Em casa das minhas avós, os jantares de restos eram uma alegria. Havia carnes frias ao lado das fatias da que sobrara do assado de há uns dias, ovos mexidos com restos de peixe, batata e cebola na mais deliciosa roupa velha que já provei, pequenos empadões e saladas com tudo o que de fresco era aproveitável. Um festim, especialmente para nós, os miúdos, que vivíamos aquilo como uma espécie de piquenique à mesa, em que cada um se servia do que mais gostava – e raramente sobrava alguma coisa para contar a história. “Há meninos a morrer à fome em África” era a frase repetida semanalmente na escola à minha geração, para nos tentar convencer a não deitar comida fora – que nos tais jantares da casa das avós era argumento dispensável, porque eram os melhores petiscos que nos podiam pôr à frente.
Tendo-se perdido o toque de aventura que a idade adulta tende a embaciar, esses hábitos de guardar os restos e aproveitá-los em tempo útil mantivemo-los todos os primos, efeito conjugado do empenho das avós e da imagem dos bebés subnutridos que nos chegavam por um dos dois canais de televisão, cujas notícias não se submetiam à necessidade de garantir audiências.
Essas imagens de fome não desapareceram.
Nem são exclusivo de África, por mais que nos tentemos concentrar a responder à última mensagem de WhatsApp para não termos de cruzar olhares com o pedinte que espera a solidariedade de um dos clientes do supermercado para comer.
Há 27 anos dedicada a ajudar esses que lutam todos os dias por uma refeição, Isabel Jonet tem sido uma voz notável nos alertas para situações de miséria que se propagam silenciosamente na vizinhança de cada um de nós, sobretudo numa altura em que a crise pandémica cortou rendimentos e obliterou meios de subsistência a famílias inteiras. “Há muitos que nem sabiam como agir, a quem pedir ajuda”, revelava há meses a responsável do Banco Alimentar, que se tem desdobrado em ações para garantir que consegue responder à medida de todos os que procuram a rede de emergência alimentar – perto de meio milhão de portugueses, de acordo com os últimos números. Lembrava, noutra ocasião: “O desperdício alimentar é um absurdo económico que tem impactos ambientais e sociais imensos e que é preciso combater com seriedade.” De acordo com a Food and Agriculture Organization (FAO), todos os anos são desperdiçadas 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos, um terço de tudo o que é produzido é inutilizado. Isto acontece igualmente nos países ricos e nos pobres. Não havendo dados verificados para Portugal, as estimativas apontam para que, em média, cada português deite para o lixo 100 kg de comida todos os anos.
Há um drama económico, social e ambiental nestes números. Que são incompreensíveis numa sociedade supostamente mais desperta para os seus problemas e mais disposta a fazer o melhor pelo planeta. E que são óbvios na sabedoria das avós, que nos diziam, enquanto cerziam umas calças de trazer por casa, punham cotoveleiras em camisolas antigas ou faziam banquetes a partir de restos: “Aquilo que se estraga ninguém aproveita.”
A conversa das avós pode não fazer tudo, mas essa experiência tantas vezes desprezada em nome de práticas supostamente sustentáveis e bem intencionadas, mas sem efeito prático, tem o grande valor de nos abrir os olhos e travar a mão mole para o desperdício.
Joana Petiz
Subdiretora do Diário de Notícias
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