quinta-feira, 23 de março de 2023

O Governo quer impedir que José Sócrates seja julgado?


Há milhares de processos em risco de prescrever porque o Governo anda há ano e meio para publicar uma portaria que regulamenta a sua distribuição em tribunal.

A pergunta que dá título a este artigo foi feita nesta quarta-feira a António Costa. Durante o debate parlamentar, o líder da Iniciativa Liberal explicou que há milhares de processos em risco de prescrever porque o Governo anda há ano e meio para publicar uma portaria que regulamenta a sua distribuição em tribunal. Entre esses processos está o de José Sócrates. A lei exigia que a regulamentação fosse feita no prazo de 30 dias. Estamos à espera desde Outubro de 2021. Daí a pergunta de Rui Rocha: “O senhor primeiro-ministro quer correr o risco de que os portugueses pensem que é propositado?”

António Costa não reagiu à provocação. Limitou-se a responder: “A portaria que regula esse diploma está para publicação muito em breve no Diário da República.” Não clarificou quão breve era o “muito em breve”. Sempre que lhe colocam à frente um microfone para comentar um caso embaraçoso que esteja sob investigação, António Costa responde com um mantra que os portugueses já conhecem de cor: “À política o que é da política, à justiça o que é da justiça.” Parece simples – mas não é. Os tribunais aplicam leis, só que essas leis são aprovadas por políticos. O funcionamento dos tribunais está regulamentado, mas esses regulamentos são aprovados por políticos. A justiça necessita de certos recursos para funcionar, e esses recursos são aprovados por políticos. Se os tribunais ou a justiça não funcionam e for preciso mudar as coisas, as reformas têm de ser aprovadas por políticos.

Ainda que o lugar da política seja fora das salas dos tribunais, ela detém um poder de intervenção desmesurado através das leis, dos regulamentos, das nomeações ou do financiamento. Portanto, sempre que António Costa repetir o seu insuportável mantra, convém desmascarar-lhe a sonsice. Por exemplo, remetendo-o para o discurso que o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Soares, fez no sábado no Funchal, no encerramento do XII Congresso de Juízes, perante o Presidente da República e a ministra da Justiça. Disse ele: “A realidade que se constata quando estão envolvidas pessoas com poder na política, na banca, nos negócios, no desporto, na justiça, é que os processos não têm fim. Há casos que dificilmente chegarão a uma decisão final antes da prescrição.” E acrescentou: “Não podemos continuar a olhar para isto como se nada fosse, parecendo cúmplices de uma ineficiência que objectivamente beneficia a impunidade de pessoas poderosas.”

Há um mês, já aqui tinha denunciado a nova actividade favorita da defesa de José Sócrates: de cada vez que um juiz é escolhido para analisar um dos inúmeros recursos da Operação Marquês, Pedro Delille entrega novo recurso a pedir o seu afastamento, por a distribuição ter sido feita através de um sorteio desconforme à lei. Contudo, não tinha ainda noção da dimensão desses recursos. Sem se referir directamente a Delille ou ao processo, Manuel Soares perguntou isto: “Será normal, legítimo, aceitável que um só advogado, num só tribunal de recurso, em nove meses, suscite 23 incidentes de recusa dos juízes, duas, três e quatro vezes nos mesmos processos e que não haja maneira de pôr termo a isso, apesar das sucessivas decisões que negam provimento aos seus pedidos?”

Aí está o número: 23 incidentes de recusa em nove meses só porque o Governo está há ano e meio para regulamentar uma lei. Se isto não é querer impedir Sócrates de ser julgado, parece. E parece mesmo muito.

João Miguel Tavares

O autor é colunista do PÚBLICO

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