A humanidade não gosta de calor humano mas gosta de frieza humana. Nada contra o contacto com outros seres humanos, desde que seja à distância.
Descobrir o significado de frases que eram comuns há 20 anos é agora trabalho de historiadores. Por exemplo, “discar um número”, expressão oriunda do longínquo tempo em que os números, num telefone, figuravam num disco. Ou “deixar o telefone fora do descanso”, frase contemporânea da altura em que a única maneira de evitar chatos era evitar toda a gente. Era o tempo em que, quando o telefone tocava, perguntávamos “quem será?”, porque o nome de quem contactava não estava escrito no mostrador (até porque não havia mostrador). Mesmo algumas frases que se mantêm, tais como “se pretende informações, prima 1”, são resquícios de um tempo em que as teclas do telefone se premiam – verbo que hoje é exagerado uma vez que, em geral, nem há teclas nem, em rigor, se prime uma imagem. Ah, fascinantes arqueologias linguísticas! Todas elas relativas, curiosamente, ao universo dos telefones. A humanidade resolveu desenvolver o telefone com um empenho que não dedicou a qualquer outro objecto. Isso deve-se, provavelmente, ao facto de a humanidade ter descoberto que não gosta de calor humano. Toda a gente preza calor humano em teoria, mas na prática ninguém o estima. Isso é especialmente evidente quando – e este é um dos casos em que a crueza do exemplo é desculpada pela pertinência da observação – quando, dizia, nos sentamos na retrete e a argola ainda está morna por causa do utilizador que nos antecedeu. Ninguém aprecia a sensação e, no entanto, aquilo que nos repugna não pode ser definido de outra forma: é, sem dúvida nenhuma, calor humano.
Sucede então que a humanidade não gosta de calor humano mas gosta de frieza humana. Nada contra o contacto com outros seres humanos, desde que seja à distância. Donde, o telefone. A melhor qualidade de um produto é, aliás, oferecer ao consumidor a possibilidade de não sair de casa. Trabalhe a partir de casa, adquira este sistema de cinema em casa, agora já pode ir ao ginásio sem sair de casa. O que significa que, além do telefone, a casa também mudou muito. Antigamente, o que se valorizava eram os pretextos para sair de casa. Aliás, sair de vez em quando de casa era uma condição essencial para suportar melhor a vida em casa. Tendo em conta a nova realidade, não sei para onde vai o mundo. Mas, em princípio, é para casa.
(Crónica publicada na VISÃO 1393 de 14 de Novembro)
Ricardo Araújo Pereira
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