quarta-feira, 5 de julho de 2023

Apropriaram-se de 22 terrenos por usucapião e acabaram a contas com a Justiça

Tirando todos os restantes casos por esse país fora..

Em apenas três anos, 22 prédios mudaram de dono sem que os legítimos proprietários se tivessem apercebido de terem perdido o direito à propriedade. A maioria das transacções fraudulentas ocorreu nos concelhos de Olhão, Faro e Tavira entre 2018 e 2021. A figura central do processo em julgamento, que decorre no Tribunal de Faro, onde nesta quarta-feira decorrem as alegações finais, é João Pereira, um antigo vereador da Câmara de Olhão, eleito pelo Bloco de Esquerda mas que foi entretanto expulso do partido quando alegadamente se envolveu em actividades criminosas. A acusação aponta crimes que vão desde a burla qualificada à falsificação de declarações e de documentos. Há 38 arguidos.

A figura jurídica “usucapião” – que reconhece o direito de propriedade sobre um bem pelo seu uso continuado (15 a 20 anos) sem contestação – foi o instrumento que permitiu criar a aparência de legalidade para registar terrenos e depois os vender. A acusação, com cerca de 200 páginas, além de visar João Pereira, Ex-empresário da construção civil e Ex-vereador do BE no município de Olhão entre 2009 e 2013, envolve o notário António Miquelino, bem como os intermediários do negócio das vendas imobiliárias.

Os queixosos do crime por usurpação são, principalmente, filhos e netos de antigos lavradores, emigrantes ou residentes fora da região. Os imóveis, para efeitos de escritura por usucapião, eram referenciados como sendo “doados” ou “comprados” apenas de “forma verbal”, referências confirmadas por testemunhas.

João Pereira é o único arguido que se encontra em prisão preventiva desde 2021, altura em que foi detido pela PJ. Sobre ele recai a suspeita de ter tido “um papel preponderante” na localização de terrenos e obtenção de documentação para posterior venda. Tudo começa com a criação de uma associação cívica, o Movimento “Somos Olhão”, através do qual desenvolveu actividade de apoio à comunidade cigana, ajudando a resolver problemas (preenchimento de formulários relacionados com a Segurança Social) e apoio jurídico para contestar multas de trânsito e outras infracções.

Por influência da dinâmica social criada, consegue apoio para ser eleito vereador da câmara de Olhão em 2009 pelo Bloco de Esquerda. A meio do mandato é expulso do partido na sequência de denúncias sobre a actividade que desenvolvia e por ter ocultado processos judiciais em que estava envolvido. Chegou a ser condenado por procuradoria ilícita, mas em 2013 volta a candidatar-se, como independente, não sendo eleito.

Liliana Nóbrega, psicóloga, na altura mulher de João Pereira, trabalhava como administrativa da associação cívica criada pelo marido e é também arguida. No processo existe ainda um outro elemento preponderante a ligar as várias peças do puzzle: um pastor de ovelhas. “Senhor Aníbal”, de seu nome. “Tinha vários terrenos”, disse Liliana Nóbrega, acrescentando que o acompanhou às repartições públicas para registar propriedades. “Não sabe ler”, justificou. Ambos estão acusados de atestar factos em escritura pública que não correspondiam à verdade e de angariação de imóveis, promoção e venda a terceiros.

Entre os 38 arguidos acusados de se apropriarem de propriedades que não lhes pertenciam estão, na sua maioria, membros da comunidade cigana. Acresce ainda um cidadão alemão, Ralph Ponher, reformado, que também está a responder na justiça por ter ocupado um terreno alheio usando, igualmente, a figura do usucapião. Em 1998, Ponher comprou uma casa em ruínas em Santa Bárbara de Nexe. Após reconstruir a habitação, decidiu começar a ocupar a propriedade do vizinho. “Comecei a limpar o terreno porque tinha lá uma lixeira”, declarou, em sede de julgamento. Porém, não se limitou a cuidar do espaço, mandou depois colocar uma vedação. O juiz António Marques da Silva, durante a audiência, quis saber donde lhe terá surgiu a ideia de se fazer dono de um terreno que sabia não lhe pertencer. “Falei com o presidente da junta de freguesia, Dr. Leonardo [Abreu], e ele disse que existia uma lei em Portugal que permitia: quando alguém cuida dos terrenos, pode ficar com eles.” O magistrado, que preside ao colectivo de juízes, insistiu: “Mas sabia que o terreno não era seu?” O arguido fez uma pausa e respondeu de forma indirecta: “O meu filho comprou um terreno na Falfosa [concelho de Faro] a um senhor que o tinha adquirido por usucapião e não teve problemas.”

Ralph Ponher afirmou ter pedido “ajuda” a João Pereira, a quem disse ter pago 1500 euros para tratar dos procedimentos burocráticos. “Porque é que achou que era dono do terreno ao fim de cinco anos [de ocupação]?”, insistiu o juiz. “Dono de sentimento e emoção”, respondeu, justificando que, antes de praticar o acto, tentara, sem êxito, encontrar o verdadeiro proprietário.

Mentir é possível

A João Pereira, Ralph Ponher pediu para facilitar o registo da propriedade, adquirida por alegada compra verbal, que sabia não corresponder à verdade. “É assim que se faz, em Portugal, disse o Dr. Miquelino”, declarou o alemão, após o pedido de esclarecimento do magistrado. “Acha normal que se minta no notário?”, insistiu o juiz. “Não é normal, mas não é impossível”, retorquiu o arguido. De novo, o juiz questionou: “E acha que as regras do notário aqui, em Portugal, são diferentes da Alemanha?” “Na Alemanha não é possível [mentir]”, admitiu, mas não soube explicar porque, mesmo achando “esquisito” o que ouviu do notário sobre as alegadas regras portuguesas, tinha assinado a escritura.

Por seu lado, António Miquelino negou qualquer envolvimento directo com as testemunhas das escrituras justificativas nem desconfiou que pudessem faltar à verdade. De resto, enfatizou, só “ficou alerta” para o que se estava a passar no seu próprio cartório quando viu uma reportagem na SIC dando conta de apropriação de terrenos nas zonas de Santa Bárbara de Nexe, Conceição de Faro e Estói (concelho de Faro).

Nos concelhos de Loulé, São Brás de Alportel e Tavira, onde ainda não existe cadastro homologado, é ainda maior o espaço para aquisições fraudulentas. O registo predial só passou a ser obrigatório em 2007. Até esta data, por ser facultativo, nestes três municípios existem milhares de propriedades sem dono conhecido.

Damião dos Reis é outro dos arguidos a responder pelo facto de se ter apropriado de um terreno alheio, no sítio dos Gorjões. Na década de 1980 declarou ter conhecido um alemão que acabaria por ser o seu benfeitor: “Fiquei com a chave do cadeado [portão], para lhe entregar quando voltasse [da Alemanha], e até hoje não apareceu.” A partir dessa altura, revelou, começou “a apanhar as alfarrobas e a limpar o terreno”. Mais tarde, tentou fazer uma escritura por usucapião, que acabaria por não se realizar. Uma das testemunhas, disse, foi o seu primo Romão, pastor evangélico.


Publico

IDÁLIO REVEZ

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