sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Idosos suecos infectados não foram levados aos hospitais, receberam morfina. O escândalo que está a abalar os lares da Suécia.

Metade das mortes na Suécia aconteceram em lares. Para não sobrecarregar o sistema de saúde, idosos infectados foram tratados só com morfina e mantidos longe. "O meu pai não era bem vindo no hospital."

O Observador publica esta semana uma série de seis reportagens feitas na Suécia, o país que desafiou o confinamento contra a Covid-19. A estratégia, que uns consideram um milagre e outros um desastre; os hospitais, agora com maiores dificuldades; o impacto na economia e os erros que o explicam; o dia a dia de um infectado, com testes em casa e nenhuma punição se violar as regras; o escândalo nos lares de idosos; e Anders Tegnell, o epidemiologista que recebe flores e ameaças de morte. Esta é 5.ª parte.

Thomas Andersson soube que o pai estava doente com Covid-19 a 24 de Março, quando o médico que dá assistência ao lar de idosos de Märsta, nos arredores de Estocolmo, junto ao aeroporto de Arlanda, lhe telefonou a dar a notícia.

Jan, então com 81 anos, teria sido infectado com o novo coronavírus no Hospital de Danderyd, onde recentemente tinha estado internado, para uma operação aos intestinos. Apesar de não o ter examinado, garantiu na altura o médico, Jan estava com muita tosse, mas perfeitamente estável. Se por acaso viesse a piorar, explicou-lhe também, não ia ser enviado para o hospital — seria tratado no próprio lar.

“Foi uma mensagem muito estranha de receber, perguntei-lhe porquê, mas ele limitou-se a dizer que havia muita pressão sobre os hospitais e que precisavam de priorizar e o meu pai estava numa categoria que não era bem-vinda no hospital”, recordou Thomas Andersson oito meses depois ao Observador, através de uma videochamada a partir da sala de estar da sua casa, em Uppsala — está com sintomas e em isolamento profiláctico, à espera do resultado de um teste à Covid-19.

“Foi duro ouvir isto, mas o médico também me informou de que na Suécia há uma organização chamada Assistência Avançada Domiciliar (ASIH é a sigla em sueco), capaz de prestar cuidados de saúde avançados em lares, portanto, se o meu pai piorasse muito, ia chamá-los. Disse-me que tinham equipas com médicos e enfermeiras, oxigénio, e que podiam dar injecções de antibióticos — só não tinham ventiladores. Até fiquei descansado, pensei que talvez fosse o mais adequado para o meu pai.”

Como as visitas estavam suspensas, Thomas Andersson foi acompanhando por telefone a evolução do pai — tal como o médico, que, desde que a pandemia começou, deixou de se deslocar ao lar. “Disse-me que o trabalho que fazia era demasiado importante, e que não podia arriscar ser infectado”, recorda o consultor do ramo da construção.

Apesar da tosse, da recusa em comer, beber e tomar os medicamentos e do cansaço, cada vez mais evidente, diziam-lhe do outro lado do telefone, Jan continuava estável e a fase crítica parecia estar ultrapassada. Depois, a 7 de Abril, o médico ligou-lhe e disse-lhe que o pai estava a morrer, não havia forma de o salvar, se queria despedir-se dele tinha de ir ao lar naquela mesma noite.

“Perguntei-lhe se já tinha chamado a ASIH e ele disse-me que não. Disse-me que não era necessário chamá-los porque também não havia nada que eles pudessem fazer”, recorda Thomas Andersson, que, antes de se pôr a caminho para a viagem de 30 e poucos quilómetros até Märsta, insistiu para que o pai recebesse assistência. “Disse-lhe que o meu pai não bebia água há muito tempo, perguntei-lhe se tinham verificado os níveis de hidratação. Disse-lhe que tinha tido uma sepsis no ombro há dois meses e perguntei se tinham tentado perceber se tinha alguma doença bacteriana. Perguntei-lhe se tinham feito alguma coisa, mas não tinham feito nada.”

Quando chegou ao lar, o consultor encontrou o pai meio inconsciente, incapaz de comunicar ou de dar sequer pela presença do filho. “Nunca me disseram, mas estavam a dar-lhe morfina. Na Suécia chamamos-lhes cuidados paliativos, quando deixam de tentar que as pessoas melhorem e passam a tentar que não sofram. O meu pai foi posto nos cuidados paliativos sem nunca o informarem, nem a ele nem a mim — foi uma decisão que o médico tomou sozinho, e isso é ilegal na Suécia”, acusa Thomas Andersson que, uma vez no lar, voltou a ligar ao médico. “Pedi que o hidratassem, que lhe dessem soro, para ter água no corpo. E ele disse-me que o meu pai estava demasiado fraco e velho: ‘Vai acumular água nos pulmões e vai asfixiar, vai ser muito dramático e ele vai morrer’”, foi a resposta que recebeu.

Hoje Thomas Andersson tem a certeza de que, caso se tivesse conformado, teria sido esse o destino do pai, que tem no historial clínico um AVC e uma doença que lhe provoca rigidez nos músculos e o obriga a deslocar-se de cadeira de rodas. Não o fez: telefonou e enviou e-mails para todas as entidades possíveis e deu o alerta nos meios de comunicação. Na manhã seguinte, depois de ter voltado a visitar o pai, ainda vivo e agora consciente, percebeu que Jan, afinal, não se tinha recusado a tomar os medicamentos, só não conseguia engoli-los — e ficou ainda mais revoltado.

Voltou nesse mesmo dia, com uma equipa de reportagem de uma televisão local: “Aí tudo mudou. De repente já era possível dar-lhe soro e recebeu essa primeira ajuda básica. Depois perguntei ao médico se não era possível injectar-lhe os medicamentos e ele disse que sim. Lentamente começou a melhorar e agora está bem”, revela ao Observador. “O que está a acontecer é uma grande discriminação dos idosos, porque toda a restante sociedade tem acesso aos hospitais e, uma vez lá, têm óptimos tratamentos — nos hospitais salvam-se vidas, não as de toda a gente, mas as pessoas recebem os cuidados adequados. Estas pessoas que vivem nos lares de idosos não têm nada. Pensamos que vivemos num país em que coisas como estas não acontecem, mas pelos vistos acontecem.”

Reguladora da Saúde detectou “deficiências graves” no tratamento dos utentes dos lares em todas as regiões

Cerca de metade das mais de sete mil mortes associadas à pandemia na Suécia aconteceram em lares de idosos. O assunto é particularmente polémico e aquilo que aconteceu a Jan Andersson — que entretanto fez 82 anos, continua a morar no mesmo lar e, garante o filho, ainda não foi visto pelo médico — só por um motivo não pode generalizado ao resto do país — o idoso em causa sobreviveu.

Desde os primeiros meses, têm sido vários os profissionais de saúde e familiares de utentes a denunciar a situação nos lares, cuja gestão está a cargo dos municípios, mas subordinada às regras emanadas por cada uma das 21 administrações locais de saúde, que, por sua vez, respondem à Folkhälsomyndigheten, a Agência Nacional de Saúde Pública da Suécia.

Ao longo de uma série de meses, as denúncias sobre a forma como os hospitais estavam de portas fechadas para os cidadãos idosos e as indicações que os lares tinham para não encaminharem pacientes para as urgências, devendo, em vez disso, prestar-lhes cuidados paliativos nas suas instalações, foram-se acumulando sem consequências visíveis — a não ser para os denunciantes (já lá iremos).

Até que no passado dia 24 de Novembro, a IVO, a agência que supervisiona o sector da saúde no país, revelou as conclusões da investigação feita à acção dos lares de idosos durante a primeira vaga da pandemia: foram detectadas “deficiências graves” no atendimento e tratamento dos pacientes em todas as 21 regiões. As decisões para a implementação de cuidados paliativos nos lares, diz o documento, “não foram tomadas de acordo com os regulamentos actuais para a pandemia de Covid-19”, mas decididas de forma local — ou seja, não terão partido da Folkhälsomyndigheten, pelo menos não de forma oficial.

“Há uma grande indefinição sobre aquilo que aconteceu nos lares”, já tinha dito ao Observador o economista e professor Lars Calmfors, dias antes, acusando as autoridades de falta de transparência. “Aquilo que é claro é que morreram muitas pessoas e que muitas pessoas, que estavam doentes e que já tinham outras condições prévias, não foram levadas para os hospitais; aquilo que já não é tão claro é por que motivos isso aconteceu, é uma espécie de área cinzenta. Há algumas indicações de que isso foi o que aconteceu, que essas recomendações foram feitas, mas não foram feitas de forma explícita, terá ficado implícito… Tem havido muitas críticas sobre o assunto, na Suécia gostamos de ser transparentes, mas neste aspecto não houve transparência, as decisões foram tomadas nos bastidores e sem que as pessoas se tenham apercebido delas.”

Segundo o relatório da IVO, um em cada cinco idosos nunca chegou sequer a ser avaliado individualmente por um médico, sendo que 40% destes (cerca de 8% do total) também não foram examinados por enfermeiros. Mais: a grande maioria destas avaliações, quando aconteceram, foram feitas por telefone. De acordo com o regulador, para além de muitos dos idosos residentes em lares, infectados ou com suspeitas de Covid-19, não terem recebido tratamento diferenciado, também não foram informados sobre o seu estado de saúde nem sobre os cuidados que lhes iriam, ou não, ser prestados.

A situação, disse Sofia Wallström, directora da IVO, aquando da divulgação do relatório e frisando que na Suécia todos têm de ter direito a cuidados de saúde diferenciados e individualizados,  é “inaceitável” — “Não me parece que algum de nós aceitasse ser objecto de uma avaliação de grupo”. No final, as 21 regiões foram intimadas a tomar medidas para colmatar as falhas até ao próximo dia 15 de Janeiro de 2021 — um prazo de quase dois meses, oito meses depois do início da pandemia.

Contactada pelo Observador, a presidente da Câmara de Estocolmo, região onde mais pessoas morreram, recusou falar sobre o assunto e passou a bola para a Agência Nacional de Saúde Pública. Numa curta entrevista através do Zoom, justamente no dia em que as conclusões da IVO foram tornadas públicas, o epidemiologista principal da Suécia, Anders Tegnell, garantiu que as mudanças nos lares de idosos já começaram a ser feitas, mas também assumiu que o mais certo é que o resultado final nesta segunda vaga não seja muito diferente. “Estamos a assistir a uma subida do número de casos nos lares outra vez, esperamos que estas novas medidas consigam refrear melhor a mortalidade do que na Primavera. Mas, por outro lado, este é um padrão que também vemos em muitos outros países — em Espanha, no Reino Unido —, as pessoas que vivem nos lares de idosos, infelizmente, são muito propensas a ser atingidas com muita força por esta pandemia e parece ser muito difícil mantê-las completamente a salvo.”

“Se não temos oxigénio nos lares não podemos deixar lá as pessoas, porque elas vão sufocar até à morte”

A Suécia tem um sistema público de acompanhamento domiciliário a idosos que permite que os cidadãos se mantenham nas próprias casas até uma idade mais avançada, recebendo um máximo de seis visitas diárias de pessoal de apoio, para ajudar com limpezas, refeições, toma de medicação e apoio à higiene pessoal — e muitos dos idosos que beneficiam destes serviços também foram afectados pela Covid-19, engrossando o número de óbitos da pandemia, mas não dos lares: cerca de 90% dos mortos tinham mais de 70 anos.

Nas suas casas, como nos lares, os idosos suecos não têm a supervisão permanente de pessoal médico, sempre que é necessário são os médicos de medicina geral e familiar quem assegura esse acompanhamento, explica ao Observador Jon Tallinger, que, quando a pandemia começou, trabalhava numa clínica em Tranås, uma cidade no sul do país, entre Estocolmo e Gotemburgo.

“Assim que descobri como é que era suposto tratarmos dos idosos, pedi uma licença sem vencimento e empenhei todos os meus esforços em impedir a tragédia que estava prestes a acontecer”, conta o médico, em vídeo-chamada a partir de Frederikshavn, a pequena cidade dinamarquesa para onde se mudou em agosto com a mulher, em consequência, diz, da sua exposição pública como denunciante.

“Logo no início de abril, recebemos orientações do governo regional e do Conselho de Saúde: não era suposto enviarmos os idosos para os hospitais se eles tivessem Covid-19, era suposto que tratássemos deles nos seus lares. Mas nos lares não há instalações com condições e não há oxigénio, por exemplo, que é vital nesta pandemia. Se não temos oxigénio nos lares, não podemos deixar lá as pessoas, porque elas vão sufocar até à morte”, diz Jon Tallinger, que abriu um canal de YouTube para denunciar a situação — “Dr. Whistleblower” foi o nome que escolheu para si próprio.

“Havia orientações em toda a Suécia para darmos morfina se as pessoas tivessem falta de ar. E também havia orientações para que fizéssemos planos para providenciar cuidados paliativos aos idosos, em vez de lhes darmos cuidados curativos, se eles fossem frágeis e velhos. Em alguns lares, algumas pessoas foram avisadas previamente de que se os seus familiares fossem infetados e tivessem Covid-19 iam receber cuidados paliativos”, revela o médico.

Se concorda que as pessoas acima de determinada idade são demasiado frágeis para poderem ser admitidas em unidades de cuidados intensivos e entubadas — “ é um tratamento severo” —, Jon Tallinger recorda que nos hospitais há outros recursos e que nem só de ventiladores se fazem os tratamentos para a Covid-19. “As pessoas podiam ir simplesmente ao hospital receber oxigénio. Muita gente concordou com que os familiares ficassem nos lares sem ter sequer acesso a esta informação.”

O que se passou na Suécia é tanto mais grave, acrescenta o médico, que chegou a receber ameaças de morte e diz que foi vítima de uma campanha pública de descredibilização — “Chamaram-me adepto de teorias da conspiração, tentaram fazer-me passar por maluquinho e houve quem me acusasse de ser um extremista de direita a tentar desestabilizar a nação. Não sou. Não tenho opiniões extremadas sobre nada e não me parece que seja extremismo querer bons cuidados de saúde para os idosos” — porque os hospitais, que se tentaram poupar com esta linha de atuação, nem sequer chegaram a estar sobrecarregados.

“Numa situação de guerra, se tivéssemos de escolher entre alguém jovem e alguém muito frágil, a maior parte de nós ia escolher salvar primeiro o jovem. Mas os hospitais não estavam cheios quando fizeram esta priorização, portanto não havia necessidade de o fazer, e não houve comunicação entre os médicos e os hospitais para perceber”, diz. “A coisa trágica em Estocolmo, por exemplo, é que havia um hospital de campanha com 600 camas onde não foi tratado um único paciente com oxigénio durante toda a pandemia, porque ainda havia espaço nos hospitais. A situação nunca ficou fora de controlo, podia ter sido usado. Isto é um escândalo colossal em toda a linha. Se sabes que não vais conseguir tratar de todos os doentes, não deves deixar o vírus soltar-se entre a população.”

“Chamei médicos várias vezes. Nunca vieram”

A enfermeira Latifa Löfvenberg, membro do Partido dos Democratas Suecos, nacionalista, conservador, anti-imigração e contra a União Europeia, diz que perdeu o emprego depois de denunciar o que estava a acontecer nos vários lares a que prestava assistência, em Gävle, cidade 170 quilómetros a norte de Estocolmo. Na altura, garante, os idosos, que na maior parte das vezes não eram testados para a Covid-19, não só não eram enviados para os hospitais como começavam a ser tratados com morfina aos primeiros sinais da doença.

“Não tratávamos os pacientes para eles ficarem melhor, tratávamo-los para morrerem, para não sofrerem. Não consigo contar todos os que vi morrer e não sei quantos tinham ou não Covid, mas muita gente morreu ali. Só num fim de semana morreram quatro pessoas, e no seguinte outras três. Toda a primavera foi assim, muitas pessoas perderam a vida”, contou ao Observador em Estocolmo, horas antes de começar o turno da noite no Hospital Universitário Karolinska, onde agora está a trabalhar no serviço de doenças infecciosas. “Não havia oxigénio nos lares em Gävle, essa foi outra luta que travei. Aqui, quando tratamos os doentes, damos-lhes oxigénio, mesmo que saibamos que vão morrer.”

Os relatos que faz são sustentados pelas conclusões do relatório do regulador da Saúde sueco: muitos dos idosos residentes em lares nunca foram consultados por médicos nem receberam os cuidados de saúde adequados. “Sempre me chamaram muito tarde. Na maior parte das vezes, quando cheguei, os idosos já estavam a receber injeções de morfina e de Midazolam, um relaxante muscular, é isso que costumamos usar quando as pessoas estão a morrer. Mas aqui nem sequer confirmávamos que não era uma pneumonia, podia ser uma pneumonia bacteriana, curável com antibióticos”, argumenta a enfermeira, que acrescenta ainda que, no início da pandemia, não havia equipamentos de proteção disponíveis para os trabalhadores dos lares da sua região, nem regras a recomendar a sua utilização. “Não tínhamos máscaras, eu e o meu filho fizemos umas viseiras, para pelo menos termos qualquer coisa para usar.”

“Chamei médicos várias vezes. Nunca vieram. Tinha o meu próprio aparelho para medir a saturação e perceber se os pacientes eram capazes de respirar, liguei várias vezes aos médicos, a dar estes parâmetros todos, mas eles só me diziam que devia dar mais morfina, porque quando se começa a dar morfina os pacientes ficam apenas ali, não comem, não bebem, ficam só à espera da morte”, descreve Latifa Löfvenberg.

Médica no serviço de urgência do Hospital Universitário de Linköping, a quinta maior cidade da Suécia, a portuguesa Lisa Caiado Thorfinn não pode pronunciar-se sobre esta roda da engrenagem, mas atesta: ao serviço onde trabalha, estes pacientes de facto nunca chegaram. “A maior parte dos doentes com suspeitas de Covid que vivem em lares e que já tinham uma idade avançada e comorbilidades associadas não foram enviados para o hospital, ficaram nos lares, portanto não tivemos aquela sobrecarga”, tinha dito dias antes ao Observador.

“Nos outros países, pelo que percebi das notícias que nos chegam, um idoso que está num lar, tem suspeita de Covid e não está a sentir-se bem vai para o hospital. Aqui eles tentaram aguentar até à última e morreu muita gente nos lares, houve muitos lares que ficaram a menos de metade, o que se tem estado aqui a fazer é quase eutanásia.”

Tinha 96 anos e demência, mesmo assim “autorizou” tratamento paliativo com morfina

Como aconteceu com o pai de Thomas Andersson, também Ulla, mãe das gémeas Susanne Matteuzzi e Hélene Ohrn, de 61 anos, começou a ser tratada com morfina sem que a família fosse consultada. Tinha 96 anos, morreu no dia 16 de abril, dois dias depois de as filhas terem recebido um telefonema do lar a avisar que estava com dificuldades respiratórias.

Apesar de nunca ter sido diagnosticada com Covid-19, os sintomas relatados, associados aos casos da doença que sabiam existir no lar de Årsta Havsbad — uma pequena cidade balnear a 30 quilómetros de Estocolmo onde moram e toda a gente se conhece —, fazem com que, para as irmãs, não se coloque outra opção. “Acho que teve Covid, porque é que havia de ter dificuldade a respirar se nunca tinha tido antes? E porque é que dizem que morreu de demência se ninguém morre de demência?”, questiona Susanne Matteuzzi, citando o relatório da autópsia, que só foi entregue à família dois meses após a morte.

“Ligaram-me eram 16h30 do dia 14 de abril e disseram-me que a minha mãe estava com dificuldades em respirar, e eu disse-lhes: ‘Levem-na para o hospital, ajudem-na, chamem uma ambulância!’. Mas eles disseram-me que iam tratar bem dela, disseram-me que lhe tinham dado duas injeções, uma de morfina, outra de um medicamento para a ansiedade. E eu pensei que era o que se fazia com as pessoas mais velhas. No dia seguinte disseram-me que ela estava melhor. No outro ligaram-me e disseram-me que a minha mãe tinha morrido”, recorda Susanne Matteuzzi, no jardim da casa onde vive, na orla de uma zona de floresta, a 450 metros do Báltico.

“Não somos profissionais de saúde, não sabíamos o que significa dar morfina a alguém que está com dificuldades em respirar, não sabíamos que isso vai fazer com que a pessoa piore e morra. Ninguém nos disse, o médico não nos disse nada. Devíamos ser nós a decidir sobre se a queríamos levar ao hospital”, reforça a irmã, Hélene Ohrn.

Só depois de alguma insistência, explicam, é que conseguiram ter acesso ao processo da mãe. Se a IVO explicou nas suas conclusões que a investigação aos lares foi particularmente dificultada pelos registos “deficientes” sobre os pacientes suspeitos de terem Covid-19 ou mesmo com a doença confirmada, no caso de Ulla Matteuzzi, que sofria de demência em estado avançado, isso não aconteceu.

“Tenho o diário clínico da minha mãe. Diz que falaram com ela sobre que tratamento deviam dar-lhe”, começa a explicar Susanne Matteuzzi, continua logo a seguir a irmã. “Ela concordou com o tratamento com morfina. Tinha 96 anos e às vezes, quando a visitávamos, não nos reconhecia. Não podiam ter falado com ela, ela não pode ter confirmado nada.”

“Quando alguém diz que morreram idosos na Suécia por falta de cuidados é a pior das mentiras”

Apesar da onda de consternação que tem varrido o país sobre a forma como a pandemia foi gerida e das críticas cada vez mais audíveis sobre o assunto, também há quem garanta que a situação não foi igual em toda a Suécia. O português Bruno Simplício, que entre março e agosto trabalhou como auxiliar num lar no município de Gagnef, na região de Dalarna, onde mora com a mulher e os dois filhos bebés, diz que desde que foi detetado o primeiro caso entre os utentes, no fim de março, foram imediatamente implementadas uma série de medidas de segurança e contenção do vírus.

“Começámos logo a usar máscara, viseira, bata e luvas, que tínhamos de descartar e desinfetar quando mudávamos de quarto. A roupa era tirada e colocada dentro de sacos de milho, que se desfaziam na lavagem, e os copos, talheres e plásticos eram todos descartáveis também”, enumera. “Quando detetávamos que alguém estava com sintomas, nem que fosse uma tossezinha de nada, era automaticamente colocado de quarentena — aqui os quartos são todos individuais, o que facilita. As visitas dos familiares foram suspensas e todos os idosos que vinham do apoio domiciliário para o lar ficavam 48 horas isolados no quarto, até chegar o resultado do teste Covid.”

Ainda assim, apesar dos cuidados, no lar onde Bruno Simplício trabalhou temporariamente, e onde quatro dezenas de idosos tinham residência, dez morreram, presumivelmente infetados com Covid-19. Quase todos os funcionários do lar, incluindo o próprio português, também adoeceram, mas recuperaram entretanto.

Para além das enfermeiras residentes, garante o português, natural de Sesimbra, os idosos puderam sempre contar com a assistência do médico do lar, que era chamado apenas nas “situações mais graves”, mas não tinham à disposição nem ventiladores nem garrafas de oxigénio. O tratamento administrado aos idosos doentes, explica, era igual ao recomendado aos não idosos.

“Tomar ben-u-ron e deixar o corpo trabalhar, foi o que me disseram a mim. Quando a situação piorava, a maior parte das vezes a decisão sobre se devíamos ou não fazer alguma coisa era tomada pelos familiares, que se resignavam ao que se estava a passar”, diz o português, há oito anos a viver na Suécia.

“Essa é a parte injusta, se calhar não iam dar um ventilador a uma pessoa idosa, que já tinha vivido a vida, para o tirar a um jovem, mas quando alguém diz que morreram idosos na Suécia por falta de cuidados é a pior das mentiras”, assegurou o português, um dia antes de ser conhecido o relatório do IVO. “Os meus colegas que trabalham nisto já há 10 ou 15 anos dizem que sempre morreram, mais coisa, menos coisa, estes idosos por ano, só não era da Covid, era da influenza.”

Por muito que em 2020 a gripe tenha praticamente desaparecido do território sueco, não será exatamente assim. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística da Suécia, em 2019 morreram 88.766 pessoas no país — este ano, só até ao final de outubro, já foram registados 79.627 óbitos, 10.552 deles apenas durante o mês de abril, sendo que só em janeiro e outubro é que houve menos mortes do que no ano anterior, portanto tudo leva a crer que esse número seja ultrapassado.

Logo no início da pandemia, a equipa do geneticista Ville Pimenoff, no Instituto Karolinska, recuou dez anos nas estatísticas para perceber se, não na Suécia toda mas apenas em Estocolmo, a Covid-19 estava a provocar um excesso de mortalidade. “Os números mostraram muito rapidamente que havia um surto local, que não era visível através dos números da Covid, porque os diagnósticos vêm com algum atraso. E também observámos que uma grande fração das mortes por Covid não estava a acontecer nos hospitais. Percebemos, através da informação que recebemos por parte das morgues, que muitos casos estavam a acontecer em lares de idosos — facto que hoje é bem conhecido sobre a situação em Estocolmo”, explicou o investigador finlandês ao Observador.

No lar de Axelsberg morreram 10 pessoas. Foram tratadas com o “pacote”

Passa pouco das 15h de uma sexta-feira de fim de novembro na Casa de Repouso de Axelsberg, um lar de idosos público na periferia da capital sueca. Lá fora está a cair a noite, no interior, nas zonas comuns e nos corredores, os funcionários vão andando para cá e para lá, sem máscaras nem viseiras — só são obrigatórias no contacto direto com os utentes, que, por causa da pandemia, só saem dos apartamentos (individuais, com casa de banho, cozinha equipada, zona de estar e varanda) à hora das refeições e para as atividades de grupo.

“Temos dança, música, comida e roupas tradicionais e atividades históricas. E quando alguém morre fazemos sempre uma homenagem, juntamos toda a gente em volta de uma fotografia da pessoa — agora, por causa da Covid, com distância — e todos dizem alguma coisa. Somos como uma família”, conta a enfermeira Ana Adamah, moçambicana a viver na Suécia há 32 anos.

Durante a primavera, na primeira vaga da pandemia, dez dos 55 utentes morreram, ali mesmo, no lar. O relato, feito por Maria Borowski, Novka Beginisic e Ana Adamah, três das cinco enfermeiras residentes, com a moçambicana a servir de intérprete, consubstancia uma vez mais o relatório do regulador sueco da Saúde.

“No princípio ninguém tinha informação e não tínhamos nenhuma regra que dizia que tínhamos de levar [os idosos] para o hospital. As pessoas que morreram são pessoas que já tinham outras doenças, eram pessoas idosas, e não sabemos se morreram da pandemia ou da idade. Essas pessoas não foram testadas, naquela altura não havia testes, só a partir de maio é que houve. Podemos dizer que morreram com Covid, mas não sabemos se morreram de Covid”, começam por descrever.

“Quando começou, tínhamos as regras que já existiam há muito tempo: a pessoa está doente, se é da idade fazemos uma reunião com o médico e os familiares onde discutimos se a pessoa quer ficar aqui ou se quer ser enviada para o hospital — porque o que se faz no hospital nós também fazemos aqui — e chegamos à conclusão que o melhor para estas pessoas velhas é morrer em casa, aqui. E isso fica tudo num documento, para quando chegar a vez não precisarmos de levar a pessoa desnecessariamente para o hospital”, continuam a explicar as enfermeiras, a dois tempos, para permitir a discussão e a conversão para o português.

Apesar de frequentemente parecer que algo se perde na tradução, Ana Adamah, que chegou à Suécia vinda de Maputo em 1988, tinha 27 anos, sorri e garante que não. Recorda os dias de março em que se improvisaram máscaras com guardanapos, admite que não há oxigénio para socorrer os doentes e explica logo a seguir que pode facilmente ser encomendado, se for necessário — não que tenha alguma vez sido, ao longo dos meses da pandemia. “Essas pessoas não precisam todas de oxigénio, as pessoas já tomaram a sua decisão, nós não precisamos de fazer muita coisa, é só acompanhar a pessoa todos os dias até ao final”, explica, garantindo que todos os doentes que morreram, morreram com febre, cansaço e falta de apetite — “Dificuldades de respiração não houve.”

Depois, fala no “pacote” de medicamentos que habitualmente se utiliza nos lares da Suécia, para tratar os utentes “na última fase da vida” e que também ali foi administrado durante a primavera. “Quando a pessoa está doente e nós vemos que está nos últimos dias, com aqueles sintomas todos que já conhecemos; quando já não aguenta engolir os comprimidos, nem a comida, começamos a utilizar esse pacote, que tem mais ou menos cinco medicamentos, incluindo morfina. Tudo para que essa pessoa tenha o final da sua vida em condições.”

Apesar de o médico adjudicado ao lar nunca ter deixado de lá ir, todas as terças-feiras, como era habitual, nunca chegou a dar ordem para que algum doente fosse encaminhado para o hospital — “E só o médico é que dá ordem para ir ao hospital”, explicam as enfermeiras.

“No princípio vimos casos em que a pessoa não teve possibilidade de ir para o hospital, porque as portas estavam fechadas, não recebiam todos. Nessa altura havia muitas pessoas, já não havia lugares para tomar conta de todas as pessoas. E havia prioridades também.”

No fim, queixam-se de falta de apoio por parte do médico do lar e das autoridades regionais, que nunca emitiram recomendações nem apareceram para validar o que estava a ser feito, mas garantem que nos últimos meses houve uma aprendizagem, pelo que o desfecho da segunda vaga tem tudo para ser diferente. “Hoje já temos outra experiência, todas as pessoas que dão positivo ficam em quarentena durante 14 dias, só podem sair quando deixarem de ter sintomas. Recentemente tivemos duas pessoas infetadas, a primeira fez quarentena e recuperou, a segunda tinha anticorpos, mas foi contaminada mesmo assim — acaba hoje a quarentena.”

https://observador.pt/especiais/idosos-suecos-infetados-nao-foram-levados-aos-hospitais-receberam-morfina-o-escandalo-que-esta-a-abalar-os-lares-da-suecia/

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