sábado, 19 de dezembro de 2020

O médico das compotas: uma comédia de enganos

Se a trupe no poder tem nojo de nós, convinha termos nojo deles. Enquanto não retribuirmos o sentimento, a humilhação não cessará de aumentar. Rir do médico das compotas não nos redime desta vergonha.

Após nove meses diariamente expostos à ministra que ouve o “Hino da Intersindical” no chuveiro e se comove com as maravilhas estatais, do secretário de Estado que começa as frases por “Dizer que…”, da senhora da DGS que não sabe o que diz e diz o que lhe prescrevem, e de um rapazinho que em tempos a DGS lançou para arriscar um “póssamos” e um “fáçamos”, Portugal descobriu enfim Portugal. Não, não é a solução do problema identitário da nação. É apenas um dr. Rui Portugal, que substituiu a dra. Graça para que esta pareça menos absurda. Fisicamente, é memorável, um boneco do Monopólio sem cartola nem dentista. A retórica dele, língua de trapos incluída, é incomparável.

Há dias, o dr. Rui Portugal apresentou as “regras” (juro) para a quadra, “em que temos que nos adaptar aos novos tempos e à situação pandémica em que vivemos. E por isso mesmo é que devemos ter o cuidado de planear com cuidado juntos dos nossos no sentido de melhor sabermos as condições de cada um, das regiões em que habitamos e da especificidades daqueles em que nós mais queremos, daqueles em que nós mais amamos.” A clareza não carece de comentários.

  1. “Em primeiro lugar, considerar que devemos cumprir todas as regras que estejam em vigor e em vigência nesses dias e nesta quadra que irá já se realizar na próxima semana.” É engraçado a primeira regra incluir, logo dispensar, todas as seguintes. Mas quem tira aos senhores da DGS a verborreia, tira-lhes tudo. Literalmente: é que não sobra mesmo nada.
  1. “Uma regra muito básica: se estiver doente, se conhecer ou algum dos seus familiares estiver doente (…), essas pessoas todas deverão cumprir as regras que lhes foram estipuladas.” Tradução: a segunda regra, que não é uma regra, repete a primeira regra, que também não é uma regra, e torna inúteis as oito regras posteriores, que não obstante o dr. Rui Portugal descreve em pormenor porque lhe pagam e ele gosta de fingir que serve para alguma coisa.
  1. Reduzir os contactos. “Em vez de eu ter o meu número normal de contactos de 10 ou 15 pessoas, vou passar a ter um grupo durante esta temporada de 4 ou 5 pessoas.” Não se impede os contágios, mas pode-se orientá-los – e concentrar a respectiva carga viral – para os familiares e amigos que abominamos com maior empenho. Curiosamente, não há problema com o “número normal de contactos” mantidos diariamente nos transportes públicos, as 197 pessoas que nesta quadra encolhem para 196.
  1. Reduzir o tempo de exposição. “Em vez de estarmos juntos 3 ou 4 ou 5 horas, vamos tentar estar juntos mas num tempo mais limitado de 2 ou 3 horas, ou de 1 hora, o tempo que for aprazível em termos dos contactos.” Além disso, há que aproveitar “os jardins”, ou “os magníficos espaços exteriores, com o clima que este país é privilegiado relativamente a muitos outros nessa nossa Europa”. Dado que, de Chelas a Rio Tinto, quase todos os portugueses vivem em domicílios similares a Seteais, a questão dos jardins não será problema. E a questão do clima também não: para a noite de 24, prevê-se no interior do país o privilégio de 5 graus negativos, por contraponto a Estocolmo, com uns temíveis -1 ºC. Lá se vai a estratégia sueca.
  1. Reduzir os contactos com a família alargada: “Devemos reduzir, o máximo que pudermos, os contactos com nossos familiares, mas que não são nossos habitantes.” O universo em causa contempla “irmãos, pais, sobrinhos, tios”, além de “amigos que, eventualmente, possamos ter e deveremos ter”. Suspeito que os senhores da DGS têm tantos amigos quanto noções do seu idioma nativo. E não é à toa que se fartam de prescrever o “confinamento”: essas criaturas são tão estimulantes que só por força da lei os familiares os aturam. Já os familiares que não são “nossos habitantes” fogem deles há décadas, numa demonstração exímia de redução de contactos.
  1. Limitar os contactos ao “agregado familiar com quem se habita”, talvez para o distinguir do agregado familiar que mora longe de nós. Os demais contactos devem acontecer por “meios digitais, computador, por telefonemas, por visitas rápidas no quintal de uns e de outros, no patamar das escadas do prédio, com uma troca simbólica de uma compota que um fez ou de algo que seja aprazível.” Compotas? Têm de ser compotas? E caseiras? E os sabores, ficam ao nosso critério ou a DGS publicou uma lista? Alguém, excepto os conhecidos do dr. Rui Portugal, oferece compotas de prenda natalícia? Se calhar são um progresso evidente face às peúgas, ou algo aprazível, que em criança lhe davam. Agora o dr. Rui Portugal deu-me pena. Antes pena que peúgas.
  1. Manter sempre o “distanciamento físico” (distância, em português). E, atenção, há que ter especiais cautelas com as cozinhas, que “nesta altura serão locais de alto risco, visto que são os grandes espaços de convívio entre pessoas e familiares.” É triste a distinção entre “pessoas” e “familiares”, decerto uma referência velada àquela cunhada cuja conversa vai sempre, sempre, sempre parar aos jogos de cama, e nunca, nunca, nunca envolve traquinices sexuais, mas paleio alusivo a lençóis. Mais triste é o progressivo encolhimento dos cenários: dos jardins passamos aos quintais, dos quintais ao patamar do prédio, e entretanto já estamos todos empilhados na cozinha, fatal antecâmara da marquise.
  1. Fazer circular o ar e desinfectar as superfícies, “mais uma forma de estarmos um pouco melhor protegidos.” Grandes ideias. Abrir as janelas modera a sudorese do primo Arlindo, que tipicamente irá violar inúmeras regras e descarregar as compotas na mesinha do televisor. De brinde, o ar fresco, aliás gelado, presenteará os convivas com uma pneumonia comum, conquista que enxovalha o vírus da Covid. Quanto a espalhar álcool-gel pela aletria e pelo bolo-rei, só pode incrementar o sabor de semelhantes mixórdias.
  1. Lavar as mãos, respeitar a “etiqueta respiratória” e, não esquecer, andar de máscara “em espaços fechados e mesmo em espaços interiores”. Um espaço fechado e exterior é exactamente o quê? Uma ilha? Um estádio? Uma piscina? Um campo de reeducação para insubmissos do confinamento e do internamento profilático? Qualquer explicação remete-nos para “os vídeos da DGS, que tão bem explicam e portanto revisitem estes vídeos nesta quadra em que muitos de nós poderão ter um pouco mais de tempo”. Eis uma boa sugestão para ocupar o ócio dos feriados. Entre aturar parentes mascarados à entrada de casa e passar uma tarde no sofá a “revisitar” vídeos educativos da DGS, a escolha é óbvia.
  1. Evitar a partilha de talheres e copos, incómodo que obriga ou à mariquice de distribuir um conjunto de utensílios por cada conviva, ou a comer com as mãos e beber pela garrafa. Beber, vírgula: “Escusado será dizer que se pretende nestes convívios uma utilização moderada e racional de tudo o que possam ser substâncias que possam trazer maiores afectividades.” Ou seja, a DGS sabe, imagina-se que por experiência própria, que na consoada o pessoal tende a enfrascar-se e terminar aos abraços, aos apalpões ou aos tabefes, actividades que naturalmente estimulam o vírus. A alternativa implica suportar o serão e os familiares a seco, o que, pelo menos no caso dos familiares do dr. Rui Portugal, será um suplício muito superior ao internamento em UCI.
  2. (regra de bónus) “Não é obrigatório que o Natal se comemore, neste país, na ceia de Natal. Pode-se comemorar, num momento de excepção, num almoço de Natal.” É como o Ano Novo, que pode ser comemorado num lanche a 19 de Março. E como os aniversários, cujas velas podem ser sopradas cinco ou seis anos depois. E os enterros, a realizar em data aleatória que os cadáveres não têm pressa.

O discurso do dr. Rui Portugal prosseguiu indefinidamente, a ironia fica por aqui. Peço desculpa, mas não me apetece continuar a legitimar figuras de urso com figuras de estilo. Não falo do médico das compotas. O dr. Rui Portugal, coitadito, é um mero sinal, um sinal que os donos disto enviam para nos esclarecer de que já não há limites para a prepotência. Atiram o homem, suposto representante da ciência (desculpem), para brincar connosco e provar que somos um brinquedo nas mãos dos que de facto mandam. O povo costuma usar a palavra fantochada, embora raramente perceba quem são os fantoches.

Não se trata da Covid nem do SNS nem da saúde pública nem das festanças, não por acaso permitidas aos titulares do regime. Trata-se de pura exibição de autoritarismo. Há muito que as experiências empreendidas por Costa, Marcelo e Companhia Ilimitada excedem o ridículo, inevitável e compreensível em nulidades, e assumem o descaramento. Ridículo é por exemplo o dr. Costa tropeçar na língua e na lógica (“Devemos procurar evitar estar à mesa o tempo estritamente necessário…”). O descaramento é tropeçar no direito e achar-se habilitado a decidir o comportamento dos cidadãos. E o pior é os cidadãos consentirem. Os cidadãos consentem e aplaudem o enxovalho e a punição dos resistentes ao enxovalho. Não deviam: se a trupe no poder tem nojo de nós, convinha termos nojo deles. Enquanto não retribuirmos o sentimento, a humilhação não cessará, e não cessará de aumentar. Rir do médico das compotas não nos redime da situação vergonhosa em que caímos. Na comédia proporcionada por gente grotesca, os espectadores são o alvo da chacota. E essa é a tragédia.

Alberto Gonçalves

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