Tirem-me da garagem!
Notícias de grande interesse antropológico, como a polémica gerada pela estátua de um antigo bispo de Braga a segurar um báculo (bastão) com formas que lembram um pénis, mostram-nos um país ignorado, a que os comentadores e cronistas negam qualquer significado ou grandeza.
Ouvimos queixas de todos os lados. Queixas que monopolizam as manchetes e as atenções, que dominam as redes sociais, que concentram todos os focos.
Queixumes acerca da ladroeira dos bancos, da corrupção na política, do juiz Ivo Rosa, da prescrição das multas de Ricardo Salgado (um trampolineiro irreparavelmente grotesco, com uma cara que parece a parte da frente de um desastre), da nova PIDE do Facebook e do Twitter, da ameaça à liberdade do politicamente correcto, das audições nas comissões parlamentares de Joe Berardo (um ratão que já merecia uma lenda), Nuno Vasconcellos (o gajo da Ongoing, cujo cabelo é uma coisa biologicamente inexplicável), Luís Filipe Vieira (um produto típico do artesanato português) e Bernardo Moniz da Maia (com tanto dinheiro como ele, também eu me dispunha a fazer a figura do palhaço das bofetadas), do aumento de capital que o Estado fez na TAP, da praga dos rankings das escolas, da candidata do PSD à Câmara da Amadora (Suzana Garcia, a advogada que nunca fecha o frasco de champô e deixa o lavatório cheio de cabelos), do caso Selminho (Rui Moreira, um homem que se esquece sempre de baixar a tampa da retrete e nunca pendura a toalha molhada depois do duche), da governamentalização das Forças Armadas (reforma do marciano Cravinho), dos efeitos colaterais das vacinas da Covid-19, do deslumbramento das televisões com a chegada dos turistas ingleses ao Algarve (serpentinas, fogos de artifício, revoada de pombas brancas), dos ataques de João Galamba à liberdade de imprensa (a evolução enganou-se quando inventou este javali assanhado), dos negócios imobiliários do presidente da Câmara de Lisboa (o enjoativo Fernando Medina, um homem sepultado dentro de si próprio, como dizia Camilo sobre Vieira de Castro), do mamute hospitalar em Alcântara (autorizado por Manuel Salgado, o arquitecto que põe os sapatos em cima da secretária enquanto fuma charutos), dos deputados investigados por moradas falsas, da raspadinha do património, de José Miguel Júdice (conselho: quando não souberem como terminar uma lista terrivelmente longa, escrevam José Miguel Júdice).
Podemos mudar de assunto? (James Joyce dizia que já que não podemos mudar de país, ao menos mudemos de conversa.)
É que enquanto os órgãos de comunicação social estão ocupados com estas notícias, que ficam aquém da densidade do País, os acontecimentos sérios, realmente importantes, passam ao lado dos leitores, são varridos para baixo do tapete dos telejornais, circulam quase clandestinamente no WhatsApp.
Notícias de grande interesse antropológico, como a polémica gerada pela estátua de um antigo bispo de Braga a segurar um báculo (bastão) com formas que lembram um pénis, mostram-nos um país ignorado, a que os comentadores e cronistas negam qualquer significado ou grandeza.
Nestes tempos que descuidam o culto da História, é necessário seguir com atenção o Diário do Minho: a estátua de D. João Peculiar, o arcebispo que coroou D. Afonso Henriques como Rei de Portugal, tornou-se uma atracção turística da cidade dos arcebispos e levou o presidente da Junta de Freguesia de Cividade, António Santos - incomodado por "ser autarca de uma freguesia que é conhecida pelas anedotas e graças que se contam sobre a estátua" - a desabafar com os jornalistas, confessando-lhes que "o que mais me custa é ver os turistas agarrados à estátua a rir e a fazer graçolas".
Reparem. A grande discussão do País deveria fazer-se em torno da mulher fotografada com um polo da PSP a fazer uma dança erótica para a amiga; do pombo de Fafe, que na maior solta da Europa foi o mais rápido a chegar ao Minho (voou 681 quilómetros); ou do Lar na Madeira que entre 2009 e 2018 drogou idosos com psicofármacos.
Para seguirmos de perto a chamada situação do País, impunha-se um debate alargado sobre a colocação, em Tondela, de uma estátua em honra ao emigrante, que desagradou os moradores, pois representa um homem nu; o arresto do iate do "rei do pernil", avaliado em mais de 3 milhões de euros; ou a sanita que uma advogada costumava levar para o Tribunal de Coimbra.
Um dos últimos grandes acontecimentos da vida portuguesa - "PSP apanha clientes de restaurante escondidos dentro de túnel de escoamento de água" - é uma metáfora para as más situações em que a vida nos coloca. E, no entanto, não tem sido convenientemente explorada nas análises sobre a loucura que anda solta no País.
Dedicar-se a estudar Portugal sem ter em conta notícias como "Ex-namorado da Pipoca Mais Doce apanhado em passeio com economista" ou "Toy ofereceu vibrador à sogra", é não perceber nada do que se está a passar.
Não discutir actualidades que convocam a força acumulada de uma tradição bem ancorada na cultura portuguesa, como "Homem ilibado do crime de violência doméstica após arrastar mulher pelos cabelos na rua", "Marido mata a mulher para calar ‘voz irritante’, depois de ela o chamar várias vez para ir jantar" ou "Homem ameaça destruir casa da mulher com motosserra em Santo Tirso (filhos do casal também foram ameaçados com equipamento)", significa amputar o País de expressões essenciais da sua identidade.
Mas há uma boa notícia: nos últimos dias, muita gente se indignou porque João Pedro Matos Fernandes, ministro do Ambiente e da Transição Energética, inaugurou, com laçarote vermelho, um parque de estacionamento para quatro bicicletas na estação do Senhor Roubado (Odivelas).
Dificilmente poderia ter imaginado momento mais propício para dizer: tirem-me da garagem!
Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico
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