quarta-feira, 23 de junho de 2021

Entre o Pan Bagnat de Nice e uma boa Esfregona ordinária, mon coeur balance.


Como se leva uma salada para a praia? Qual é a salada que se pode comer sem talheres? Qual é a salada que fica melhor depois de duas horas à espera?

Temos falado de tomate e de pão e agora temos de falar de tomate no pão, uma das grandes ideias humanas.

A versão mais conhecida é o pan bagnat - ou pão molhado - que é um pão redondo aberto ao meio, esfregado com alho e tomate, regado com azeite e depois recheado de anchovas, cebola, atum, pimento, folhas de aipo, rabanetes e azeitonas. Fecha-se e comprime-se durante um mínimo de duas horas e depois come-se.

Há muitas variantes - com ovo cozido, com alcachofras - mas o pan bagnat é fundamentalmente uma salada niçoise transformada em sanduíche.

Cuidado com as muitas receitas que aparecem na Internet. O melhor pan bagnat é o que se faz em Nice com as hortaliças locais.

Prefera sempre as versões feitas por mulheres, quanto mais velhas melhor.

Isto não é uma questão de seguir as regras. A razão para preferir as versões tradicionais é puramente gastronómica: são mais saborosas porque partem de milhões de experiências ao longo dos anos.

São estas que encontram o equilíbrio - que é dificílimo em qualquer salada, mesmo com poucos ingredientes.

As variantes individuais - e não há quem não as tenha - não são apenas interpretações aleatórias.

São modificações pessoais que assentam solidamente nas receitas comprovadas.

Perante uma multidão de receitas, a diculdade é adivinhar quais são as autênticas e quais são as (centenas de) ignorantes, feitas ao calhas só para despachar, modernaças só para serem diferentes ou as feitas sensacionalmente para conseguir cliques.

A autenticidade é muito difícil de denir e de apurar - talvez seja impossível - mas isso não quer dizer que não existe. O que é autêntico, só para ajudar a afastar o trigo do joio, é o que é comido regularmente com prazer ao longo dos anos, por gerações sucessivas de pessoas muito diferentes a viver no mesmo sítio, mas sem se pensar nisso. O autêntico é, em certo sentido, o óbvio. É o óbvio escondido por tanto uso.

Digo isto porque a atitude actual, por ser conveniente e preguiçosa, é dizer que o pan bagnat é aquilo que se quiser. Para contrariar esta atitude é preciso dizer o contrário: que só um niçoise em Nice é capaz de fazer um pan bagnat. Mas como há muitas pessoas a viver em Nice...a variedade não falta.

Aqui em Portugal proponho uma sanduíche a que chamarei a Esfregona. É uma sandes de salada.

É uma merendeira montanheira. É uma açorda de carcaça fresca. É aquilo que se quiser.

A primeira coisa que vai buscar ao pan bagnat é o pão redondo, individual, acabadinho de cozer.

Ignore os palermas que lhe falarem em pão velho. Uma Esfregona tem de ser feita com pão fresco, para ter o miolo fonho mas - indispensavelmente - o estaladiço da côdea saidinha do forno.

Abre-se o pão à mão e esfrega-se com um bom dente de alho. Faz-se o mesmo a um tomate maduro e esfrega-se mais um bom bocado.

Pega-se no bom azeite e deita-se lá para dentro. Parabéns: a Esfregona está bem banhada.

Agora é consigo. Mas tem de levar tomate, anchovas e estaladiços: rabanetes, pepino (uma heresia em Nice), pimento vermelho ou verde. Tem de levar atum e, em Portugal, atum que não seja acompanhado por ovo cozido

não entra.

O que é mesmo proibido é maionese. Seria como pôr maionese numa salada de tomate temperada com azeite e vinagre.

Quanto ao vinagre, acho que o azeite entristece sem ele mas compreendo que o deixem de fora.

A Esfregona deve ser impossível de fechar. Por isso, à maneira da malta de Nice, embrulha-se em celofane (para não perder os sucos) e põe-se-lhe um peso em cima (um garrafão de 5 litros, cheio de água) durante duas horas. Mais peso é que não, para não ficar com uma Esmagona em vez de Esfregona.

Ao fim de duas horas a Esfregona estará deliciosamente empapada e pronta para ser transportada para onde quiser. É muito bom comê-la na praia, com os sucos a escorrer-nos pelo queixo.

Alguém falou em queijo? Então, em vez do atum...



Miguel Esteves Cardoso

Sábado, 19 de Junho de 2021 | FUGAS |

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