António José Baptista Saraiva
(Leiria, 31 de dezembro de 1917 – Lisboa, 17 de março de 1993)
foi um Professor 'Emeritus' e Historiador de literatura portuguesa.
Segundo dos sete filhos de José Leonardo Venâncio Saraiva e de Maria da Ressurreição Baptista, a sua família transferiu-se de Leiria para Lisboa, tinha António José Saraiva 15 anos.
Estudou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa onde se doutorou em Filologia Românica, em 1942, com a tese Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval. Em Lisboa conhece Óscar Lopes, com quem escreverá, em coautoria, a História da Literatura Portuguesa, publicada pela 1.ª vez em 1955.
Opositor ao salazarismo, foi militante do Partido Comunista Português, de que saiu em rutura, depois de uma viagem à União Soviética.
Apoiou a candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República, em 1949. Nesse ano foi preso e impedido de ensinar. Durante os anos seguintes, viveu exclusivamente das suas publicações e da colaboração em jornais e revistas, nomeadamente no semanário Mundo Literário (1946-1948) e na revista Litoral (1944-1945).
Exilou-se na França em 1960, tendo em seguida ido viver para os Países Baixos, onde leccionou na Universidade de Amsterdão. Regressado a Portugal, após o 25 de Abril, tornou-se professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e depois da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
António José Saraiva publicou uma vastíssima e importante obra, considerada uma referência nos domínios da história da literatura e da história da cultura portuguesas, amadurecida quer na edição de obras e no estudo de autores individualizados (Camões, Correia Garção, Cristóvão Falcão, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Fernão Lopes, Fernão Mendes Pinto, Gil Vicente, Eça de Queirós, Oliveira Martins), quer através da publicação de obras de grande fôlego como a História da Cultura em Portugal ou, de parceria com Óscar Lopes, a História da Literatura Portuguesa.
É pai do jornalista José António Saraiva e irmão do divulgador de História José Hermano Saraiva, do qual sempre foi muito próximo. Foi também sobrinho, pelo lado da mãe, de José Maria Hermano Baptista, militar centenário, (1895-2002, viveu até aos 107 anos) o último veterano português sobrevivente, que combateu na Primeira Guerra Mundial.
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O artigo (DN – 26Jan1979):
«O 25
DE ABRIL E A HISTÓRIA»
«Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril.
Na perspectiva de então, havia dois problemas principais a resolver com urgência. Eram eles:
A descolonização e a liquidação do antigo regime.
1) Quanto à descolonização havia trunfos para a realizar em boa ordem e com a vantagem para ambas as partes: o Exército Português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro Portugal e o Futuro do general Spínola, que tivera a aceitação nacional e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada e honrosa.
Todavia, o acordo não se realizou e retirada não houve mas sim uma debandada em
pânico, um salve-se-quem-puder. Os militares portugueses, sem nenhum motivo
para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os
portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há
memória desde Alcácer Quibir.
Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e inqualificável
deve-se a duas causas:
Uma foi que o PCP, infiltrado no Exército, não estava interessado num acordo
nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato que fizesse cair esta
parte da África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às
potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias
portuguesas insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos
subsequentes vieram mostrar;
Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos
capitães deu início e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo
partidário, quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças
Armadas. Era natural que os capitães quisessem voltar depressa para casa. Os
agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto das tropas, justificaram honrosamente a cobardia que
se lhe seguiu.
Um bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de «revolucionários».
E nisso foram ajudados por homens políticos altamente responsáveis, que
lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização num momento em que
era indispensável manter a coesão e o moral do Exército para que a retirada em
ordem ou o acordo fossem possíveis. A operação militar mais difícil é a
retirada; exige em grau elevadíssimo o moral da tropa. Neste caso a tropa foi
atraiçoada pelo seu próprio comando e por um certo número de políticos
inconscientes ou fanáticos e em qualquer caso destituídos de sentimento
nacional. Não é ao soldadinho que se deve imputar esta fuga vergonhosa, mas aos
que desorganizaram conscientemente a cadeia de comando, aos que lançaram
palavras de ordem que nas circunstâncias do momento eram puramente criminosas.
Isto quanto à descolonização, que na realidade não houve.
2) O outro problema era o da liquidação do
regime deposto. Os políticos aceitaram e aplaudiram a insurreição dos capitães,
que vinha derrubar um governo que, segundo eles, era um pântano de corrupção e
que se mantinha graças ao terror policial: impunha-se, portanto, fazer o seu
julgamento, determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre,
para que a nação pudesse começar uma vida nova. Julgamento dentro das normas
justas, segundo um critério rigoroso e valores definidos. Quanto aos escândalos
da corrupção, de que tanto se falava, o julgamento simplesmente não foi feito.
O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e
nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas. O princípio
da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se
instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se
sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune
tivesse tido a consagração oficial.
Em qualquer caso já hoje não é possível fazer a condenação dos escândalos do
antigo regime, porque outras talvez piores os vieram desculpar. Quanto ao
terror policial, estabeleceu-se uma confusão total. Durante longos meses
esperou-se uma lei que permitisse levar a tribunal a PIDE-DGS. Ela chegou,
enfim, quando uma parte dos eventuais acusados tinha desaparecido e estabelecia
um número surpreendentemente longo de atenuantes, que se aplicavam praticamente
a todos os casos. A maior parte dos julgados saiu em liberdade. O público não
chegou a saber, claramente, as responsabilidades que cabiam a cada um. Nem os
acusadores ficaram livres da suspeita de conluio com os acusados, antes e
depois do 25 de Abril. Havia, também, um malefício imputado ao antigo regime,
que era o dos crimes de guerra, cometidos nas operações militares do Ultramar.
Sobre isto lançou-se um véu de esquecimento. As Forças Armadas Portuguesas
foram alvo de suspeitas que ninguém quis esclarecer e que, por isso, se
transformaram em pensamentos recalcados. Em resumo, não se fez a liquidação do
antigo regime, como não se fez a descolonização.
Uns homens substituíram outros, quando os homens não substituíram os mesmos; a
um regime monopartidário substituiu-se um regímen pluripartidário. Mas não se
estabeleceu uma fronteira entre o passado e o presente. Os nossos homens
públicos contentaram-se com uma figura de retórica: «a longa noite fascista».
Com estes começos e fundamentos, falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um
mínimo de credibilidade moral.
A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão, foram as taras que
presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar.
O actual estado de coisas, em Portugal, nasceu podre nas suas raízes. Herdou
todos os podres da anterior; mais a vergonha da deserção.
E com este começo tudo foi possível depois,
como num exército em debandada: vieram as passagens administrativas, sob a capa
de democratização do ensino; vieram «saneamentos» oportunistas e iníquos, a
substituir o julgamento das responsabilidades; vieram os bandos militares,
resultado da traição do comando, no campo das operações; vieram os
contrabandistas e os falsificadores de moeda em lugares de confiança política
ou administrativa; veio o compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo;
veio o controlo da Imprensa e da Radiotelevisão pelo Governo e pelos partidos,
depois de se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se
distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão,
chamados partidos, a impossibilidade de esclarecer um critério que joeirasse os
patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o
endividamento como um meio honesto de viver.
Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma
Primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco. Ao contrário das esperanças de
alguns, não se começou vida nova, mas rasgou-se um véu que encobria uma
realidade insuportável. Para começar, escreveu-se na nossa História uma página
ignominiosa de cobardia e irresponsabilidade, página que, se não for
resgatada, anula, por si só todo o heroísmo e altura moral que possa ter havido
noutros momentos da nossa História e que nos classifica como um bando de rufias
indignos do nome de Nação.
Está escrita e não pode ser arrancada do livro. É preciso lê-la com lágrimas de
raiva e tirar dela as conclusões, por mais que nos custe. Começa por aí o nosso
resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não
demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou.
As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo,
merecemo-las, moralmente. Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos
capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos
considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de Nação
independente.»
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(Escrito em 1979, por
um académico desencantado do comunismo, onde até 1969 militou)
António José Saraiva
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