segunda-feira, 3 de outubro de 2022

CERTOS MOVIMENTOS QUE DIZEM TER COMEÇADO NAS REDES SOCIAIS DA CHINA SÃO NOSSAS TRADIÇÕES.

HÁ COISAS INCOMPREENSÍVEIS, E UMA DAS MAIS DESTACADAS É DIZER QUE UMA COISA CHAMADA TIK TOK DEU ORIGEM A UMA CULTURA ANTIGA, MUITO NOSSA.

Mal li, fiquei indignado. Centenas de especialistas em tudologia, cientologia, sociologia, antropologia cultural e outras coisas que, por acaso, a episteme não me ajudou a discernir, debatem o significado do quiet quitting, que em português se pode traduzir por “desistência silenciosa”.

Alguns empresários, dizem os especialistas, estão preocupados porque — e cito o quase vetusto “Público” — “Não é trabalhar menos, é fazer o que está no contrato e dentro do horário contratualizado. O quiet quitting surge como reação à precariedade laboral e é mais um sintoma da mudança na forma como nos posicionamos perante o trabalho.” Como não achar tudo isto mentira de quem pretende tornar um velho hábito numa tendência nova, através da sua designação em inglês? Como não se ficar revoltado quando vemos uma tradição, um hábito — e dos mais entranhados — ser aproveitado por académicos, jornalistas e outros sem-vergonha, para teorizarem uma coisa qualquer?

Entendamo-nos, a já traduzida desistência silenciosa parece ter começado em terras de Xi Jinping e poderá ser entendida como uma recusa dos trabalhadores em fazer mais do que foi acordado, e dentro do horário contratualizado. O “The Wall Street Journal”, grande jornal económico, que zela pela saúde das empresas e dos seus trabalhadores, chama-lhe uma espécie de ‘greve de zelo’ e diz que o movimento provoca ‘violentas dores de cabeça’ (citei, uma vez mais, o “Público”) aos empregadores, um pouco por todo o lado.

Especialistas consagrados, como o professor Pedro Gomes, que escreveu o livro “Sexta-feira é o Novo Sábado’ (antecipando-se a um livro que eu tinha no prelo, intitulado “Quarta-feira é a Nova Quinta, que por Sua Vez é a Nova Sexta, que é o Novo Sábado”), diz com muita razão que é difícil de avaliar, até porque não há estatísticas. Outro reputado especialista, Joaquim Coimbra, da Faculdade de Psicologia e Educação da Universidade do Porto, afirma que vivemos uma mudança de fundo de que — e cito, o quiet quitting, “seja lá o que isso for”, é mais um sinal.

Tenho para mim que falta mundo a estes especialistas. E não digo colóquios em Pago Pago ou nas Bahamas. Nada disso, desses podem ter muitos, até em locais sérios como a Universidade de Londres, do Porto, da Sorbonne ou de La Sapienza; o que lhes falta, manifestamente, é um cartório, uma Autoridade Tributária, um balcão da Segurança Social, quiçá, talvez até de uma operadora de comunicações. Acaso o tivessem, teriam imediatamente percebido que o quiet quitting, se não nasceu em Portugal, mesmo sem redes sociais e Tik Tok chineses, deve a este país anos, décadas, séculos de tradição segura. Claro que há exceções, mas como afirmou o professor Coimbra, abandono ou desistência exercidos de forma silenciosa, não se sabe bem o que é, salvo que faz parte de uma mudança de fundo. Pois essa mudança, estimado professor, opera-se neste país pelo menos desde que o Marquês de Pombal acabou com a escravatura no continente.

Desde que os funcionários deixaram de depender dos caprichos dos seus donos e passaram à condição de homens livres ou coisa parecida, que a desistência silenciosa passou a ser uma atitude laboral muito disseminada em Portugal, nomeadamente nas funções públicas e relacionadas com o público.

Essa desistência, ou abandono, não teria, quando muito, a consciência de que era um movimento, pois apenas respondia a duas coisas: a falta de vontade do funcionário e a tradição que encontrava no seu posto de trabalho. Esses dois fatores foram crescendo à medida que as suas remunerações foram caindo. Entre alguns deles, rendia mais ficar de baixa do que ir trabalhar; outros preferiam pendurar o casaco nas costas da cadeira da repartição e ter um emprego simultâneo no qual conseguissem, com um pouco de abandono silencioso, aboletar mais um salário, sendo que com dois já conseguiam viver e ir, talvez, a uma praia no verão.

Seria, do meu ponto de vista, muito salutar se os professores e especialistas que se debruçam sobre o assunto escrevessem ao “The Wall Street Journal” explicando-lhes que foi esta singularidade portuguesa que se espalhou pelo mundo (por algum motivo fomos pioneiros da globalização), tendo chegado à China, onde, como se sabe, há uma enorme tendência para copiar o que é dos outros, em aspetos de alta tecnologia, como é o quiet quitting.

Nunca termos dado um nome tão bom à moleza e à preguiça não nos tira os pergaminho.

COMENDADOR
MARQUES DE CORREIA

Expresso

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