Ou seja, se houver veracidade nesta informação, um diplomata português pagaria a um informador da Stasi. Ainda segundo “Feuerbach” o funcionário português mostrava-se receoso sobre o seu futuro e teria disponibilidade para também trabalhar para a RDA, provavelmente colaborando com a polícia política. A Stasi encarou esta informação com cautela: admitiu que o diplomata estivesse apenas a provocar o informador ou a querer provar que ele trabalhava para o Ministério da Segurança do Estado.

Numa informação semelhante sobre outra antiga diplomata da embaixada portuguesa, identificam-se homens com quem teve um contacto mais íntimo, e relata-se a alegada apreciação negativa que o embaixador faria do seu trabalho, por ser preguiçosa e intriguista.

Sobre um terceiro diplomata, identificado como “provável bissexual”, com ideias hostis à política da RDA, escreveu-se que “a bagageira do seu carro estava algumas vezes mais pesada quando ia a Berlim Ocidental”. A Stasi suspeitava que ele teria colaborado com os serviços secretos da Nato.

Uma vez que estavam de saída da RDA, não se percebe outro objetivo na elaboração desses relatórios que não fosse serem usados como eventual pressão ou chantagem sobre esses diplomatas, caso houvesse o objetivo ou necessidade de os recrutar para fornecerem informações no futuro, nos postos onde viessem a estar colocados.

Logo em 1975, a Stasi abordou a professora de alemão do embaixador Rui Medina, que lhe dava aulas na residência. Deu-lhe o nome de código “Gisela” e atribuiu-lhe a tarefa de provocar o embaixador durante as aulas para ver como ele reagia politicamente. A avaliação do seu trabalho era positiva, embora não se conheçam detalhes sobre os reais efeitos, pelo que o Ministério para a Segurança do Estado decidiu compensá-la com uma autorização para ir acampar em Prerow, uma estância balnear no Mar Báltico.

Mas pelo menos no caso do ex-adido de imprensa Fernando Almeida, não houve qualquer abordagem da Stasi. Aliás, mesmo durante os cinco anos em que trabalhou na RDA, que recorda como um “mundo cinzento, pouco iluminado, com muito uniforme na rua, uma vida prussiana de controlo”, não se lembra de nenhum contacto formal com aquela polícia: “Diretamente abordado pela Stasi não fui. Mas senti a sua presença. Havia sempre a sensação Big Brother. Tenho quase a certeza que os motoristas da embaixada eram todos da Stasi. Eram muito discretos. Tinham licença para vir connosco tratar de assuntos a Berlim Ocidental, e nunca nenhum fugiu.”

Outra forma de sentir a presença da polícia política era a quase impossibilidade de entrar em contacto com população local. “Eles tinham muito medo que nós solteiros tivéssemos acesso a mulheres com formação académica, porque se elas casassem poderiam sair do país e lá a RDA perdia mais uma cidadã que vinha para a parte ocidental. No intervalo da ópera, quando ia ao bar tomar um copo de vinho, vinha sempre alguém ter comigo para evitar que eu estabelecesse contacto com senhoras. Só havia meia dúzia de figuras expostas do sistema com que podíamos ter contacto.”

Mas estas manobras para evitar casamentos não eram sempre eficazes. Um cônsul português viria a casar-se com uma cidadã da RDA que deixou o país pouco depois. Também o filho de um dos embaixadores se apaixonou por uma estudante bolseira da Alemanha oriental, com quem viria a casar-se.

Logo a seguir ao 25 de Abril, Portugal era louvado na imprensa da RDA, o líder comunista Álvaro Cunhal era recebido com honras de chefe de Estado, e o próprio pessoal diplomático passou a ser tratado de forma amiga: “Em vez de me chamarem senhor Almeida, tratavam-me por Camarada Almeida”, recorda o adido de imprensa. Mas mesmo assim, ninguém estava autorizado a sair de Berlim Oriental para outras localidades da RDA sem uma autorização formal do Ministério.

Os relatórios de “Eva”, a secretária infiltrada na embaixada portuguesa

Só depois da revolução, a 20 de Junho de 1974, é que Portugal e a RDA estabeleceram relações diplomáticas. A embaixada ficava no 5º. piso de um grande edifício na Otto Grotewohl Strasse, nº 3, juntamente com outras representações, incluindo a do Afeganistão e a da Síria. Já a residência do embaixador ficava na Stavangerstrasse, nº 19, num bairro com todas as casas iguais, entre a da Grécia e a da Tunísia, em frente à dos EUA e nas traseiras das da Áustria e da Finlândia.

A residência era descrita como um edifício com três pisos e um sótão, com jardim e garagem. Todas as dimensões da casa, os materiais usados na construção e os pontos de abastecimento de energia e água estavam identificados num relatório policial, onde os autores se queixavam que algumas árvores limitavam a visibilidade para vigiar o edifício nos meses de verão.

Estava em permanência vigiada por um agente à civil e dois carros policiais, armados com walkie talkies, uma pistola e um bastão. Também a lista dos carros que tinham acesso à embaixada e respetivos utilizadores era controlada pela Stasi: um BMW, três Mercedes (um deles do embaixador), quatro Volksewagen, dois Fiat, um Porsche, um Lada, um Chevrolet.

O pessoal português colocado na embaixada e respetivas famílias ascendia a 17 pessoas. Todas as movimentações aparentemente sem importância eram registadas, desde a saída do embaixador num carro com quatro malas, até aos exercícios de tiro do cozinheiro fora da residência. A chegada de uma máquina de lavar e dois aspiradores, numa viatura da Alemanha Ocidental, por não haver transporte disponível na RDA, levou o autor desse relatório a criticar a má imagem para o país provocada por essa situação.

Logo em 1975, a Stasi abordou a professora de alemão do embaixador Rui Medina, que lhe dava aulas na residência. Deu-lhe o nome de código “Gisela” e atribuiu-lhe a tarefa de provocar o embaixador durante as aulas para ver como ele reagia politicamente. A avaliação do seu trabalho era positiva, embora não se conheçam detalhes sobre os reais efeitos, pelo que o Ministério para a Segurança do Estado decidiu compensá-la com uma autorização para ir acampar em Prerow, uma estância balnear no Mar Báltico.

A vigilância permanente à embaixada portuguesa em Berlim foi-se intensificando e em 1983, quando Portugal era governado pelo Bloco Central liderado por Mário Soares, havia ao todo 13 informadores da Stasi a controlar os passos dos diplomatas portugueses.

A que fornecia informações mais preciosas era uma secretária alemã infiltrada dentro da embaixada. Nome de código:“Eva”. Tinha acesso a quase tudo. Num relatório que elaborou em 1985, conta que é ela que está a gerir a nova central telefónica instalada na embaixada. Além de atender e reencaminhar telefonemas, consegue ver quem mais está a usar telefones na embaixada e que chamadas chegam ou são feitas para o estrangeiro. Mas o aparelho, de fabrico búlgaro, tinha uma limitação importante para a informadora: não permitia que ela escutasse os telefonemas.

Antes, em 1982, foi ela que alertou a Stasi para uma ordem do cônsul português, para que fossem transmitidos de forma encriptada a um departamento da NATO os dados dos portugueses e dos cidadãos da RDA que pretendiam casar-se: identificação pessoal, residência e local de trabalho, eventuais conflitos com instituições da RDA e modus operandi para concretizarem o casamento. (Em 1979, por exemplo, houve cinco pedidos de portugueses para se casaram com cidadãos da RDA. Um foi recusado pelas autoridades alemãs).

Os primeiros encontros foram num miradouro, mas tiveram de ser alterados para um local a que deram o nome de código “Seerose”. Chegaram a oferecer-lhe uma garrafa de cognac como recompensa pelo seu trabalho como informador. Mas a frustração de quem redigia os relatórios ia crescendo: “Ainda não se convenceu o informador a ter contactos com outros responsáveis”; “Ele não mostra  iniciativa para se encontrar com portugueses na embaixada”; “Tem potencial para se tornar mais valioso”.

No mesmo ano, informou que tinha sido colocado um cadeado com código secreto na porta que separava os gabinetes da embaixada dos gabinetes do consulado e outro cadeado na porta da sala dos telex. Mas não conseguiu indicar o tipo ou marca do cadeado.

Em 1987, foi também ela que informou, com base em conversas que ouviu do cônsul português, que vinha um novo embaixador a caminho de Berlim, referindo esta nomeação como um castigo, na sequência de um desentendimento com o ministro Português.

E em 1988 relatou o problema com o passaporte de um secretário da embaixada que andava de Porsche. Tinha a abreviatura dr. antes do nome, apesar de não ser médico — algo que era comum em Portugal para licenciados, mas provocou estranheza na RDA.

Tudo informações com relevância muito diferente, mas que eram canalizadas para a Stasi, que concentrava tudo e cruzava estes dados com os fornecidos por outros informadores.

Os dois portugueses recrutados pela Stasi como informadores

Para cumprir o objetivo de controlar ainda melhor a embaixada portuguesa em Berlim, poderia fazer toda a diferença recrutar informadores portugueses, com quem o pessoal diplomático pudesse ter um contacto mais fácil e de maiores confiança. Em pelo menos dois casos, a polícia política da RDA teve algum sucesso. O Observador conhece as suas identidades, mas não as vai expor, tendo em conta a complexidade das situações em que se viram envolvidos, e a possibilidade de adulteração da realidade por parte da Stasi nos documentos que escreveu sobre eles.

Um dos portugueses surge identificado pela polícia política com o nome de código “José”, funcionário de uma universidade. Ainda está vivo, mas o Observador não o conseguiu localizar até ao momento nem na Alemanha nem em Portugal. Na visão dos seus controleiros da Stasi, era sempre pontual e de confiança, nunca falhava os encontros de 3 em 3 semanas, mas avançava poucas informações relevantes. Era amigo de um alto funcionário da embaixada e “não se sentia bem pessoalmente por estar a dar informação sobre os amigos”. Contudo disse compreender a necessidade de um sistema de informações. Fez por isso um esforço para corresponder e tentava marcar encontros com o diplomata que conhecia antes de cada encontro com o responsável do Ministério para a Segurança do Estado a quem passava informações.

A frustração de quem redigia os relatórios ia crescendo: “Ainda não se convenceu o informador a ter contactos com outros responsáveis”; “Ele não mostra  iniciativa para se encontrar com portugueses na embaixada”; “Tem potencial para se tornar mais valioso”.

Os primeiros encontros foram num miradouro, mas tiveram de ser alterados para um local a que deram o nome de código “Seerose”. Chegaram a oferecer-lhe uma garrafa de cognac como recompensa pelo seu trabalho como informador. Mas em 1983 o contacto foi interrompido, por ele ter poucas possibilidades operativas, muitas obrigações no trabalho e problemas de saúde.

A outra portuguesa escolheu o nome de código “Bárbara”.Era uma jovem estudante comunista e a Stasi escreveu um “Relatório sobre o recrutamento bem sucedido de uma informadora”. Foram combinadas cinco regras com a candidata:

  1. Os encontros futuros não decorreriam em espaços públicos
  2. A candidata compromete-se a ser honesta e rigorosa a trabalhar em conjunto com o Ministério para a Segurança do Estado e manterá sempre segredo
  3. Do lado da candidata e dos colegas membros da Stasi, está a ser combinado um encontro regular de 4 em 4 semanas
  4. A candidata vai trabalhar de forma contínua em informações sobre a embaixada portuguesa e os seus responsáveis. (…) Vai entrar em contacto com portugueses embaixada. Adicionalmente, a candidata vai ser usada para obter informação de pessoas interessantes do seu círculo de amizades
  5. Escolheu o nome de código Barbara para trabalhar connosco”.

Foi também traçado um plano para “Bárbara” receber “treino político-ideológico” para os problemas contemporâneos da política externa entre a RDA e Portugal, e também “treino adicional” para poder trabalhar oficialmente com o Ministério para a Segurança do Estado. Combinaram também traçar “um plano de vigilância”, no qual envolveriam outros três informadores, incluindo “Rita” e “Jose”.

A maior parte dos documentos mostra a relutância de “Bárbara” em colaborar, mas a Stasi argumentava que era necessário ter um instrumento como esta polícia política num estado socialista “para proteger as conquistas do socialismo contra qualquer meio de ataque à classe operária”. E que ela também tinha o “dever internacional de proteger o povo português face aos ataques do imperialismo e dos seus serviços secretos”. Concordaram que ela não enviaria relatórios por escrito, para não ficar vinculada a este papel para o resto da vida.

No seu ficheiro há um recibo assinado “Barbara”, segundo o qual terá recebido 250 marcos em Dezembro de 1978. Há relatos de encontros com o pessoal da Stasi num carro, avaliações psicológicas (ex: “Responde às perguntas sem duvidar, sem pensar muito, pode assumir-se que respondeu de forma honesta”), palavras de código para os pontos de encontro, e descrições da forma como se relacionava com alguns diplomatas portugueses: “Tratam-se por tu. E trocam beijos. O contacto com x está ao nível da amizade.”

A informadora deixou a RDA no início dos anos 80, pelo que os encontros terminaram aí e o seu processo foi fechado no arquivo secreto. Quase 40 anos depois, o Observador estabeleceu contacto com “Bárbara”, que ficou bastante incomodada. Disse que na altura nem sabia que estava a lidar com a Stasi, que começou por fazer pequenos trabalhos de tradução e só depois percebeu que afinal estavam era interessados em informações sobre os portugueses da sua rede de contactos. Garante que nunca teve estrutura psicológica nem interesse em ser espia. E dá a entender que terá sido chantageada, mas prefere não falar mais sobre este assunto.

Entre os outros informadores identificados, sobressai uma mulher alemã que usou o nome de código “Anne” e que foi funcionária da embaixada portuguesa. Recebeu 350 marcos e algumas lembranças para a compensar pelo seu trabalho. Também rejeitou enviar notas escritas, para que esses papéis não viessem a ser usados contra ela no futuro.

“Bernard” era o nome de código de outro informador alemão que trabalhou na embaixada. Dava informações sobre o aparecimento de um carro novo no edifício, os jornais recebidos na representação diplomática, ou a extensão dos telegramas que chegavam de Portugal, que chegaram a perfazer 2 metros. Queixava-se de alguma desorganização, devido à falta de uma empregada de limpeza.

“Egon” foi recrutado por estar a fazer um doutoramento em literatura portuguesa. O Ministério para a Segurança do Estado instruiu-o para pedir ajuda à embaixada para encontrar obras literárias portuguesas e assim estabelecer contacto com os diplomatas portugueses.

Este cerco permanente ao pessoal da embaixada permitia à Stasi vigiar as suas movimentações mas também saber com algum grau de detalhe o que pensavam e o que comunicavam ao governo português. Por exemplo, na sequência do XI congresso do SED, o Partido Socialista Unificado da Alemanha (que controlava o regime), o embaixador português informou o ministro dos Negócios Estrangeiros que via o poder do secretário-geral Erich Honecker a diminuir e admitia como possível uma mudança na liderança.

Nos anos 80, emergiu uma nova informadora infiltrada na embaixada, “Rita”, que chegou a rivalizar com “Eva” na quantidade e qualidade dos relatórios que enviava. Foi “Rita” que soube de um telegrama secreto e reservado enviado pelo MNE português em 1984, segundo o qual, apesar da Guerra Fria, os EUA estavam interessados em desenvolver relações económicas com países socialistas, incluindo a RDA. E Portugal devia ser um aliado dos americanos nessa estratégia.

“Rita” também reportou que o embaixador Lopes, em 1985, estava contra a visita do ministro dos Negócios Estrangeiros português à RDA por entender que a RDA não iria cumprir o que fosse acordado quanto às relações bilaterais.

E em 1986 foi novamente “Rita” que alertou a Stasi que o ministro dos Negócios Estrangeiros português (Pedro Pires de Miranda, no I Governo de Cavaco Silva) tinha aconselhado a embaixada a passar a conceder visto de apenas 4 dias, não renováveis, para os portadores de correio diplomático da RDA. E teriam de ser pedidos com 15 dias de antecedência.

Em Junho do mesmo ano, deu conta da intenção do embaixador Coelho Lopes de apertar o controlo sobre os cidadãos portugueses na RDA, tendo pedido fotocópias dos documentos de todos eles e informações sobre deslocações ao estrangeiro. Em 1980 havia 22 estudantes portugueses no país e mais 116 portugueses por outros motivos (além do pessoal da embaixada). A Stasi desconfiou que o objectivo era cruzar essas informações com os serviços secretos americanos ou portugueses, para melhor monitorizar eventuais passos suspeitos fora da Alemanha de Leste.

As visitas de portugueses também eram fortemente vigiadas. Em dezembro de 1979, uma delegação portuguesa que se deslocou a Berlim para negociações com o Governo da RDA ficou alojada no Interhotel “Metropol”. No quarto 936, a empregada de limpeza encontrou 20 páginas de documentos relacionados com as negociações, com notas preparatórias, que foram entregues à Stasi.

Álvaro Cunhal, líder comunista, foi recebido nas suas várias visitas à RDA por Erich Honecker, o secretário-geral do SED (Partido Socialista Unificado da Alemanha). Apesar dessa deferência, a Stasi também observava todas as visitas e anotava-as num relatório, mesmo as partes desinteressantes: “O dia continuou sem mais eventos de especial”.

Os quatro agentes infiltrados da Stasi em Portugal

Não foram localizados no arquivo da Stasi relatórios de informadores que estivessem em Portugal, mas isso não quer dizer que não tenham existido. Segundo um responsável pelo arquivo, quase todos os registos da antiga secção de espionagem no estrangeiro desapareceram.

Mesmo assim, um mero cruzamento entre a lista de pessoal diplomático da RDA acreditado em Lisboa com o arquivo da Stasi permite encontrar pelo menos quatro agentes infiltrados, que formalmente desempenhariam as funções de segundo secretário ou adido, mas na prática poderiam continuar a trabalhar para a polícia política do seu país. Tinham os nomes de código “Brenner”, “Jensen”, “Boden” e “Jochen”. Este último nome de código pertencia a Julian Hollender, que era informador da Stasi e se tornou o embaixador da RDA em Portugal a partir de 1985.

O muro de Berlim caiu em 1989, mas Portugal ainda seria cenário de um acontecimento relevante relacionado com a polícia política da Alemanha de Leste. O coronel Rainer Wiegand, da direcção de contraespionagem da Stasi, que estava em comunicação constante com o KGB, recrutou vários trabalhadores portugueses para projectos de construção em Berlim, mas a seguir à queda do muro, foi um dos primeiros a desertar e a passar segredos aos serviços secretos internacionais.

Foi graças a um destes interrogatórios que foram presos os terroristas líbios responsáveis pelo atentado numa discoteca de Berlim, em 1986. A 17 de Junho de 1996, pouco antes de ser chamado a depor em tribunal neste processo, Rainer Wiegand sofreu um acidente de carro em Portugal, segundo o livro “Stasi: The Untold Story Of The East German Secret Police”, de John O. Koehler. Estava em viagem de negócios com a esposa e há três versões diferentes sobre o acidente. Os seus bens pessoais nunca apareceram. As autoridades judiciais e os serviços de espionagem alemãs suspeitaram que ele tenha sido assassinado.

Pedro Jorge Castro – Observador

A História de Portugal em banda desenhada, animada.

Muito interessante:

https://www.facebook.com/100001454532782/videos/2363725630352565/?t=129

Um almoço com Pedro Passos Coelho.

Achei Pedro Passos Coelho um homem provavelmente justo e evidentemente decente. Mesmo as pessoas que obviamente despreza são por ele desprezadas com decência, e ridicularizadas com adjectivos justos.

Na quinta-feira, almocei com Pedro Passos Coelho. Nunca tinha falado com ele, o que talvez seja inacreditável para os avençados do PS. Os avençados do PS, que recebem favores ou salário para difamar terceiros, não compreendem que se elogie, estime ou admire um político apenas porque o julgamos merecedor do elogio, da estima ou da admiração. Há muito que, com ocasionais e no fundo ligeiras ressalvas, Pedro Passos Coelho me merece tudo isso, caso raríssimo numa pessoa do seu ofício. Claro que Pedro Passos Coelho dispensa os meus encómios, já que as suas virtudes foram e continuam a ser melhor exaltadas pela intensidade do ódio, ou medo, que lhe dedicam e pelo carácter dos que exibem esse ódio. Ou esse medo. No desolador meio da política, e no miserável meio da política nacional, Pedro Passos Coelho não é um homem comum.

Pedro Passos Coelho pareceu-me um homem comum, embora muito mais educado e muito mais sereno e muito mais resistente do que os homens comuns. Durante anos, os anos em que governou, aconteceu-me imaginar o modo como ele sentiria a fúria organizada e injusta que lhe dedicavam. Após duas ou três horas de conversa, sou capaz de apostar numa resignação suave e, logo a seguir, na indiferença. Estas coisas parecem estranhas à época em que um primeiro-ministro reage às críticas de transeuntes oferecendo-lhes porrada.

Até sob padrões menos radicalmente boçais, Pedro Passos Coelho é diferente: quando alguns dos portugueses lhe confiaram um país em ruínas, e alguns dos portugueses restantes fizeram o possível por manter as condições que determinaram as ruínas, Pedro Passos Coelho fez o impossível e, simples e genuinamente, não ligou aos insultos e às ameaças. Entre sucessivas sabotagens, seguiu o caminho que entendeu adequado à salvação de um pardieiro que não agradece salvamentos. Das vezes em que hesitou no caminho, ou em que mudou de direcção, ou em que falhou claramente, nenhuma terá sido por receio dos bonecos amestrados que berravam a “Grândola” onde calhava.

Sempre suspeitei e agora estou certo de que Pedro Passos Coelho possui o arcaboiço – ou o dom – necessário para conviver em sincera paz com a impopularidade, ainda que uma impopularidade fabricada. Em democracia, e para cúmulo uma democracia minada contra ele, não é uma proeza insignificante: é a matéria de que se compõem os estadistas a sério, por cá, e não só por cá, uma espécie próxima da extinção. Com ele, o exercício do poder não se confunde com a troca de cuecas na praia ou com visitas programadas a reboque do sentimentalismo canalha. Além disso, ao contrário de Sá Carneiro, que conheci em criança, Pedro Passos Coelho não transmite “carisma”. Ao contrário de Soares e Cavaco, que entrevistei há séculos, Pedro Passos Coelho não emana sobranceria nem rigidez, respectivamente. Ao contrário de quase todos os outros, Pedro Passos Coelho não inspira desconfiança, repulsa, depressão ou vergonha. O que se sente em Pedro Passos Coelho é calma.

Num dos erros mais espectaculares da minha infalível carreira de cronista, a princípio não tive qualquer esperança em Pedro Passos Coelho. Comecei o almoço por aí, pela asneira de ter tomado a calma, e a paciência e a polidez dele por tolerância para com os desastres do “eng.” Sócrates. O tempo deu-lhe razão e embaraçou-me devidamente. Também é verdade que a sua paciência com o “eng.” Sócrates não foi infinita, mas essa nem um santo a teria. Pedro Passos Coelho não é um santo, ou um asceta. Achei-o um sujeito com graça, que conta histórias com invulgar clareza e cuja técnica de demolir adversários implica apartes subtis e venenosos, embalados por um sorriso discreto. Achei-o, igualmente, um sujeito sem pingo de rancor. Mesmo as pessoas que obviamente despreza são por ele desprezadas com decência, e ridicularizadas com adjectivos justos. Achei Pedro Passos Coelho um homem provavelmente justo e evidentemente decente.

É plausível, se formos optimistas, que Pedro Passos Coelho não seja o único homem justo e decente da política nacional. É, sem dúvida, o único com estatuto suficiente para devolver um simulacro de civilidade a um regime afundado por brutos ou salteadores (isto se não acumularem). Não é uma mera opinião: é um facto atestado pelo ressentimento que desperta entre os pares que, hoje, claramente não tem. Na política e nas suas metástases, consegue-se criar uma escala da pulhice em que o grau aumenta de forma directamente proporcional à aversão a Pedro Passos Coelho. Sucede que ele dispensa a aversão dos pulhas para se distinguir.

Não lhe perguntei se tencionava regressar (e se perguntasse não diria aqui a resposta). Não sei se a progressiva degradação da nossa vida pública permitirá sequer o seu regresso. Com azar, imenso azar, a dignidade de Pedro Passos Coelho será um dia lembrada enquanto o último, e invulgar, vestígio de um mundo que entretanto se afundou. Aliás, está a afundar-se.

Alberto Gonçalves - Colunista do Observador

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

A intolerância dos “tolerantes”

Foi uma vergonha a virulência dos ataques à volta do artigo de opinião de um miúdo de 17 anos. Mas foi também um sinal de alarme: o espaço público está doente, mais intolerante e muito menos livre.

Algo está mal no espaço público quando este fica preenchido por discussões à volta de um artigo de opinião de um miúdo de 17 anos. E algo está ainda pior quando, a propósito desse artigo de opinião, o rapaz de 17 anos que o escreveu se vê alvo de sucessivas tentativas de humilhação, chacota, difamações (a si e à sua família), agressões verbais e bullying nas redes sociais. Foi o que aconteceu a Manuel Bourbon Ribeiro que, numa carta aberta ao país, partilhou a sua opinião sobre os desafios sociais e políticos do momento. Problema? É loiro, tem dois apelidos, parece um “beto” e defendeu o que, no jargão político, se chamaria de “visão conservadora” – algo que, no mundo enviesado do comentário político e das redes sociais, o faz ascender a caricatura da direita conservadora, uma heresia punível com ódio e apedrejamento virtual. Assim, sem perceber como, um miúdo de 17 anos pousou os dois pés num combate político radicalizado – e foi convertido em saco de pancada, não só por “anónimos” mas também por políticos, jornalistas ou humoristas.

Não creio que valha a pena discutir o conteúdo do artigo de opinião em causa. Por maior maturidade que tenha para a sua idade, um artigo de um miúdo de 17 anos estará inevitavelmente repleto de certezas, de generalizações, de frases feitas e de uma certa ingenuidade – e, por isso, acertará numas coisas e errará noutras (faz parte e é mesmo assim). Do mesmo modo, seria contraproducente rebater as violentas acusações de que o autor e a sua família foram alvo – e eu, que até sou amigo da família, sei o quão absurdo foi o teor desses ataques. Ora, pondo tudo isso de parte, o episódio tem algo na sua raiz que justifica uma reflexão sobre o estado do nosso espaço público: a discordância de opinião (e logo com a de um miúdo de 17 anos) justifica o que aconteceu – achincalhamento, agressões verbais, ostracização social? Obviamente que não. Mas, infelizmente, este caso tem cada vez menos algo de especial: o bullying virtual e a agressividade vigente nas redes sociais são a nova realidade, seja no dia-a-dia dos mais novos ou no próprio debate político.

Eis, portanto, o contributo do artigo de Manuel Bourbon Ribeiro. Fazer-nos constatar (novamente) que o espaço público está a ser corroído pelo mau uso das redes sociais, onde as discussões e trocas de opinião foram substituídas por intolerância à diferença e por pessoalização dos ataques. Lembrar-nos do perigo do desaparecimento do diálogo, na medida em que esse vazio abala o pressuposto de ter na discussão e na argumentação os instrumentos nobres para a obtenção das melhores soluções para a comunidade – é, de resto, precisamente essa a vocação de um parlamento: representar as várias visões presentes numa sociedade e pô-las em diálogo. Mostrar que uma sociedade assim, envenenada pelo tribalismo identitário, se fragmenta em grupos radicalizados onde o número faz a força das tiranias de uns que oprimem a liberdade de outros. E, por fim, revelar que esta intolerância tem origem, frequentemente, nos grupos sociais que se dizem mais “tolerantes” mas que, na prática, se alimentam da intimidação e do silenciamento daqueles que de si discordam. Repare-se: mais do que ao conteúdo do artigo, as críticas foram apontadas ao autor – ao seu nome, ao seu aspecto, à sua condição social, ao seu alegado privilégio – e vieram precisamente dos que, à esquerda e em nome de maior justiça social, censuram a perseguição das minorias sociais, rejeitam as avaliações baseadas em preconceitos sociais e pretendem abolir o predomínio da classe na ascensão social. Contra este miúdo de 17 anos, foi tudo isso que fizeram: a mais odiosa rejeição do “outro” surgiu destes “tolerantes”.

Houve um tempo (e não foi assim há tanto tempo) em que, argumentos trocados, se procuravam pontos comuns ou, no limite, acordava-se em discordar. Não é esse o ar deste novo tempo dominado pela imediatez das redes sociais. Já não se ouve o que os outros dizem, fala-se por cima. Já não se argumenta, ataca-se pessoalmente o adversário. Já não se recorre a factos, especula-se através do preconceito. Já não se forjam entendimentos, queimam-se pontes. Já não se formam debates, geram-se fóruns de humilhação. Já não se faz do discurso um nobre instrumento democrático, lançam-se acusações. Eis um espaço público propício à mentira e desinteressado da verdade, que vai aceleradamente corroendo os pilares de uma sociedade livre.

Portanto, após os milhares de cliques, leituras e partilhas do artigo, o que mais importa reter é isto. Sim, foi uma vergonha lamentável a virulência dos ataques à volta do artigo de opinião de um miúdo de 17 anos – ainda mais quando esses ataques foram personalizados no rapaz e vieram de políticos e jornalistas, pessoas que na sua vida profissional têm o dever de cuidar do debate público. Mas foi também um retracto do nosso tempo e um sinal de alarme que faríamos bem em escutar: o espaço público está doente, mais intolerante e muito menos livre.

Alexandre Homem Cristo