Durão Barroso, Santana Lopes, Joana Marques Vidal, Lucília Gago, Manuela Moura Guedes, Fernando Seara e muitos outros entraram em 1973 para a turma-maravilha que viria a marcar os últimos 40 anos do País. Houve política, pancada e amor.
Os dedos ficam pretos ao avançar pelos arquivos. As cadernetas dos estudantes acumulam mais de quarenta anos de pó. Nesses ficheiros estão os registos académicos dos alunos que entraram para a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 1973. José Manuel Durão Barroso, Pedro Santana Lopes, Joana Marques Vidal, Lucília Gago, Fernando Seara e Manuela Moura Guedes estão todos lá. Todos caloiros no ano lectivo que seria interrompido pela revolução. Todos testemunhas e protagonistas de uma época em que a Faculdade era conhecida como a República Popular de Direito e as discussões políticas acabavam muitas vezes com cadeiras partidas e barricadas nos corredores da Universidade.
Terá sido por acaso que tantos dos alunos desse ano acabaram por ser figuras com projecção nacional? Teresa Almeida, hoje juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, diz que o período da revolução foi "uma escola super-rápida e concentrada de resiliência e capacidade de iniciativa". E essa pode ser parte da explicação. "Havia RGA (Reuniões Gerais de Alunos) e assembleias-gerais na reitoria dia sim, dia não. Isso acabou por nos dar um sentido de justiça, uma necessidade de participação", diz.
Muitos outros que por lá andaram concordam. "Foram tempos muito marcantes, que apelavam à participação pública activa. Cada um de nós tinha a ideia de que tudo era possível e que podíamos fazer parte da mudança do mundo", acrescenta outra antiga aluna.
Os gorilas e o medo
Há um antes e um depois do 25 de Abril de 1974. O ambiente na Faculdade era pesado. O Ministério da Educação tinha contratado antigos militares da Guerra Colonial para conter os focos de contestação estudantil, que se tinham intensificado depois da crise académica de 1969. Estes "seguranças" eram conhecidos como "os gorilas" e temidos pelos estudantes.
"Lembro-me de os professores terem um botão debaixo da mesa, nos anfiteatros. Carregavam, discretamente, e gorilas apareciam e era aterrorizador. Abriam-se as portas e eles pescavam a pessoa que queriam", conta Manuela Moura Guedes, que aos 17 anos tinha saído de Torres Vedras para estudar em Lisboa e vivia numa casa de freiras na Fontes Pereira de Mello.
À entrada da faculdade, os "gorilas" faziam revista a quem entrava e intimidavam os estudantes. "Eram asquerosos para as mulheres. Diziam-nos obscenidades quando passávamos", relata Moura Guedes. Em alguns casos, recorriam à humilhação para controlar os mais subversivos. Um dos muitos alunos desse ano com quem a SÁBADO falou conta que chegou a ser levado para uma sala na cave, despido e humilhado por ter sido apanhado com um panfleto contra a Guerra Colonial, escondido entre as páginas do Código Civil.
A guerra do Ultramar estava, aliás, muito presente. Um dos caloiros de 1973 lembra-se de ter um colega que se atirava para o chão de cada vez que ouvia um avião a sobrevoar a Cidade Universitária. "Tinha estado na Guiné e o barulho lembrava os disparos." Todos os rapazes tinham medo de ser enviados para África.
Nesse ambiente de ditadura, o professor de Economia Política Soares Martínez era o mais odiado pela proximidade ao regime e pelo terror que impunha aos alunos. "Fazia exames com perguntas sobre as notas de rodapé", lembra outra aluna da época. Teresa Almeida recorda-se de, ainda antes da revolução, as aulas de Martínez começarem com o barulho dos alunos a bater com os assentos de madeira do anfiteatro, em protesto. "Ele começava a sussurrar e as pessoas iam parando."
Marcelo Rebelo de Sousa e Jorge Braga de Macedo eram os assistentes de Soares Martínez. Dois jovens, que se destacavam do cinzentismo reinante. "Marcelo dava Economia quase numa perspectiva marxista. Braga de Macedo vinha com os neokeynesianos e tinha um tipo de génio louco a escrever fórmulas no quadro", descreve Teresa Almeida.
A grande mudança desse ambiente cinzento e opressivo aconteceu a 25 de Abril. Manuela Moura Guedes acordou às 7h da manhã e apercebeu-se de que não tinha na mesa de cabeceira a telefonia em que ouvia as notícias. Alguém a tinha levado. "Andavam a ouvir o que se passava, mas a telefonia estava quase sem pilhas." Uma das freiras, a irmã Van Zeller, ia mandando as raparigas sair das janelas de onde se tinham pendurado para ver as movimentações. Manuela saiu à socapa e correu as ruas desertas à procura de pilhas. Nesse dia, tinha marcada uma frequência de Direito Civil, que já não aconteceu. "Foi um alívio." Mas não se livrou do sermão quando voltou da aventura.
Cabeçadas e cadeiras partidas
A revolução chegou rapidamente à Faculdade. Durante meses, não houve aulas. E, a 22 de Junho de 1974, os alunos decidiram em RGA abolir os exames. Foram instituídas as passagens administrativas, que só acabariam em 1977.
Havia pressa de mudar o mundo. "Começámos a usar ponchos. Eu andava com um amarelo. Tinha um ar mais revolucionário", brinca Manuela Moura Guedes. Por esses dias, a Faculdade dividiu-se entre a UEC (União de Estudantes Comunistas), onde estavam José Magalhães ou António Cluny, e o MRPP, por onde andavam Maria José Morgado, Ana Gomes e Saldanha Sanches.
Durão Barroso, que há muito frequentava as manifestações antirregime foi puxado para o MRPP por Maria José Morgado. Nunca se filiou, mas tornou-se líder da facção maoista da Faculdade. Era o melhor aluno do seu ano e tinha dotes de orador. Além disso, não lhe faltava a coragem física para as lutas que dividiam comunistas e maoistas.
"Havia violência", admite José Magalhães, que numa dessas refregas acabaria com a cabeça a sangrar, depois de uma luta feita com cadeiras partidas. Corria pela Faculdade que tinha sido Durão a dar-lhe uma cabeçada, mas Magalhães diz que "foi o Pedro Santana Lopes". Santana estava na altura no Movimento Independente de Direito, que era visto como de extrema-direita, mas que se aliava tacticamente ao MRPP.
Na linguagem da época, os comunistas eram os "social-fascistas". A ideia era, como explica uma Ex-aluna, que "os comunistas eram reformistas, não eram verdadeiramente revolucionários". Para o MRPP, o modelo era a China de Mao e não a URSS, que era encarada como um regime opressivo da classe operária.
Durão: do maoismo ao PPD
"Éramos todos contra o PCP", justifica Santana Lopes, que acabou por se aproximar de Durão Barroso. "No último ano do curso vivi em casa dele em Almada, na Cova da Piedade." Acabariam por se formar no mesmo dia, com a cadeira de Direito Processual Penal, Santana com um 16 e Durão com um 18.
Nessa altura, em 1978, José Manuel Durão Barroso já não estava ligado ao MRPP há um ano e tinha mesmo aproveitado a lei de 1977 para ir a exame a todas as cadeiras às quais tinha tido uma passagem administrativa. O dirigente associativo maoista que conquistou a Associação de Estudantes ao PCP com a defesa do fim dos exames e das notas de 0 a 20, acabaria o curso com uma impressionante média de 17 valores.
Quem o conheceu na época conta que a morte do pai, em 1977, contribuiu para isso. Durão vinha de uma família conservadora da burguesia do Douro e, numa viagem a Londres para acompanhar os tratamentos do pai, as ideias revolucionárias desvaneceram-se. "Visto à distância, Portugal parecia um caos ingovernável", conta uma fonte próxima do Ex-presidente da Comissão Europeia. Começou a aproximar-se do PPD-PSD e abandonou o maoismo.
Para trás tinham ficado os tempos em que namorava Teresa Almeida, "uma morena de olhos verdes", descrita por muitos como uma das raparigas mais bonitas da Faculdade, mas também das mais aguerridas politicamente. Manuela Moura Guedes lembra-se de ver Teresa e José Manuel "de alpergatas, calças chino e camisas de flanela" e sacas de pano a tiracolo, sempre muito juntos. Tinham começado a relação no liceu, em Almada, uma cidade onde Teresa já dava nas vistas. "Foi uma paixão total", garante quem os conheceu.
O momento era, aliás, de grandes paixões. "Era tudo muito intenso, muito politizado", admite Teresa Almeida que, entretanto, nunca mais falou com Durão.
Nessa época, Durão Barroso, que era conhecido como o líder da República Popular de Direito (pela forma como o maoismo dominava a Faculdade) era um orador inflamado, que arrebatava quem o ouvia. "O Durão era brilhante", garante Manuela Moura Guedes, que se lembra de ter dito em casa na altura que o maoista ainda ia chegar a primeiro-ministro. "Ninguém me ligou nenhuma", ri-se.
Enquanto líder estudantil, Durão Barroso era alvo de "operações de intelligence", como descreve José Magalhães, que conta que a UEC chegou a roubar uma pasta a Durão para apanhar os nomes de código que o MRPP usava mesmo depois da revolução.
A luta entre maoistas e comunistas era tão intensa que Otelo Saraiva de Carvalho emitiu mandados de captura que levaram à detenção de centenas de pessoas ligadas ao MRPP. Durão Barroso estava nessa lista e todos os dias dormia num sítio diferente para escapar à prisão. Mas, uma noite, foi apanhado em Alcântara e só não acabou em Caxias porque saltou do jipe em andamento, confiante de que os militares que o levaram não atirariam contra um homem de costas.
A primeira fila
Nem todos davam tantos nas vistas. Joana Marques Vidal ou Lucília Gago, por exemplo passavam mais despercebidas, mas eram ambas politizadas. Marques Vidal estava então à esquerda do PCP, embora sem militância, e Gago estava no MRPP. Mas as duas eram alunas discretas e Joana Marques Vidal acabaria por passar para o turno da noite, depois de começar a trabalhar em lojas durante o dia para se tornar independente do pai, magistrado.
Maria dos Prazeres Beleza, hoje juíza conselheira, sentava-se sempre na primeira fila, ao lado de Manuela Moura Guedes, e era das melhores aluna da turma, onde também estavam os agora procuradores Amadeu Guerra ou Natália Lima. "A Bebé [Maria dos Prazeres] e a Manuela eram muito bonitas e iam as duas pedir apontamentos ao Durão, que era o melhor da turma", conta um colega.
Além de Durão e de Bebé, Teresa Almeida estava entre as que mais se destacavam pelas boas notas. "Antes do 25 de Abril éramos excelentes alunos e estudávamos imenso. Até do ponto de vista da afirmação das ideias era importante sermos os melhores", frisa.
Maria dos Prazeres e Manuela conseguiram ficar à margem dos confrontos políticos, mas Moura Guedes ainda se lembra das tentativas da UEC para a recrutarem.
Todos se cruzavam no bar da Faculdade e nas RGA, que às vezes se prolongavam horas a fio sem que ninguém arredasse pé. A vida concentrava-se no debate político. E os alunos faziam parte da "Comissão de Gestão", que passou a decidir as cadeiras que eram leccionadas, os métodos de avaliação e até os professores que deviam ser saneados. "Era tudo decidido de braço no ar", explica Gonçalo Sampaio e Mello, o director do Arquivo da Faculdade de Direito, que também viveu esses tempos de "revolução cultural".
Nas RGA, chegava-se a debater "a moral revolucionária". E há quem recorde que até a relação amorosa entre uma aluna e um professor foi discutida numa dessas reuniões. "O MRPP era como uma seita", diz um antigo maoista. "Foi uma altura louca da vida de todos", resume Santana Lopes.
Entre a exigência académica dos primeiros meses antes da revolução e o confronto político constante depois do 25 de Abril, havia pouco tempo para vida social. "Não havia muita coisa. Havia um grupo dos cafés da Avenida de Roma e um grupo dos cafés da Estados Unidos da América. E ia-se para casa uns dos outros", diz Teresa Almeida, que também frequentava os cineclubes, onde, antes do 25 de Abril, era possível ver filmes proibidos pela censura.
Tantos anos passados, há quem nunca mais se tenha visto e quem faça questão de ir aos jantares de curso que se realizavam com alguma frequência antes da pandemia. Mas também há os que se cruzaram por força da profissão. Teresa Almeida, por exemplo, teve de ouvir Pedro Santana Lopes como testemunha quando era procuradora no Caso Bragaparques. Ultrapassadas as divergências do passado, não há ressentimentos.
"Vivemos a loucura da liberdade e o drama da divisão, mas ficámos todos a
dar-nos bem", garante um dos elementos da turma.
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