sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Demência

Ricardo Salgado alega demência para evitar o seu julgamento na Operação Marquês. Duvido que resulte: demência é o estado natural do nosso sistema de justiça.

Nunca lá estive, mas dou de barato que a Sardenha seja um sítio simpático para respirar ar puro e gozar de boa saúde e, o que é melhor, fazer boas recordações que ficam para o resto da vida. Não que Ricardo Salgado possa aproveitar qualquer destas vantagens. Quando foi visto a gozar as suas férias na ilha italiana, estava num país em estado de emergência por causa da Covid, com o Ministério dos Negócios Estrangeiros português a desaconselhar viagens não essenciais a Itália, "incluindo em turismo".

Sucede até que Salgado tinha afazeres em Portugal, nomeadamente o seu julgamento por três crimes de abuso de confiança na Operação Marquês. O Ex-banqueiro aproveitou a lei que, por causa dos riscos da Covid, permite dispensar os réus de comparecerem às audiências, mas tudo indica que estaria mais a salvo da peste na sala de um tribunal português do que num resort italiano. No Campus de Justiça, ao menos, medem-nos a febre à entrada. E a Itália não só vai mais atrasada do que Portugal na vacinação, como tem o número de novos casos a subir, e não a descer, como cá.

É possível que, ao escolher entre passar o seu tempo no Campus da Justiça ou na Sardenha, Ricardo Salgado tenha pesado outros critérios para além da pandemia. Mas também, alega a sua defesa, não guardará boas memórias das suas férias. Os seus advogados pediram ao tribunal uma avaliação neurológica e apresentaram relatórios clínicos que, sem serem conclusivos, apontam para um quadro de demência que poderá inviabilizar o julgamento. Salgado, dizem, "tem vindo a sentir dificuldades e lapsos de memória", além de "desgaste emocional, físico e psicológico".

"Lapsos de memória" é coisa que tem dado a muita gente metida nos negócios sujos do Grupo Espírito Santo. "Desgaste emocional, físico e psicológico" já o sentem há muito os lesados do BES, pelo que se percebe que também Salgado, nos seus momentos de lucidez, sinta o peso do mal enorme que fez a tanta gente. Que prefira desanuviar da pressão num resort de luxo na Sardenha, em vez de numa sala de tribunal lisboeta, também se percebe. E o que melhor se percebe, no somatório de tudo isto, é que a cultura do abuso de direito e do gozo aberto do privilégio continua a fazer parte do património da família Espírito Santo. Salgado perdeu muito do seu estatuto social e poder de influência, mas o velho Dono Disto Tudo continua a ser, no mínimo, o Usufrutuário Disto Tudo. O país já não lhe pertence, mas ele continua a servir-se do que lhe apetece.

A parte que eu não percebo é só esta: em que é que a demência de Salgado inviabiliza que a justiça prossiga, se demente é o adjetivo que melhor se aplica ao nosso sistema judicial – e, pior, àquele espaço nebuloso onde o sistema judicial e o sistema político se cruzam e se promiscuem?

Talvez por "dificuldades e lapsos de memória" do Conselho Superior do Ministério Público, Orlando Figueira, procurador condenado por corrupção na Operação Fizz (o caso está em recurso), foi colocado no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa. Figueira está suspenso de funções, à espera de um processo disciplinar mais demorado do que um julgamento criminal. Mas no fim de outubro acaba a sua suspensão preventiva e, se o CSMP não se mexer entretanto, teremos em funções um procurador condenado, que reconheceu ter fugido ao fisco e lavado dinheiro. Que esteja num Tribunal de Execução de Penas é, apesar de tudo, do mal o menos: a arraia-miúda não tem dinheiro para corrompê-lo em troca de algum regime aberto; e o peixe graúdo, como é sabido, nunca chega a ter pena para executar.

Arrastado para o mesmo processo Fizz pelo mesmo procurador Orlando Figueira, Proença de Carvalho, ex-advogado do Dono Disto Tudo (o que faz dele Advogado Disto Tudo) está também sob investigação, por suspeitas de fraude fiscal e branqueamento de capitais, graças a uma aplicação financeira de mais de 11 milhões de euros no Luxemburgo com dinheiro que não se sabe de onde veio. Mas, talvez por "dificuldades e lapsos de memória" de quem tem a responsabilidade de investigar de forma expedita e eficiente, as investigações a Proença de Carvalho não avançam. E com isso fica prejudicada não só a aplicação da justiça ao advogado (seja para acusar, seja para ilibar), como falha a identificação das redes de cumplicidade e influência do seu escritório com vários angolanos poderosos, denunciadas na Operação Fizz ou no Luanda Leaks.
E quando a justiça de facto funciona, não funciona em Portugal. Um tribunal holandês acaba de confirmar a reversão do negócio que deu a Isabel dos Santos uma participação relevante na Galp. O tribunal considerou a operação montada com a Sonangol "nula e sem efeito", porque a cedência da participação acionista a Isabel e ao seu marido Sindika Dokolo "não pode ser explicada senão como um caso de grande corrupção pela filha de um chefe de Estado". Isto na Holanda, porque em Portugal a entrada de Isabel dos Santos no capital de uma grande empresa não impressionou ninguém e não suscitou a nenhuma autoridade a mínima averiguação sobre os termos do negócio ou a origem do dinheiro envolvido. Serão talvez "dificuldades e lapsos de memória" dos reguladores.

Ricardo Salgado não está bom da cabeça? Volte lá da Sardenha. Vai sentir-se em casa no sistema judicial português.

João Paulo Batalha

Sábado

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