sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Sevícia Nacional de Saúde.

Um dos aspectos mais intrigantes da Black Friday é que nenhuma loja se tenha lembrado ainda de construir uma tribuna na qual um imperador romano faz o sinal de polegar para cima ou para baixo.

Adoptando mais uma vez a estratégia vencedora de instituir efemérides em estrangeiro, os estabelecimentos comerciais preparam-se para celebrar a Black Friday. Em português, Sexta-feira Negra não soa tão bem. E, no entanto, a formulação portuguesa consegue descrever melhor o espírito da data. Mais uma vitória para a nossa língua, novamente superior às outras em termos de expressividade e precisão. Escuso de recordar que ingleses e franceses não sabem o que é quentinho nem devagarinho – e ninguém faz nada. Claro: eles sabem o que é quente e devagar. Mas quentinho e devagarinho é outra coisa, e passar pela vida sem saber a diferença parece-me inconcebível e cruel. “Toma este chá, que está quente”, é um aviso; “toma este chá, que está quentinho”, é um convite – e os falantes de línguas bárbaras não distinguem um do outro. Ora, a ONU não lança um plano, não elabora uma convenção, não manda capacetes azuis armados com gramáticas de português a França, a Inglaterra, a todo o lado. Há países em que as pessoas nunca vestiram um casaco quentinho, nunca fizeram nada devagarinho. Pior: num dia de inverno, nunca ficaram no quentinho, até porque não fazem ideia de que quentinho também pode ser substantivo. Até quando, meu Deus?

Com a Sexta-feira Negra sucede o mesmo. Na nossa formulação ressoa a lembrança da peste, que é importante para prevenir os ingénuos em relação ao que os espera. Vai haver muito contacto físico com gente suada e furiosa, pode haver feridas abertas e transmissão de vírus. Está lá o negrume que alerta para a amargura gerada pela disputa de produtos, que avilta mesmo quando se ganha. Um dos aspectos mais intrigantes da Black Friday é que nenhuma loja se tenha lembrado ainda de construir uma tribuna na qual um imperador romano faz o sinal de polegar para cima ou para baixo, conforme o consumidor tenha ou não conseguido resgatar um LCD com 30% de desconto das mãos de outro. E a expressão Sexta-feira Negra também contém uma referência subtil à obscuridade da cerimónia, seja porque as lojas oferecem 50% de desconto sobre os 50% de aumento que levaram a cabo na Quinta-feira Incolor, seja porque às vezes se limitam a escrever a palavra “desconto” na etiqueta, sem retirar nada ao preço – uma operação de marketing que é também uma interessante lição de filosofia da linguagem.

Portanto, é por causa da língua portuguesa que eu, sempre que há Black Friday, fico em casa. No quentinho.

Ricardo Araújo Pereira

(Opinião publicada na VISÃO 1395 de 28 de novembro)

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