Com o seu enorme nariz político, Costa farejou o problema: está em curso a descredibilização acelerada das intervenções do Presidente da República. E o primeiro-ministro sabe perfeitamente quem tem sido o grande amigo dos últimos anos.
Estava escrito nas estrelas: um dia, Marcelo Rebelo de Sousa iria afogar-se na interminável torrente das suas próprias palavras. Um dia – e esse dia já tem data: 11 de Outubro de 2022 –, o Comentador da República iria proferir uma tremenda barbaridade, que chocaria o país. É uma simples questão de estatística: quem nunca se cala, quem improvisa em permanência, quem comenta de manhã, à tarde e à noite, está sujeito a cometer grandes erros. Marcelo já cometeu vários desde 2016, mas nenhum tão grande e tão grave quanto dizer que cerca de 400 queixas de abusos de menores por parte de sacerdotes católicos “não é um número particularmente elevado”.
Marcelo ainda tentou corrigir o que disse com novas declarações às televisões e uma nota no site da Presidência da República. Infelizmente, não melhorou a sua situação: apenas juntou a mentira à insensibilidade.
Deixem-me sublinhar a palavra “mentira”, porque este não é um tema para paninhos quentes, nem para desculpar pela enésima vez o Presidente da República. Sim, todos sabemos que Marcelo é dado a “marcelices”, mas isto não é uma nova vichyssoise, nem uma maldadezinha para divertir os leitores do Expresso.
É a terceira péssima intervenção sobre o tema dos abusos na Igreja, primeiro com uma absurda declaração a título “pessoal” acerca do carácter de D. Manuel Clemente e D. José Policarpo; depois com a trapalhada em torno do telefonema a D. José Ornelas sobre o envio para o Ministério Público da queixa de ocultação; e finalmente com esta inconcebível declaração sobre o número de abusos: “Haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado porque noutros países com horizontes mais pequenos houve milhares de casos.”
Mais tarde, Marcelo declarou à SIC: “Já percebi que foi mal interpretado o que eu disse, não percebo bem porquê, mas as pessoas têm todo o direito de não entender.” E depois escreveu no site oficial: “O Presidente da República sublinha, mais uma vez, a importância dos trabalhos desta Comissão, muito embora lamente que não lhe tenham sido efectuados [sic] mais testemunhos, pois este número não parece particularmente elevado face à provável triste realidade, quer em Portugal, quer pelo mundo.”
Não há aqui nenhuma má interpretação. Há apenas uma tristíssima cambalhota argumentativa, uma deslocação de palavras de um lado para o outro para fingir que não disse o que disse. Marcelo, fanático dos portugueses-melhores-do-mundo, tentou desvalorizar a dimensão dos casos denunciados em Portugal quando comparados com outros países. Ponto.
Problema: toda a gente viu. Está gravado. E as críticas choveram com uma agressividade inédita. Marcelo assustou-se. E – mais significativo – António Costa também, até porque muitas dessas críticas vieram do interior do PS. Na quarta-feira, o primeiro-ministro apressou-se a sair em defesa do Presidente, repudiando a “interpretação inaceitável que tem sido feita das suas palavras”. Todos conhecemos Marcelo, disse ele.
Pois conhecemos. Tal como todos conhecemos Costa muito bem. Com o seu enorme nariz político, ele farejou o problema: está em curso a descredibilização acelerada das intervenções do Presidente da República. E António Costa sabe perfeitamente quem tem sido o grande amigo dos últimos anos. Agora que até se anda a encostar à direita, não lhe dá jeito nenhum que se escangalhe a muleta de Belém. Infelizmente, não há nada aqui que se recomende – nem a barbaridade, nem a solidariedade.
João Miguel Tavares
O autor é colunista do PÚBLICO
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