Pelo planeamento sem falhas, via-se bem que estávamos num congresso comunista organizado durante a pandemia. Pelas intervenções, dir-se-ia que a pandemia era a gripe espanhola de 1918.
01 dez 2020, José Diogo Quintela , ‘Observador’
O Congresso do Partido Comunista Português foi um evento impressionante. Pelo planeamento sem falhas, pelo respeito escrupuloso do afastamento social, pelo zelo no uso das máscaras e na aplicação das medidas de higiene, via-se bem que estávamos num congresso comunista organizado durante a pandemia. Pelas intervenções, dir-se-ia que a pandemia era a gripe espanhola de 1918. Montaram um grande aparato de segurança, mas sem necessidade. Os comunistas estão imunes ao contágio, uma vez que a Covid está em 2020 e os comunistas em 1920.
Devo dizer que foi com grande satisfação que passei uma tarde a ouvir os delegados. Na espiral de incerteza em que vivemos, é reconfortante saber que ainda há faróis de coerência por onde nos podemos nortear. O comunismo nunca muda e os comunistas não têm pejo em afirmá-lo. Gabo-lhes a constância dos princípios. São contra a propriedade privada e também contra a impropriedade privada: tudo o que têm a dizer que seja inconveniente, dizem-no em público.
Gostei de todos os discursos. Cada qual, à sua maneira, contribuiu com uma camada de mofo para aquele sabor a antigo com que fiquei no fim da sessão. No entanto, tenho de salientar a comunicação do camarada Albano Nunes, membro da Comissão Central de Controlo (a CCC do PCP é uma espécie de polícia interna, ou seja, fiscaliza os comunistas como os comunistas gostavam de nos fiscalizar a nós).
No início, confesso que tive receio. Ao ser apresentado, anunciaram que Albano Nunes iria “intervir sobre a actualidade da ideologia marxista-leninista”. Pensei: “Olha! Tu queres ver que há novidades? Que actualizaram o marxismo-leninismo e chegaram a novas conclusões? Substituíram por uma versão mais moderna? Espero que não estraguem!”
Mas não tinha com que me preocupar. Felizmente, Albano Nunes é, segundo o site do PCP, um “intelectual”. Ora, para os comunistas, o “Intelectual” é o responsável por, através da repetição, decorar a doutrina e passá-la à próxima geração de “intelectuais”. “Marxismo-leninismo” e “novidades” são antónimos. Eis alguns dos destaques:
“Como escreve Marx ‘a arma da critica não pode substituir a critica das armas. O poder material tem de ser derrubado por poder material.’”
“Tal não desmente que os grandes avanços e transformações revolucionárias do século XX estejam indissoluvelmente ligadas à acção revolucionária das forças que têm o marxismo-leninismo como base teórica e ao papel da URSS e do campo socialista.”
“Mas o capitalismo não cai por si, tem de ser derrubado pela força. Também aqui a prática confirma as grandes teses do marxismo-leninismo, relativas à revolução, a teoria da luta de classes, (…) ao Estado como questão central da revolução, à socialização dos grandes meios de produção, ao internacionalismo proletário.”
Muita conversa sobre derrubar coisas à força, muita saudade da URSS. Enfim, comunistas a serem comunistas. Num dia, a aprovarem orçamentos burgueses no Parlamento, no dia seguinte, a quererem pegar em armas para abolirem parlamentos, burgueses e orçamentos.
Em Portugal há uma complacência com o comunismo que tem a ver com o nome. “Comunismo” soa mesmo bem. Traz uma mensagem tão linda, como é que quem o propõe pode fazer malfeitorias? Só por azar. Se o PCP se chamasse antes Partido De Bater Com Um Pau Nas Costas e organizasse um congresso, é certo que também ia aparecer alguém a dizer “olhem que o Partido De Bater Com Um Pau Nas Costas já não defende que se bata com um pau nas costas”, mas ia ser mais difícil convencer o resto das pessoas. Se mantivessem no nome e nos estatutos o bater com o pau nas costas; se louvassem o inventor da doutrina que advoga o bater com o pau nas costas; se mostrassem com orgulho o pau com que querem bater nas costas; se se queixassem de quem não acha boa ideia bater com paus nas costas; se lembrassem com saudade os grandes batedores de paus nas costas de antanho; se saudassem os actuais batedores de paus nas costas que brilham no estrangeiro; e se dissessem que, actualmente, não há condições para bater com paus nas costas em Portugal, por causa das leis contra bater com paus nas costas, mas é inevitável que um dia haja condições, a histórica caminha para lá; então, de certeza, que ninguém lhes virava as costas nas imediações de um pau.
Há quem esperasse que, ao fim de 46 anos de convivência com moderados (principalmente desde 2015), o PCP tivesse moderado os seus ímpetos. Pelos vistos, não só não moderou como, pelo contrário, foram os moderados que, no convívio com os extremistas, extremaram as suas posições.
Isso já se nota no PS, que guinou à esquerda. Basta ver que Pedro Nuno Santos e Fernando Medina, futuros candidatos a PM, ultimamente parecem dois pequenos comissários dos sovietes. Um nacionaliza a TAP, todo contente por o Estado ficar dono de uma companhia aérea que, ao que tudo indica, ficará em breve reduzida a uma rota, e que vai para o galheiro. O outro propõe criar uma empresa de entregas de comida para levar as que operam no mercado à falência, só por pirraça contra a iniciativa privada. Não contente com isso, quer também ilegalizar um partido com representação parlamentar.
Era esperado. Os radicais, como o nome indica, têm raízes no seu extremo. Não é fácil arrancá-los de lá. Se vai haver aproximação, é mais provável que sejam os moderados, que não estão presos a nada, a irem ter com eles.
É, aliás, o que já está a acontecer ao PSD por causa do Chega. Nem há um mês começaram a entender-se nos Açores e Rui Rio já está a extremar discurso e posições, com bocas aos habitantes de Rabo de Peixe que “não querem ir ao mar” e votações irresponsáveis no
Essa foi uma das razões pelas quais assinei o texto “A clareza que defendemos”, por não querer a minha área política aliada ao Chega. Para saber que foi a decisão certa, basta prever como será um país em que o Chega governe com maioria absoluta. É ouvir o que o Chega diz, ver quem costuma e quem costumava dizer as mesmas coisas, as acções de quem se associa ao Chega, os amigos estrangeiros do partido, as suas referências históricas. A partir daí é fácil imaginar Portugal ao fim de um ano de Governo Chega. Um país em que proíbe que se ofendam magistrados, polícias e órgãos de soberania, ou seja, onde há censura política. Um país onde os ciganos estão confinados em reservas, primeiro por causa da Covid, depois por causa do sarampo, depois por causa das cáries, depois porque já é hábito. Os ciganos e as pessoas que não gostam de sapos, só para garantir. E as que cantam o “Bamboléo” dos Gipsy Kings. E os romenos, que fazem lembrar ciganos. E os moldavos, que aquilo é tudo igual. Um país que expulsa portugueses nascidos noutros países ou nascidos cá, mas filhos de cidadãos de outros países. Um país onde só não se retiram os úteros às mulheres que abortam porque o aborto é proibido. As que conseguem abortar, são presas. Um país onde os abusadores sexuais são castrados e os ladrões só não são manetas porque precisam das mãos para trabalhos forçados nas prisões. E em que não podemos filmar nenhum destes abusos, que é a última tolice proposta pelo Chega. No fim, obviamente, somos expulsos da UE, portanto somos ainda mais pobres.
É um bom exercício, este de imaginar Portugal governado por um partido. Como seria o país se o PCP mandasse? Albano Nunes deu um lamiré. “Ah, é só um velhinho!”, dirão. Ok. E a jovem que saudou os povos da Síria, da Bielorrússia, da Coreia do Norte, de Cuba e da Venezuela? Ou estava a gozar com os povos, acenando-lhes enquanto está repimpada numa democracia; ou estava mesmo a saudar Assad, Lukashenko, Kim Jong-un, Castro e Maduro.
Também não é difícil prever um Portugal comunista. Por mais que, por exemplo, Pacheco Pereira diga que o “programa activo” do PCP se afasta da tradição histórica, ela está lá. É a base, a basesinha. E, se hoje, o que esses partidos dizem parece adaptado à realidade democrática, numa situação hipotética como a que imaginei com o Chega, seria diferente. É aplicar o modelo ético e económico de sociedade que continuam a defender e deixar marinar. Em cinco anos, com o fim da economia privada e fora da UE, estamos a passar fome como na Venezuela. E com a larica, as garantias democráticas que o PCP dá agora perdem a validade.
Porque o povo manifesta-se, as manifestações reprimem-se, as cadeias enchem-se, os cemitérios também e o exílio volta a estar na moda. Não houve uma única vez em que o modelo marxista-leninista, quando aplicado com precisão pelos admiradores de Marx e Lenine, não tenha acabado assim. Eu sei que os portugueses são pouco rigorosos a respeitar instruções, mas o comunismo é como se fosse uma guilhotina do IKEA: seguindo os desenhos, qualquer um consegue montar a máquina de matar. Até os intelectuais bonacheirões do PCP.
(Quem diz o PCP, diz o Bloco. Quando Mariana Mortágua ameaça que “temos de perder a vergonha de ir buscar dinheiro a quem está a acumular”, não está a exagerar. A sanha anti-capitalista e anti-democracia burguesa, presente em sub-grupos bloquistas como o Climáximo, mostra que o BE é tão contra o nosso sistema como o PCP. E como o Chega).
Portanto, os comunistas passam três dias a louvar uma doutrina que, nos sítios onde foi aplicada, matou sempre e querem-nos convencer que, em tendo oportunidade, não aplicavam cá a tal maravilha.
O estranho não é haver gente à direita a assinar aquela carta, é não haver ninguém à esquerda a assinar uma carta do mesmo género sobre o PS se aliar à esquerda radical. É que – e isto pode parecer surpreendente – é possível condenar-se vários extremismos ao mesmo tempo. A sério.
A 5 de Março de 1946, no Missouri, Churchill proferiu o seu famoso discurso sobre a “Cortina de Ferro” que já se estendia do Báltico ao Adriático. O então ex-PM britânico avisou o mundo, recém-saído da devastação da Segunda Guerra Mundial, para a ameaça soviética que se levantava. Disse que as democracias ocidentais tinham falhado ao não evitar a ascensão do Nazismo e que não podiam repetir o mesmo erro com o Comunismo.
A 6 de Março de 1946, no Facebook, vários comentadores disseram: “Vergonha! A comparar nazismo e comunismo!” ou “Falsa equivalência! Diz uma coisa que os nazis tenham feito que os comunistas façam igual!”
A 7 de Março, de 1946, no Twitter, Churchill pede desculpa por ter comparado os dois regimes e retira o que disse.
É pilhéria! Não aconteceu nada disso. Provavelmente, houve críticas. Mas não tem grande interesse referi-las. É que Churchill estava certo. Como se veio a confirmar, o comunismo era perigoso e era preciso combatê-lo como se combateu o nazismo. A verdade é se podem reprovar dois extremismos ao mesmo tempo, sem antes ter de fazer um Excel com tudo o que os assemelha e os distingue, para decidir qual o menos mau. É possível fazer multitasking ético. Sem medo que nos dêem com um pau nas costas.
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