quarta-feira, 5 de junho de 2019

Agustina e a imortalidade

Elisabete Miranda


Elisabete Miranda

Jornalista


Cruzei-me pela primeira vez com a Agustina na escola secundária. Eu andava em economia e uma amiga, que tinha enveredado pelas humanísticas, intimou-me a ler a Sibila. Eu que fazia as primeiras incursões pelos existencialistas, que tinha colocado o Virgílio Ferreira no pedestal de maior escritor vivo, não estava muito disposta a ceder tempo a clássicos que outros andavam a ler por obrigação curricular. Agustina, entusiasticamente emprestada, foi ficando de lado.
Quando me resolvi a dar uma oportunidade ao livro, as páginas estavam todas sublinhadas, ora a traço fino, ora a traço duplo, conferindo uma autoridade especial às frases, marcando-me o ritmo da leitura.
Algumas eram aforismos de assimilação fácil, como:
“São os espíritos superficiais que mais creem nos êxitos retumbantes, nas formulas fáceis para vencer” ,
“Ela não chorava, o silêncio era a sua única represália”,
“A morte de um velho não inspira dor a outro velho – inspira pânico”,
“Gosto das pessoas que são incapazes de deixar de ser o que são”

Outras críticas impiedosas:
“Vinham tomadas dessa adoração romântica pelo campo, a curiosidade do rustico, a pretensão do simples, cheias desse entusiasmo de burguesas que iludem o aborrecimento querendo a aceitar a novidade, o diferente sem se lhes adaptar”
“A sua doçura para com as crianças dependia da sua imensa ansiedade de simpatia e da satisfação que sentia ao ser reclamada e preferida por elas.

Outras ainda tocantes reflexões filosóficas:
“Não a desejava, apenas todo o seu ser se adaptava a cumprir a morte. Naquela casa, ela, enferma, nada receava. Era invulnerável porque não se instruíra a ponto de compreender o medo”
“O mais veemente dos vencedores e o mendigo que se apoia num raio de sol para viver um dia mais, equivalem-se, não como valores de aptidões ou de razão, não talvez como sentido metafísico ou direito abstracto, mas pelo que em si é a atormentada continuidade do homem, o que, sem impulso, fica sob o coração, quase esperança sem nome”

Foi assim a minha iniciação à Agustina, mais tarde que cedo, admirando-lhe o estilo e sondando-lhe a profundidade, através de uma leitura guiada de quem já por lá andara.

Ontem à tarde liguei à minha amiga para lhe dizer que ainda tenho o livro comigo. “Tchiiii… tens esse livro desde 93?”. “Não sabes fazer contas”. “Mas, afinal, leste-o?” “Li, e se calhar está na hora de to devolver”. “Não faz mal, tenho outro (…) E porquê agora? Assim como assim ela não morreu”.
Hoje é dia de luto nacional e a morte de Agustina Bessa-Luís domina a atualidade. “Mandem alterar as notícias: Agustina não morreu” é também o título da evocação da Joana Beleza à escritora que nunca se sentiu “cansada a descrever o humano, precisamente porque participo de tudo o que é humano”.
O José Mário Silva explica as razões da sua consagração como uma das mais importantes escritoras de língua portuguesa, a Ana Soromenho republica um artigo de março de 2018, onde percorre a historia da mulher e da escritora e a Ana França selecionou 11 citações para acompanhar 11 fotografias da autora.
O Público dedica praticamente a toda a capa e sete páginas com a vida e obra de Agustina, o Diário de Notícias lembra que a autora não era só a Sibila, o JN lembra-lhe a frase "nasci adulta, morrerei criança" e o i destaca outra citação ainda: “Porque escrevo? Escrevo para incomodar o maior número de pessoas com o máximo de inteligência”.
Pedro Mexia fala de “uma espécie de continente" que lhe "ocupa a vida inteira”; Gonçalo M. Tavares de uma escritora que destrói pobres e ricos, homens, as mulheres casadas e não casadas, heróis e cobrados, para os dar a conhecer; Hélia Correia de “um mistério absoluto na escrita; António Feijó de uma figura que, “ao mesmo tempo que é admirativa também é agressiva”. Lídia Jorge de alguém que "entende a marcha da humanidade".
O corpo de Agustina vai a enterrar no cemitério do Peso da Régua, e Mário de Carvalho diz que, daqui em diante, ela enfrenta"o desafio da imortalidade". Em 2004, em entrevista ao Público (agora recuperada) a escritora já reagia, com humor, à possiblidade de um dia cair no esquecimento: "Espero nessa altura não me impressionar com isso".





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