sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Bom dia, Lenine!

Observador/premium

Rui Ramos

A interpretação comunista do regime é hoje a mais elucidativa de todas: este é um país onde mandam as famílias socialistas, e quem quer ter poder em Portugal tem de estar com essas famílias.

O congresso do PCP serviu, este ano, para toda a gente aludir ao filme Adeus, Lenine: eis um fóssil, mais ou menos alheio ao mundo de hoje, a fingir que o dia 9 de Novembro de 1989 nunca aconteceu. Ninguém reparou, todavia, no êxito que os comunistas têm tido no suposto fingimento: quem é que, em Novembro de 1989, imaginou que ainda estaríamos a falar em Portugal do PCP em 2020, a não ser em algum curso de história do século XX? Creio, aliás, que o fóssil percebe muito melhor o mundo de hoje do que os que, muito satisfeitos consigo próprios, escarnecem do seu revolucionarismo fora de moda ou se indignam com a sua insistência em abrir excepções ao confinamento. De facto, a leitura comunista do regime é hoje a mais interessante de todas. Só que não está no que o PCP diz, mas, como sempre, no que o PCP faz. Aí, ainda teremos alguma coisa a aprender com Lenine antes de lhe dizer adeus.

O PCP foi, como os outros partidos similares, uma organização financiada pela União Soviética, com activistas profissionais que eram, de facto, funcionários soviéticos. Nesse sentido, sim, o PCP perdeu a razão de ser. Hoje, é uma espécie de embaixada de um país que já não existe. Mas a máquina ficou, com todas as posições adquiridas, e com a sua cultura estratégica. E continuou, como antes de 1989, a tentar perceber uma só coisa, e a agir em conformidade: onde está o poder em Portugal? Desde 1974, o PCP nunca quis estar contra o poder; e fez tudo, com razoável sucesso, para estar com o poder.

Em 1974, o PCP percebeu que, como então se costumava dizer, o trunfo era espadas. Primeiro, tentou o general Spínola, mas logo identificou, assediou e passou a controlar, com maior proveito, os oficiais que viriam a compor a  chamada “esquerda militar”. Foi assim que, em 1975, um partido com 12% de votos pôde dominar o governo, as autarquias, os organismos corporativos, e quase toda a comunicação social, incluindo a única estação de televisão, e ainda recortar no território do país uma espécie de feudo medieval, no Alentejo. Porquê? Porque esteve com quem, durante mais de um ano, teve o poder em Portugal, a “esquerda militar”. E porque é que, depois do colapso da “esquerda militar”, em 25 de Novembro de 1975, o PCP, sem aumentar os votos, continuou no VI Governo Provisório e conseguiu até que a Assembleia Constituinte, que até então desprezara, consagrasse as nacionalizações e a reforma agrária? Porque o PCP, ao contrário da lenda do Adeus, Lenine, nunca perdeu de vista o que estava a acontecer. A “esquerda militar” abriu-lhe as portas para uma influência com que o PCP nunca sonhara, mas o PCP não teve a mínima hesitação em deixá-la cair e em procurar novos interlocutores quando percebeu que a “esquerda militar” já não mandava.

Desde 1976, o PCP continuou à procura do poder e julgou identificá-lo na presidência da república. Em 1976, o presidente da república era o general Eanes, um dos vencedores da “esquerda militar” e o oficial que, à frente do Estado Maior do Exército, desmobilizou o exército que fez a revolução. O PCP devia odiá-lo. Não o odiou. Pelo contrário. Percebeu que o general Eanes ia confrontar-se com os partidos que o tinham elegido em 1976 (o PS, o PSD e o CDS), e tornou-se, contra todas as expectativas, o mais fiel companheiro de estrada do chefe do 25 de Novembro. Nunca, jamais, Cunhal, se permitiu irreverências contra o presidente, como se permitiram Soares e Sá Carneiro, mesmo quando o presidente nomeou um governo de “recuperação capitalista” como o de Mota Pinto. Para o PCP, Eanes não valia apenas como o presidente da Constituição de 1976, antes da sua revisão em 1982. Valia como um político que, pela sua origem militar, representava um factor bonapartista, capaz de impedir o regime de evoluir no sentido das democracias da Europa ocidental. Era o que importava ao PCP, para manter a sua influência. Por isso, em 1985, o PCP juntou-se aos eanistas na campanha presidencial de Salgado Zenha, e em 1987, aos eanistas e ao PS de Vítor Constâncio, na tentativa de formar uma maioria de esquerda para suceder no governo a Cavaco Silva. Só graças a Mário Soares, é que a “geringonça” não aconteceu em 1987. E Mário Soares não a impediu por causa do PCP, mas precisamente por causa do general Eanes.

O PCP talvez tenha andado perdido depois do fim do eanismo, que por, por acaso, coincidiu mais ou menos com o fim da União Soviética. Mas agora, o PCP não anda perdido. Sabe onde está o poder. Muita gente olha para o PCP como o apoio parlamentar de um governo minoritário do PS. E por isso, muita gente espera do PCP os cálculos e as jogadas típicas desses apoiantes. É uma análise errada, porque ignora a realidade que o PCP contempla muito lucidamente. O PCP não apoia um governo minoritário: o PCP parasita, como sempre fez, o poder em Portugal, e esse poder é agora o das famílias socialistas que há vinte e cinco anos colonizaram o Estado e, a partir do Estado, controlam a sociedade. É esse poder que hoje, em Portugal, dá poder ao PCP, e lhe permite ignorar os confinamentos e fazer comícios, festas e congressos, tal como foi o poder da “esquerda militar”, em 1975, que  lhe permitiu ignorar a legalidade e ocupar as terras alentejanas.

Nas suas memórias, Carlos Brito conta que, nas primeiras reuniões para preparar eleições, Álvaro Cunhal fazia sempre questão de surpreender os seus camaradas com a declaração de que o PCP era “um partido revolucionário”, para quem os resultados eleitorais não tinham assim tanta importância. Era, segundo Carlos Brito, uma rábula que muito divertia Cunhal. No entanto, continha algo de sério. Cunhal era um revolucionário. Só que o seu partido não era, ao contrário da mitologia do revolucionarismo ingénuo, um partido para morrer nas barricadas. Era um partido de estalinistas dos anos 1930, para quem a missão principal era manipular o poder no seu país a favor dos interesses soviéticos, o que nem sempre significava imitar o Lenine de 1917. Esse foi sempre um grande equívoco em relação a Cunhal, e que por vezes também baralhou os seus camaradas, sobretudo em 1975. O importante não era subir aos tanques, mas manter a organização de revolucionários profissionais junto ao poder, tragando todos os sapos que viessem na ementa. O PCP foi sempre um partido dependente de quem tem poder. Por isso, como costuma dizer António Barreto, já não me lembro se citando alguém, “os comunistas fazem tudo o que lhes consentem, e consentem tudo o que lhes fazem”.

Eis porque a interpretação comunista do regime é, hoje, a mais elucidativa de todas. É uma interpretação despida de idealismos jurídicos ou de ilusões políticas: este é um país onde manda uma clique instalada no Estado, muito atreita a desenhar linhas vermelhas para os outros, e sem noção de ter linhas vermelhas para si própria, como se tem visto nos entendimentos de António Costa com Viktor Orban, ou nas negociações dos deputados do PS com o Chega. São os socialistas que ocupam o Estado numa sociedade que é fraca. São os socialistas que vão distribuir o dinheiro dos alemães numa economia que está descapitalizada. A isso, chama-se poder. Não há outro, tal como durante muitos meses, em 1975, não havia outro, a não ser o que andava em chaimites. Quem está com os socialistas, está bem; quem está contra eles, está mal, não faz reuniões durante o confinamento nem vai à televisão. Cunhal teria certamente mandado os seus camaradas colarem-se a António Costa, engolindo os sapos que fossem precisos. Aos verdadeiros revolucionários, importa o poder. E o poder, em Portugal, é das famílias socialistas.

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