sexta-feira, 10 de junho de 2022

A vida das mulheres do Opus Dei.

As celibatárias vivem geralmente em centros da Obra, onde várias regras as mantêm afastadas dos homens. Até aos anos 90, não podiam usar calças. Entre as casadas, a maioria dos membros, há quem tenha 14 filhos. Rezam e vão à missa todos os dias.

Afila durava há mais de meia hora quando Sofia Alves foi discretamente encaminhada para fora do palco. Num dos auditórios da Universidade (a Católica, claro), dezenas de mulheres tinham esperado, de pé, por uma selfie e um abraço com a famosa actriz portuguesa. Nos corredores da sala, mesmo os que não tentavam aproximar-se especulavam sobre a sua proximidade ao Opus Dei. Afinal, Sofia Alves tinha acabado de apresentar a 24ª edição de Caminho, o livro do fundador da Obra, Josemaría Escrivá.

Visivelmente emocionada, a actriz revelou que é normal rezar o terço nos intervalos das gravações de novelas, falou do banco que a acompanha em todas as idas a Fátima, da carta que escreveu ao Papa Bento XVI e da resposta que recebeu do próprio. Nunca pediu admissão ao Opus Dei, garantiu à SÁBADO, mas é normal abrir e ler passagens do Caminho. E revelou que o desafio para apresentar a obra ao lado do cardeal Tolentino de Mendonça partiu de José Rafael Espírito Santo, líder do Opus Dei em Portugal.
A assistir estavam, no passado dia 31 de Março, algumas das mulheres mais poderosas da Obra. E muitas outras. Porque apesar de representarem a face menos visível e conhecida do Opus Dei, as mulheres são, na verdade, a maioria - em Portugal, há 1.027 membros do sexo feminino, 64% do total; no mundo, são mais de 50 mil e 57% dos que integram a Obra. "Ao contrário das primeiras décadas da história do Opus Dei, a partir dos anos 60 o crescimento é claramente impulsionado pelas mulheres", diz à SÁBADO Smitá Coissoró, 62 anos, uma das oito mulheres com mais responsabilidade em Portugal.

Smitá Coissoró, fotografada para a SÁBADO na casa do pai, nas Caldas da Rainha, é uma das oito mulheres no topo da hierarquia em Portugal

Smitá Coissoró, fotografada para a SÁBADO na casa do pai, nas Caldas da Rainha, é uma das oito mulheres no topo da hierarquia em PortugalCarlos Barroso

Faz parte da chamada assessoria regional feminina, que a par da masculina coordena todos os membros e actividades do Opus Dei. Acima de ambas está o vigário regional, que os estatutos da Obra exigem que seja um padre e, portanto, um homem - decide com o apoio destes dois conselhos, ambos formados apenas por numerários, membros que fazem voto de celibato.
A vida na sede da Obra
Sempre que Smitá está na sede central, na rua Esquerda 54, no Paço do Lumiar, em Lisboa, Amélia, 55 anos e também numerária, sabe disso. Na recepção do Opus Dei, onde atende o telefone público da Obra, os quadros na parede representam as três casas do complexo - uma primeira moradia habitada pelos homens, uma segunda onde vivem sete das oito mulheres da assessoria regional, e a última para os serviços de apoio, onde Amélia partilha casa com outras numerárias auxiliares, que se ocupam de tarefas como a limpeza e a preparação de refeições.

Dentro destes quadros, o nome de cada um dos membros tem uma luz associada: se a luz que lhes corresponde estiver acesa, Amélia sabe que estão em casa e que lhes pode passar uma chamada; se estiver apagada, é porque saíram. Quem acende e apaga as luzes? Depende. Os homens têm um quadro na sua moradia, que comunica com o da recepção, e são eles que sinalizam a saída da sede; já as mulheres avisam pessoalmente as recepcionistas. Amélia é uma das duas responsáveis por oito linhas telefónicas - atende cerca de 30 chamadas por dia, mais quando há aniversários importantes, como os do vigário regional.
Ali, na sede, as portuguesas no topo da hierarquia do Opus Dei vivem a mais de 100 metros dos homens. Há, além disso, várias outras medidas de separação entre celibatários, uma separação que se pratica em todos os centros da Obra, onde a maioria dos numerários vive. "Os horários de limpeza são fixos e estabelecidos de forma a que as casas fiquem vazias na zona onde se vão limpar. Geralmente há duas portas separadas por uns metros, que se fecham dos dois lados para que, quando as mulheres vão limpar, nenhum homem entre. Pode-se limpar anos a fio a casa dos homens e nunca lhes ver a cara, a não ser que se sirva à mesa. Se servir à mesa, serviço feito apenas por mulheres, como todo o serviço doméstico, só o director do centro lhes pode dirigir a palavra. E os pedidos são feitos por um telefone interno, usado por directores e directoras", explica Carla Almeida, que saiu do Opus Dei em 2014, ao fim de 23 anos como agregada (e, tal como as numerárias, também celibatária); responde à SÁBADO a partir da Suíça, para onde se mudou há cinco anos.

"Tinha para mim que não deveria fomentar relações individuais com raparigas, para evitar paixões", acrescenta à SÁBADO um Ex-numerário, de 30 anos, recém-casado. Nos centros de estudos e clubes que frequentou, havia muitas vezes um biombo a separar a cozinha da sala. "Quando as mulheres servem refeições, geralmente fazem-no antes de os homens entrarem. E não é normal ter fome e ir à cozinha buscar um pacote de bolachas, por exemplo. É uma forma de proteger o celibato", diz o mesmo antigo numerário.
Smitá Coissoró acha que é preciso desmistificar alguns destes temas. No que diz respeito às limpezas, garante que os procedimentos - que não detalha - asseguram "a autonomia das mulheres" que tratam destas tarefas. "Tem de haver um modo de fazer este trabalho com independência, profissionalismo e qualidade. Para isso há horários e não é suposto as pessoas estarem a usar as zonas enquanto são limpas. E isto acontece tanto nos centros onde vivem homens como nos centros onde vivem mulheres." De resto, acrescenta, "é muito curto o tempo em que as pessoas do Opus Dei estão em retiros, recoleções, aulas de vida cristã e outras actividades só de mulheres ou só de homens" e a Opus Dei "não é a única organização da Igreja que funciona assim".



Biombos separam mulheres
As numerárias auxiliares são uma categoria exclusivamente feminina e uma das principais fontes de polémica da Obra. "É uma vocação específica dentro das numerárias", defende Amélia, que antes de ser recepcionista assegurou outras tarefas e diz nunca se ter sentido discriminada. "Não tinha era muito jeito para a cozinha", confessa.
Dentro da Obra, há quem fale num dom especial feminino. Isabel Sánchez, 52 anos e desde 2010 secretária central da Assessoria do Opus Dei em Roma, o mais importante cargo de uma mulher na Obra, prefere colocar as coisas de outra forma. Para a espanhola que está no topo da hierarquia feminina, este "dom" é mais uma "expertise", diz à SÁBADO em Lisboa, onde esteve para apresentar a tradução do livro que lançou em 2020, Procurar o Norte num Bosque de Desafios (Aletheia). "Fazemos esses trabalhos há muito tempo, temos um património adquirido e podemos contagiar. E o meu sonho é que consigamos de facto contagiar", diz.

Aos homens também? "Aos homens também. Sigo uma conta no Instagram que se chama Soyamodecasa, e adoro a forma como aquele rapaz cuida da casa. Aprendo muito com ele. O que creio que vai acontecer é que muitos homens, incentivados pelo exemplo das numerárias auxiliares, vão escolher profissões ligadas ao cuidado ou vão optar por cuidar dos que mais gostam", afirma. Mas nem por isso é provável que, no futuro, os numerários auxiliares possam ser homens, admite a mulher que coordena cerca de 50 mil membros do sexo feminino em 70 países. "Não é o que viu o Fundador e não temos capacidade de acrescentar à fundação coisas que não se viram naquele momento."











Jardim Gonçalves e a mulher, Assunção, pediram a admissão à Obra ao mesmo tempo, como supranumerários

O primeiro centro de mulheres
Nem sempre foi assim, conta Smitá Coissoró. "Na primeira residência da Obra [que começou em Espanha, em 1928, e passou a admitir mulheres em 1930], o trabalho doméstico era feito por homens", recorda. "Era o fundador que fazia as camas. Tinham cozinheiros, homens que faziam as limpezas. Depois, o modelo era que esse trabalho fosse feito por homens nos centros de homens e por mulheres nos centros de mulheres. Mas o fundador percebeu que faltava alguma coisa para a Obra ser família. Começou a pedir ajuda à irmã e à mãe e viu uma diferença completa. Andava a rezar por isto e Deus fez-lhe ver que este trabalho não era só um trabalho funcional, mas era também um trabalho formativo, de criar família, que as mulheres tinham de liderar", detalha.

Em Portugal, o primeiro centro para mulheres abriu a 1 de Dezembro de 1951, na Rua Buenos Aires à Estrela, em Lisboa. "Lembro-me de, naquele tempo, termos tão poucas coisas que nem um faqueiro completo havia. Partilhávamos a única faca", contou Elina Morais Neves, que pediu a admissão à Obra em 1954, no livro Reação em Cadeia. Depois do centro fundaram uma residência universitária feminina, os Álamos.
Foi para essa residência que Ana Franco, que crescera em Ponta Delgada, nos Açores, se mudou nos anos 60, para estudar Belas Artes. "Gostei imenso. Estava num quarto com mais duas estudantes. Chamávamos-lhe ‘A Taberna’, porque como ficava no segundo piso, fazíamos uma vida mais à vontade. Tínhamos uma varanda e, quando estava muito calor, púnhamos as camas lá fora para dormir. Mas tínhamos que ter cuidado: se acordássemos tarde os meninos da residência em frente viam-nos de babydoll", conta à SÁBADO.
Durante mais de 20 anos, Ana Franco, hoje com 76, não teve dúvidas: ser numerária era a sua vocação, "uma chamada de Deus". Mudava de centro em função do local onde era colocada como professora do ensino secundário - ao longo da sua carreira deu aulas à cantora Carolina Deslandes e ao maestro Martim Sousa Tavares.
Voltaria a mudar de vida no dia em que a irmã mais velha lhe falou num amigo que parecia ter o mesmo nome do médico que aos 7 anos a curara de uma doença desconhecida. Depois de confirmar com os pais que era mesmo ele, quis agradecer. "Foi o meu marido [que morreu poucos dias depois de Ana dar esta entrevista à SÁBADO] que descobriu que eu tinha uma tuberculose renal", conta. "Entre os 3 e os 7 anos, passei muito tempo na cama. Por isso fui a casa dele para lhe agradecer ter-me salvo a vida. Quando saímos a minha irmã disse: ‘Tem cuidado que ele tem mais 20 anos que tu’", ri-se.
Tudo começou assim. Viram-se pela primeira vez em Dezembro e em Maio do ano seguinte estavam casados. No seu último dia no Opus Dei, foi Matilde Cabral, nessa altura uma das responsáveis máximas da Obra em Portugal, que lhe deu boleia, de carro, até à sua nova casa. "Sempre me senti livre. Livre para entrar e livre para sair", diz Ana Franco, que ainda assim aceitou tirar uns dias para meditar no assunto. "Pediram-me para pensar e eu disse logo que não valia a pena, que estava decididíssima. ‘Mas está bem, vou pensar 15 dias.’ Fui muito feliz na Obra."

Nem todas as saídas são, como a de Ana Franco, pacíficas. Em 2009, Carla Almeida entrou em "colapso" com uma depressão. Nessa altura, geria uma casa de retiros da Obra, no Caramulo. Foi aconselhada a ir a um psiquiatra, que assegura ser da Obra. "[Ele] Dizia-me que era uma prova de Deus, que devia rezar mais, dar uns passeios." Apesar de medicada, começou a ter pensamentos suicidas e a ser acompanhada em permanência por uma numerária, que assistia às consultas. "Até que o meu irmão interveio e me levou à psiquiatra que considero ter-me salvo a vida", diz. A seguir veio uma psicóloga e, em 2014, "depois de muita luta com o governo da Obra, de vencer medos e de enfrentar directores", saiu do Opus Dei. Porque é que não saiu antes? "O medo do castigo de Deus era aterrador e actuava para lá do que tentava racionalizar." "Lamento muito que alguma pessoa tenha passado por isso", diz Smitá Coissoró.
Carla Almeida acredita que esse medo era cultivado na formação e nas meditações. "A repetição exaustiva de frases para nunca seres infiel, os constantes actos de contrição. E outro sem-fim de técnicas que nos fazem estar sempre em alerta a detectar pecados, a sentir-se em culpa e a pedir perdão", conta. O antigo numerário de 30 anos que falou com a SÁBADO saiu pacificamente, mas não aconteceu o mesmo com uma Ex-namorada sua, que também abandonou o celibato e o Opus Dei: "Disseram-lhe que nunca ia ser feliz fora da Obra. Foi uma coisa que a marcou muito."


Os herdeiros Jardim Gonçalves
Carla Almeida foi uma das primeiras alunas do curso de Nutrição da Universidade de Navarra. Ao mesmo tempo, frequentou o centro de Estudos de Investigação em Ciências Domésticas, para perceber melhor como funcionavam os centros e espaços de retiros. "Pamplona foi a experiência mais aterradora que tive no Opus Dei. No ano em que cheguei existiam 66 centros da Obra ali, e foram crescendo. Dizia-se, a brincar, que quem apanhasse o autocarro naquela zona e não fosse da Obra, se não tivesse cuidado, seria o próximo."
Nos centros e clubes, as múltiplas actividades - clubes de leitura, montanhismo, culinária ou música clássica - alimentavam vocações. "Era patético as crises de ciúmes quando havia uma amiga em comum que metia na cabeça que deveria pedir admissão com uma e não com outra", diz. Uns tempos antes de escrever a carta a pedir a admissão ao Opus, a directora espiritual que a acompanhava fez-lhe, diz, "imensas perguntas para tentar saber se ainda era virgem". Também "tive de ir falar com uma médica da Obra e o tema era basicamente o mesmo".
No último ano que esteve em Pamplona, entrou pela primeira vez em depressão. Ao regressar a Portugal, queria trabalhar fora da Obra. Não aconteceu: "Alertaram-me para uma cláusula da bolsa de estudo que recebi para ir estudar para Navarra. Teria de trabalhar pelo menos 20 anos para uma casa do Opus Dei como governante ou pagar a bolsa. E eu nunca poderia pagar uma bolsa juntando dinheiro que entregava mensalmente ao Opus Dei e que deixava de me pertencer, a minha família não tinha nem eu iria pedir-lhes tal sacrifício." Por isso, um mês depois de regressar estava a gerir uma casa de retiros e convívios. "Gostei muito do meu trabalho ali, talvez porque a comparar com Pamplona era o paraíso. Tinha deixado para trás os maiores fanáticos da Obra que conheci em 25 anos", diz.

Foi em Espanha que Carla conheceu as primeiras famílias numerosas do Opus Dei, famílias com mais de 10 filhos, que enchiam os clubes e se transformavam em futuros numerários e supranumerários (membros não celibatários). Em Portugal, Sofia Jardim Gonçalves, filha do antigo banqueiro Jorge Jardim Gonçalves, é uma das supranumerárias com uma descendência mais numerosa - tem 14 filhos, sete rapazes e sete raparigas. Tantos que, a dada altura, a mãe, Assunção (que morreu em 2020) deixou de lhe dar os parabéns quando nascia mais um.
"Nos anos em Madrid, licenciada em Economia e com uma carreira promissora, nunca quis ser outra coisa do que mãe. E talvez Assunção não perceba o porquê de a filha arriscar a sua saúde e a estabilidade financeira dos filhos", escreveu Luís Osório na biografia Jorge Jardim Gonçalves - O Poder do Silêncio. Quando Sofia era miúda, tinha uma amiga com 19 irmãos, que fez questão de convidar para o seu casamento com João Teixeira Duarte, filho do patriarca Teixeira Duarte, uma das famílias ligadas à fundação do BCP.


O início dos colégios em Portugal
A ligação à Obra não era novidade na família. Os pais tinham regressado a Portugal em 1977, e enquanto Jardim Gonçalves trabalhava como administrador do Banco Português do Atlântico, Assunção liderava a implementação de quatro escolas ligadas ao Opus Dei - os primeiros colégios, o Planalto para rapazes e o Mira Rio para raparigas, abriram em 1979, em Lisboa. Seguiram-se dois no Porto.
A ideia surgiu em Espanha, quando não conseguiram vagas no ensino oficial para os cinco filhos, contou Assunção a José Freire Antunes, para o livro Opus Dei em Portugal - O Testemunho de 50 Homens e Mulheres. Apesar de haver 400 casais em lista de espera, obtiveram vaga nos colégios da Obra. "Considero a nossa ida para Espanha quase um chamamento, digamos assim, para conhecermos melhor o Opus Dei", lê-se no livro. Depois de dois retiros, o primeiro em Portugal, o segundo em Espanha, Assunção começou a frequentar um centro do Opus Dei. Jardim Gonçalves também já se tinha aproximado da Prelatura. "Quando me decidi por dentro, perguntei ao meu marido se achava bem que entrássemos os dois para a Obra. Respondeu-me: ‘Tenho estado à tua espera.’"

Em Portugal, os colégios que ajudaram a fundar mantêm até hoje a separação entre rapazes e raparigas. Mais: "A partir do primeiro ciclo só tive professores homens. Mulheres só havia funcionárias da limpeza e assistentes", recorda o Ex-numerário de 30 anos que falou com a SÁBADO em anonimato. Uma divisão que o antigo banqueiro Paulo Teixeira Pinto, durante 25 anos membro da Obra, nunca percebeu, contou na biografia De Que Cor É o Medo, de Sílvia de Oliveira. "Outra coisa que ainda hoje o incomoda é a separação que existe entre homens e mulheres. Nos colégios, nos retiros e até nas simples meditações. Esta desconfiança plena de que os homens e as mulheres não podem ter proximidade a não ser para constituir família é, na sua opinião, um absurdo.


A vida das supranumerárias
A maior parte das mulheres da Obra vive nas suas próprias casas, é casada e tem actividade profissional muito variada. São as chamadas supranumerárias, 70% dos membros do sexo feminino. "A função das mulheres do Opus Dei é na sociedade, no trabalho, na família, no bairro. É aí que cada uma constrói a sua vida", defende Smitá Coissoró. "O espírito da Obra é a santificação dos deveres quotidianos do cristão através do cumprimento do trabalho bem feito, da família. Pensar que estamos aqui para chegar ao céu", explica Mónica Cayolla Pinto, que teve o primeiro contacto com o Opus Dei aos 12 anos, quando entrou no colégio Mira Rio.
Não foi fácil, admite. "É a pior idade que pode existir para alguém passar de uma escola mista para o ensino diferenciado." Sobretudo numa época em que as numerárias da Obra não podiam sequer usar calças (só foi possível em 1997), mostrar os ombros era mal visto e usar roupa justa fortemente desaconselhado. "Quando entrei na Obra só se podia usar saias, mais tarde foram permitidas as calças, mas sem marcar demasiado o corpo", recorda Carla Almeida. Nessa altura, as melhores memórias de Mónica Cayolla Pinto eram as partidas que pregavam às professoras e os dias em que saltavam o portão do colégio, no Restelo, em Lisboa, para ir comer croissants ao Careca.
Já era casada quando, num retiro, diz ter sentido a chamada de Deus para pertencer ao Opus Dei. "O padre Pimentel, a quem eu transmiti a minha vontade, perguntou-me se eu frequentava algum centro e eu na altura nem sabia o que eram centros", conta. A partir daí, foi posta em contacto com uma numerária. "A Eduarda disse-me que tínhamos de ir com calma. Ir à missa, começar a rezar o terço todos os dias, depois dava-me livros espirituais para ler. Foi um processo moroso e muito difícil, sobretudo porque eu tenho um espírito muito impetuoso, estava muito decidida, e ela fez-me marinar desde maio até 8 de dezembro." A dada altura disse-lhe que não ia insistir mais: "Quando achares que estou pronta, tudo bem, dizes-me."

No dia em que escreveu a carta a pedir a admissão - todos os novos membros têm de o fazer - chorou "baba e ranho", conta divertida. "Cada um escreve o que quer e eu escrevi qualquer coisa do género: ‘Querido padre, é com imensa alegria que lhe peço para ser admitida na Obra.’" Depois da carta, que escreveu na salinha de uma igreja, é preciso ir ao Lumiar falar com uma das "big chefes", conta - nessa altura a responsável pela admissão era Paula Guedes. Quando a viu pela primeira vez, Mónica ficou surpreendida. "Tal como já me tinha acontecido com a Eduarda, tinha um aspeto muito diferente das numerárias que eu tinha no Mira Rio e da imagem das mulheres com saias evasé, cortadas abaixo do joelho."
A partir daí, passou a cumprir o chamado plano de vida. O primeiro momento do dia, o chamado minuto heroico, em que é suposto levantar-se de imediato da cama, "custa imenso", admite Mónica, finalista do chamado curso de Estudos da Obra, uma formação de três anos, com aulas de vários temas, para aprofundar a formação antropológica e teológica. Aulas em que, como em todas as formações e retiros, as mulheres estão separadas dos homens. "É bom para a formação das pessoas. Quando falamos de atividades de formação espiritual, [é preciso ter em conta que] o espírito feminino e o masculino têm as suas peculiaridades e as suas necessidades. Se está a correr bem, para quê mudar?", defende Isabel Sánchez.
Entretanto, as aulas já voltaram a ser presenciais, mas a pandemia também mudou os hábitos do Opus Dei: houve aulas por Zoom, por telemóvel e até por telefone fixo. Nos retiros, o habitual livro que se lê às refeições para evitar que as pessoas falem (é suposto manter-se o silêncio entre sexta e domingo ao almoço), também desapareceu - foi substituído por uma gravação áudio, para evitar que fossem os membros a ler presencialmente a Obra escolhida (há uma por encontro).
Todas as supranumerárias com quem a SÁBADO falou recorrem à chamada contraceção natural. "Não há qualquer indicação [da Obra] sobre o número de filhos, mas, à partida, cumprindo o catecismo da Igreja Católica e a moral conjugal, os meios contracetivos tradicionais são antinatura. Se em consciência vamos verdadeiramente seguir o que está na moral católica, temos que adotar uma postura de contracetivo natural", defende Mónica, mãe de oito filhos.
Mais um do que Paula Pimentel, também supranumerária. "Fiz vários cursos de planeamento familiar natural e todos os meus sete filhos foram planeados. Neste momento, moramos num T3 com seis, porque a mais velha já casou e saiu de casa. Vivemos sempre apertados, mas achámos sempre que cabia mais um. Agora fico contentíssima porque consigo comprar roupa para os mais novos, mas para os mais velhos nunca comprei. Gostava imenso de os ter posto nos colégios da Obra mas, com sete, não era financeiramente possível."

José Rafael Espírito Santo, 63 anos, é o vigário regional do Opus Dei em Portugal, o responsável máximo por todos os membros

Descobrir a vocação
Quando os miúdos eram mais pequenos, era mais fácil cumprir o seu plano espiritual. Rezava enquanto dava de mamar, levava-os à missa e, quando não tinha tempo para leituras espirituais, escolhia histórias religiosas e de santos para crianças - que lia aos filhos ao deitar. "As crianças pequenas até me ajudaram bastante a cumprir as normas", confessa.
Hoje, apesar de ser advogada, dedica-se profissionalmente a uma IPSS. Tudo começou em 1990, quando conheceu um miúdo que, aos 8 anos, desmaiou de fome numa aula de apoio. "Comecei a ficar amiga desta mãe, que vivia numa barraca sem casa de banho, e pensei: ‘Tenho de fazer alguma coisa.’" Estas aulas de apoio escolar, num bairro pobre de Lisboa, eram organizadas por uma residência universitária do Opus Dei. "Foi assim que me reaproximei de Deus. Digo sempre que a Obra me levou aos pobres e os pobres a Deus."
A entrada no Opus Dei seguiu-se a várias crises existenciais. Pensou ser numerária ou missionária, mas acabava sempre por se apaixonar. Até que o padre a quem se confessava lhe disse: "Agora fica combinado que durante três meses não te apaixonas por ninguém, senão não conseguimos perceber nada." Poucos dias depois, quando estava a fazer voluntariado com deficientes profundos, conheceu o futuro marido.

Nenhum dos dois cumpriu os 15 dias de voluntariado: as freiras que acompanhavam o grupo feminino descobriram o namoro, contaram ao padre que viajara com os rapazes, e o grupo masculino saiu de imediato de Fátima. "Não queria acreditar que se iam embora por minha causa e saí antes deles. Na altura deixei uma carta com a minha morada e o telefone fixo. Ele ainda veio atrás de mim, mas foi para o comboio e eu para o autocarro." Só depois de voltarem ambos às cidades de onde tinham partido, voltaram a reencontrar-se. Ele já era supranumerário, ela pediu a admissão pouco depois.
Casar a filha também era um dos sonhos dos pais de Smitá Coissoró. "Não ficaram nada contentes com a minha escolha. Tinham outros planos para mim", admite a filha de Narana Coissoró, antigo deputado do CDS. "Era filha única e o problema era não casar e ter filhos, mas depois tive uma irmã e o meu pai tem uns netos muito queridos", diz divertida. "Só fui viver para o centro quando os meus pais estiveram de acordo, no último ano de licenciatura. Pensava sempre: se fosse por um namorado, se calhar até fugia de casa, portanto até me estou a portar bem [risos]."
Viveu pela primeira vez numa residência da Obra em Londres. Hoje, passa metade da semana na casa do pai, perto das Caldas da Rainha, onde nasceu. "O local físico de trabalho da assessoria é no Lumiar, mas com as possibilidades de trabalho remoto isso também está a mudar. Há dois dias por semana em que trabalhamos mais em conjunto e depois cada uma vai para os seus sítios." Viver em centros ainda é o mais habitual entre numerários, mas há exceções.
"Vivi 20 anos em centros mas, neste momento, o centro mais próximo é a 30 quilómetros do meu trabalho e é mais conveniente estar numa casa alugada", explica à SÁBADO uma numerária, professora, que prefere não ser identificada. "Se não fosse por isso, o normal seria ter uma vida de família no centro. Senão é como ter o pai, a mãe e os filhos a viverem em casas diferentes."
Essa vida de família também implica falar sobre despesas comuns, sobretudo se alguém quiser gastar uma quantia mais alta, seja para a compra de um carro ou para um tratamento dentário, por exemplo. "Em casa dos meus pais havia um bolo comum para o qual todos contribuíam e que todos partilhavam. [Na Obra] cada um contribui com o que lhe sobra dos seus gastos para a sua vida pessoal. Pago as minhas despesas e obviamente não tenho a conta zeros, mas também não tenho o meu pé de meia pessoal. Para que é que vim para uma instituição maior e não constitui família?", questiona a mesma numerária.

Smitá concorda: "Quem tem mulher ou marido fará uma apreciação em conjunto para agir de comum acordo. Quem pertence a uma família sobrenatural, como é o Opus Dei, também pode encontrar quem dê essa ajuda." De resto, as pessoas que vivem em centros contribuem para várias despesas comuns, acrescenta: o sustento dos padres, a gasolina que gastam em deslocações, o apoio a ações de formação e a iniciativas noutros países. "A relação com os bens tem de ser uma relação saudável, a pessoa não pode viver para acumular bens materiais, tem de pensar nos pobres, nas pessoas que os rodeiam."


Restrições e mortificações
Quando entrou na Obra, Carla Almeida foi aconselhada a cumprir 10 a 15 pequenas mortificações por dia. Há uma exclusiva para mulheres: dormir sem colchão, com cobertores em cima de tábuas, prática aconselhada até aos 40 anos. São conselhos, defendem as responsáveis com quem falámos. Há quem não cumpra o minuto heroico porque tem tonturas, quem deixe de usar cilício por ter problemas de circulação e quem recuse dormir em tábuas porque assim não consegue descansar.
"As mortificações ‘obrigatórias’ na Igreja são o jejum e a abstinência, e mesmo essas já são geralmente muito personalizadas", diz Smitá. "Antigamente passava por não comer carne, agora é mais importante que seja uma coisa que realmente custe. Há pessoas que gostam muito mais de peixe." E porquê estes sacrifícios? "Misteriosamente Jesus salvou-nos através de uma cruz, podia ter salvo de uma maneira muito menos dolorosa, mas o certo é que o fez assim e de alguma forma mostrou-nos um caminho. Não foi sofrimento pelo sofrimento, foi por amor aos homens. E o nosso sofrimento não é por amor a sofrer, porque ninguém tem amor a sofrer, é por amor a Cristo. Quando encontramos o sofrimento, para nós é participar na cruz de Cristo e viver como ele viveu."
Uma das mortificações seguidas por Mónica passa por abster-se de comer chocolate. "Agora pergunta-me: nunca come? Também não é bem assim, há alturas em que não consigo", explica, dizendo que demorou muito tempo a perceber que ser do Opus Dei não é "ser perfeitinho e fazer tudo bem". Se num dia se falham normas, no dia seguinte tenta-se fazer melhor, defende. Para os mais novos as mortificações podem implicar desligar os smartphones ou não estar na Internet horas seguidas.

Apesar de Smitá defender que os concertos, idas ao cinema e a espetáculos não são proibidos, estas situações são, no geral, excecionais para as numerárias, que cultivam uma vida sóbria, raramente guiada pelo gosto. "Os numerários normalmente não ficam em festas, é uma espiritualidade rigorosa", explica um dos membros da Obra com quem falámos. Mas já não há televisões escondidas nos centros, garantem.
Amélia, por exemplo, gosta de ver um bom jogo de futebol na televisão da sala da casa onde vive. "Também já fui ao estádio da Luz fazer fotografias com a águia", diz. O livro da polémica Mesmo as leituras e os livros são aconselhados, diz Eugénia Tomaz, durante mais de 20 anos supranumerária. "Há orientações da direção espiritual" - ainda que muitas pessoas, como é o seu caso, nunca as tenham seguido.
Foram aliás os livros (tem nove publicados) uma das razões das divergências com a estrutura do Opus Dei. A primeira aconteceu em 2005, quando publicou A Arte - Na vida e nos ensinamentos de Josemaría Escrivá. "O livro teve que ir para avaliação crítica da cúpula. Demorou seis meses a ser avaliado e, quando me chegaram as críticas, se as respeitasse, tinha que o mudar todo", diz à SÁBADO a fisioterapeuta e artista plástica.
"É frequente que pessoas que escrevem sobre o Opus Dei, membros ou não, peçam sugestões" sobre esses textos, diz à SÁBADO Pedro Gil, diretor do gabinete de imprensa do Opus Dei. "Essas sugestões são feitas por algum colaborador ou colaboradora do vigário regional. Não é sempre a mesma pessoa. As recomendações que sejam feitas são isso: recomendações. O autor decide se as leva em linha de conta", acrescenta o responsável pela comunicação do Opus Dei. Eugénia não as seguiu.

Em 2016, depois de publicar o livro Opus Dei Profundo - Desconstrução de um Mito, o vigário regional e uma numerária decidiram que devia desvincular-se. Uma das pessoas com quem falou foi Pedro Gil. "O Pedro Gil leu e o PDF que me deu tinha mais de 300 alterações. Ou não tinha percebido ou era a mudança para uma linguagem padrão do Opus Dei. Avancei para a publicação e fui penalizada. Deixei de poder participar na formação interna dos membros do Opus Dei", conta Eugénia, que diz que os membros foram aconselhados a não ler o livro.
Para Pedro Gil, a sua resposta foi, diz, "uma opinião pessoal (...) No dia 21 de novembro de 2015 [a Eugénia Tomaz] pediu-me por email os meus comentários pessoais - não do Opus Dei - ao seu livro. Li o livro duas vezes, e respondi no dia 11 de janeiro de 2016 (...) Sobretudo levantei interrogações e dúvidas, e manifestei algumas discordâncias. Não pedi para fazer nenhuma alteração. Na altura em que publicou o livro, a autora já tinha tornado públicas muitas das suas ideias. O site do Opus Dei publicou uma nota sobre o livro onde também diz que a autora não continuou no Opus Dei pois as suas ideias pessoais, expressas por diversas vezes ao longo de vários anos, afastam-se em pontos importantes da proposta do Opus Dei tal como é definida nos documentos da Igreja." Nos últimos 10 anos o seu caso foi, assegura, o único em que a desvinculação da Obra não foi voluntária.
"Fui afastada porque disse que o Opus Dei tinha duas fases: a etapa fundacional, até 1982, e a institucional. Disseram-me que isso não era verdade, mas é. Aliás, o Papa está a retirar a excessiva hierarquização e institucionalização da Igreja. Está a implementar o Opus Dei na Igreja", defende Eugénia Tomaz, que durante três anos escreveu para o jornal do Vaticano. "Fui afastada mas continuo a ser Opus Dei. Vou à missa no Oratório, o meu sacerdote é da Obra, todos os dias abro o site do Vaticano e sei o que o Papa está a escrever. Isso não é válido?" Para Eugénia é. Por isso, no dia 19 de março, quando todos os membros que querem continuar a sê-lo telefonam aos seus diretores espirituais a renovar o vínculo, também renova os seus votos. "Vou à missa e digo: ‘Renovo a vocação à Obra de Deus, ao Opus Dei’", conta. "Não preciso de telefonar às diretoras."
No topo
Além de Smitá Coissoró, a assessoria regional femina é formada por Mariana Elói, Marta Lynce de Faria, Paula Guedes, Raquel Lamela, Isabel Líbano Monteiro, Susana Aires Pereira eIsabel Castro Pina
Quem é quem?
Há várias formas de fazer parte do Opus Dei
"Quando encontramos o sofrimento, para nós é participar na cruz de cristo e viver como ele viveu", diz Smitá coissoró
Numerárias Vivem em celibato, geralmente nos centros da Obra. Na Assessoria Central, em Roma, há desde 2017 uma portuguesa - Rosário Líbano Monteiro, irmã de Maria Isabel Líbano Monteiro, que está na assessoria regional em Portugal.
Supranumerárias São a maioria dos membros e geralmente são casadas.
Agregadas Também cumprem o celibato, mas não vivem em centros nem se ocupam do governo da Obra.
Cooperadoras Não pertencem ao Opus Dei e podem não ser católicas. Colaboram com orações, esmolas ou trabalho.
A primeira portuguesa
Maria Sofia Pacheco decidiu ser numerária em 1949
Namorava há seis anos e estava noiva quando, aos 25 anos e a trabalhar na Coats & Clark, uma companhia inglesa de linhas e tecidos, decidiu ser numerária e escreveu uma carta ao fundador do Opus Dei.
Tomou a decisão no dia 13 de março de 1949, enquanto atravessava a Rotunda da Boavista, no Porto. "Lembro-me que ia a atravessar a Rotunda, o jardim da Boavista, no Porto (...) e naquele momento vi: ‘Eu quero ser do Opus Dei. Eu tenho de ser do Opus Dei. Para sempre", disse ao jornal O Independente, em 1992.
Tinha sido o irmão, Mário Pacheco, professor de Filosofia e o primeiro numerário português, a falar-lhe pela primeira vez da Obra. Como ainda não havia mulheres em Portugal, foi para Santiago de Compostela receber formação.
Chegou a Lisboa em 1951 e fez parte do grupo de seis mulheres que começaram o 
trabalho feminino da Obra no País. Morreu em 2012, no quarto da casa onde vivia, no Porto, aos 87 anos, e depois de mais de 60 anos no Opus Dei.

https://www.sabado.pt/

1 comentário:

  1. Quanto às mulheres, há, também, aquela outra história que a hierarquia da Igreja Católica ainda, nem ao de leve, conseguiu explicar.
    https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/09/esposas-sede-submissas-pois.html
    Boa semana!

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