terça-feira, 7 de março de 2023

O cravo e o Cravinho

dn.pt

Joana Amaral Dias


O inaceitável convite de Gomes Cravinho a Lula da Silva para discursar nas (quase sempre turbulentas) celebrações do 25 de Abril revela três problemas estruturais da nossa (ex) democracia.

O primeiro é óbvio (ainda que fundamental): nenhum ministro pode tomar tal decisão - existe algo fundamental no Estado de Direito, a separação de poderes. É nevrálgico para o regime respeitar que a Assembleia da República (AR) é soberana. Quando um governante acha que pode interferir, sem rebuço, no parlamento, algo já está irreversivelmente podre.

A segunda questão é também evidente mas muito dolorosa: os ministros hoje são filhos de ministros, tudo medra numa matrioska endogâmica e nepotista que, inevitavelmente, degenera nestas mutações aberrantes - Cravinho foi um muito dúbio ministro da Defesa (basta recordar o Hospital Militar), e é agora um medíocre ministro dos Negócios Estrangeiros que apenas sabe tratar da sua vidinha e, por isso, convida Lula não para defender os interesses da República portuguesa, mas para responder apenas ao que pessoalmente lhe convém. De facto, mal mete um pé fora da cartilha de Washington, Cravinho estampa-se. Talvez por causa dessa sua tendência para acidentes tenha igualmente necessitado de cunhas para a obrigatória revalidação da sua carta de condução aos 50 anos - motivo pelo qual também está a ser investigado por tráfico de influências e abuso de poder. Até para tratar de um simples documento! Enfim, são estes os estadistas da contemporaneidade.

A terceira questão é tão ou mais mortal. Muitos dos que criticam o presidente do Brasil e a sua presença nestas celebrações (mesmo que tivesse sido por iniciativa parlamentar) fazem-no pelas razões erradas: declarar que nenhum chefe de Estado estrangeiro deve tomar a palavra no nosso hemiciclo quer dizer que a absoluta excepção é Zelensky? Porquê?! Da mesma forma, aduzir que Lula não deve vir porque é neutro ("demasiado neutro") relativamente à guerra na Ucrânia é absurdo. Até parece que já estão todos a alistar-se para as fileiras do batalhão Azov onde não há lugar para moderações. Assim sendo, para rejeitar este comportamento abusivo do ministro, também poderiam invocar o negro cadastro do ocupante de Brasília no que à corrupção diz respeito.

Por fim, e independentemente de tudo isto, que sentido faz convidar Lula para as cerimónias do 25/04? Teve algum papel especial nessa data, deu algum contributo digno de nota? Encerraria alguma simbologia especial? Talvez. Mas pelos piores motivos. É que, ainda por cima sendo a primeira vez que um chefe de Estado estrangeiro se juntaria a tais festividades na AR, e aberto esse precedente, não seria indispensável que a escolha encerrasse especial significado? Afirmou Gomes Cravinho, como grande justificação, que Lula é amigo de Portugal e dos portugueses. Mas o que quer isto dizer, exactamente? Assim, de repente, a amizade que chega à lembrança era com Sócrates e os amigos que vêm à memória são Ricardo Salgado, Manuel Pinho, BES, EDP, Portugal Telecom, etc. Será isso então que se pretende celebrar esta Primavera? Isso tudo junto e somado, multiplicado, actualizado e eternizado?

Este Abril de quase meio século também está a precisar de uma urgente revalidação da sua carta. Mas sem cunhas, desenrascanços, jeitinhos, recomendações ou pistolões. Pode ser mesmo directo. Sem mais. E já.

Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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