sábado, 15 de outubro de 2022

Não era só o gás barato: a teia que a Gazprom teceu na Alemanha

Consórcio de jornalistas Correctiv mostrou como a empresa russa de gás montou um sistema de influência na Alemanha, muito para além da figura mais emblemática, o antigo chanceler Gerhard Schröder.

A razão óbvia para o modo como a Alemanha se tornou dependente do gás russo – 50% de todo o gás importado vinha da Rússia – é o seu preço mais barato. Mas esta está longe de ser a única razão. O consórcio de jornalistas Correctiv publicou uma investigação sobre o lobby da Gazprom na Alemanha e o sistema que o torna diferente dos outros lobbies – um sistema, uma rede de poder.

O director do consórcio, Justus von Daniels, esteve esta quinta-feira na Comissão Especial sobre Ingerência Estrangeira em Todos os Processos Democráticos na União Europeia no Parlamento a explicar o que se sabe sobre este lobby, que assenta não em pagamentos por participações em conferências ou algo semelhante, mas sim “na criação de uma rede de poder em que há expectativa de benefícios, informação privilegiada, de ajuda para se conseguir manter no poder, há uma proximidade que deixa as pessoas amarradas”, descreve.

Se todos vêem o antigo chanceler Gerhard Schröder como a face do lobby do gás russo na Alemanha, o jornalista diz que o antigo chanceler não conseguiria ter tido tanta influência sozinho, e que além dele, a Gazprom tinha influência sobre uma série de pessoas “que davam um apoio constante” à ideia de aumentar a quantidade de gás russo importado, um “envolvimento profundo” de políticos e empresas além de Schröder.

Outro ponto interessante é que o apoio não foi uma questão partidária: tanto tinham envolvimento com o lobby da Gazprom o antigo chefe da CSU (União Social Cristã, o partido-gémeo da CDU na Baviera) Edmund Stoiber, como Sigmar Gabriel, do Partido Social Democrata (SPD), que foi ministro da Economia.

A investigação seguiu informação que já era pública, sobre casos individuais, e encontrou dados novos. O que pretendeu, explicou Justus von Daniels na comissão do PE, foi ver o “sistema”. Na investigação publicada, o consórcio identificou dois “centros” do lobby, em dois estados federados, Saxónia e Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental (este na costa do mar Báltico), ambos pontos estratégicos como pontos de entrada para gasodutos.

A investigação começou a deparar-se com nomes de associações muito semelhantes: o Fórum Germano-russo para Matérias-Primas, a Conferência Germano-russa para Matérias-Primas, A Parceria Germano-Russa para Matérias-Primas, etc. “Não é coincidência e a confusão é desejável. Na verdade, as mesmas pessoas e políticos encontravam-se repetidamente, os discursos e a mensagem eram os mesmos: a cooperação em termos de recursos naturais com a Rússia tem de aumentar.”

Depois da invasão da Ucrânia pela Rússia a 24 de Fevereiro de 2022, estas fundações deixaram de existir. Algumas apagaram sites ou listas de membros. Mas ainda há imagens na Internet de alguns encontros destes fóruns, por exemplo em São Petersburgo ou Düsseldorf. Durante o dia, conta a investigação do Correctiv, os participantes discutiam a importância da cooperação russo-alemã, e as noites eram ocupadas com entretenimento em locais de luxo, como castelos ou hotéis de cinco estrelas. A esmagadora maioria dos participantes, nota ainda o consórcio, eram homens. Isso vale tanto para os encontros (em Düsseldorf em 2016, por exemplo, falaram mais de 70 homens e estiveram presentes menos de dez mulheres) como para os membros da rede.

O antigo ministro da Economia Sigmar Gabriel era um dos participantes regulares, assim como o chefe do governo do estado federado da Saxónia, Michael Kretschmer. Sigmar Gabriel era ministro em 2015, quando foi aprovado um acordo que deixou a empresa de armazenamento de gás Peissen, no estado de Schleswig-Holstein, parcialmente nas mãos da Gazprom (algo que aconteceu sem qualquer debate público, notou Justus von Daniels)​. A VNG é outra empresa repetidamente mencionada na investigação do Correctiv – a empresa da Saxónia teve de ser entretanto resgatada com dinheiros públicos (a quantia não foi revelada) pela sua enorme dependência do gás russo. No seu conselho de supervisão estava um antigo agente da Stasi (os serviços secretos da Ex-RDA), que tinha ainda um cargo no Nord Stream 2, e que está hoje na lista de pessoas sujeitas a sanções dos Estados Unidos.

O facto de poder comprar o gás russo barato era um bónus para a VNG e para a região – os benefícios económicos para os seus estados federados é uma das razões que levaram responsáveis dos governos regionais a promover negócios com a Rússia. Mas o Correctiv aponta ainda outra razão de Kretschmer: “o seu partido também beneficiou”: a VNG patrocinou eventos da CDU, com contributos de várias centenas de euros por ano, e grupos de trabalho da CDU encontravam-se por vezes em locais da VNG para eventos.

Não é surpresa que Gabriel ou Kretschmer fossem figuras que defendessem o levantamento de sanções à Rússia após a anexação da Crimeia de 2014. Mas o lobby apostava ainda em figuras de menor relevo, que aparecem repetidamente nestas reuniões, e algumas delas mudam depois de papel, como Heino Wiese,​ antigo deputado do SPD, aliado de Schröder: passou por uma agência de relações públicas e de seguida foi nomeado cônsul honorário da Rússia em Hanôver.

A chefe de Governo de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, Manuela Schwesig, distanciou-se agora da Rússia. Mas em 2018 recebia, no Ministério dos Negócios Estrangeiros em Berlim, num evento patrocinado pelo Fórum Germano-Russo, um prémio, com a presença dos ministros dos Negócios Estrangeiros alemão, Heiko Maas, e russo, Serguei Lavrov. A importância para a Rússia deste estado é lembrada pelo Correctiv pelo modo como o então vice-ministro da Indústria e comércio de Moscovo, Segevich Osamakov, se referiu a ele: “um posto avançado” na Europa.

Esta investigação, afirmou Justus von Daniels, é apenas o começo – os jornalistas do Correctiv continuam a trabalhar nela e a acrescentar novos dados sobre “as várias estruturas camufladas em que políticos quer da CDU quer do SPD” estavam envolvidos.

https://www.publico.pt/2022/10/14/mundo/noticia/nao-so-gas-barato-teia-gazprom-teceu-alemanha-2023927

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