quinta-feira, 30 de março de 2023

Como António Costa mudou a lei para montar uma central de propaganda

Com uma portaria – á socapa - o Governo autorizou o CEGER a nomear 23 “consultores” e nove “técnicos de comunicação”. O que permitiu reforçar, com discrição e sem anúncios, a estrutura liderada por João Cepeda. O objectivo é “trabalhar” a imagem do governo e principalmente do PS, sendo pagos com o dinheiro dos contribuintes.

A 17 de Novembro de 2022 foi publicada em Diário da República, com dois meses e meio de atraso, a nomeação de Luís Leal Miranda como “técnico de comunicação do Centro de Gestão da Rede Informática do Governo (CEGER), com efeitos a partir de 1 de Setembro anterior. Ora, o CEGER é o “organismo responsável pela rede informática que serve o Governo e o apoia nas tecnologias de informação e de comunicações e nos sistemas de informação”, de acordo com a definição no próprio site. Assim, a contratação de Leal Miranda pode parecer inusitada, já que não lhe são conhecidas competências na área da informática ou de gestão de redes. Foi jornalista, copywriter, de novo jornalista freelance e escrevia sobretudo sobre comida, com algumas incursões em áreas culturais (música e cinema por exemplo) e criou uma pequena editora, a Livraria Plutão. Num texto de 2020 no Observador (a mais recente colaboração que foi possível identificar como jornalista), escrevia “Do bolo de arroz ao pastel de nata: cinco histórias açucaradas da nossa pastelaria” e dissertava sobre o pão de ló, o bolo de arroz, o guardanapo, o pastel de nata e o travesseiro, essa “almofada de doce de ovo e amêndoa [que] tem uma das massas folhadas mais problemáticas da nossa pastelaria”. A contratação levanta duas perguntas: porque se lembrou o CEGER de ir contratar Luís Leal Miranda? E pode?

A ligação Time Out
A primeira talvez possa ser explicada porque Miranda foi jornalista da revista Time Out, onde também se dedicava sobretudo à área gastronómica, e em 2019 chegou a exercer o cargo de director, durante cinco meses. Ora, a Time Out é o projecto empresarial fundado por João Cepeda, director de comunicação do Governo desde Junho de 2022. Quem conhece o percurso dos dois descreve mesmo Luís Leal, a certa altura, como uma espécie de “braço-direito” de Cepeda na revista, embora este tivesse entretanto transitado para os mercados.
E sim, pode ser nomeado. Isto, porque em 31 de Maio do ano passado, ou seja, exactamente sete dias antes de Cepeda tomar posse como director de comunicação do Governo, o executivo operou uma verdadeira revolução na orgânica do CEGER. Através de uma portaria (uma decisão do Governo que não passa pela Assembleia da República), o quadro de pessoal do CEGER passou a comportar a possibilidade de contratar mais 23 consultores externos e nove técnicos de comunicação em comissão de serviço. Um quadro de pessoal que antes consistia de 35 elementos, passa a contabilizar, hoje, um total de 58. A portaria é assinada pelo secretário de Estado da Modernização Administrativa, Mário Campolargo, e pela secretária de Estado do Orçamento, Sofia Batalha. O texto da alteração justifica assim a expansão: “É necessário assegurar que o CEGER tem ao seu dispor os meios necessários para assegurar as suas atribuições, designadamente os meios humanos adequados para assegurar a segurança da RING [Rede Informática do Governo], capacitando-o para uma melhor resposta às exigências tecnológicas actuais, ao desenvolvimento de soluções relacionadas com a desmaterialização de processos, com a mobilidade de acessos, ou com a manutenção de infra-estruturas de rede, sem descurar os aspectos relacionados com a segurança.” Não há, contudo, no texto da portaria, nenhuma referência a “técnicos de comunicação” para desempenhar funções, por exemplo, nos conteúdos do portal do Governo na Internet – e a designação apenas surge no anexo com o mapa do quadro de pessoal. Não fica sequer claro, por exemplo, se alguns “consultores” dos novos 23, e não apenas os “técnicos de comunicação”, poderão também trabalhar em funções mais técnicas no grupo que agora centraliza a comunicação do Governo, sob a direcção de Cepeda. E mesmo a referência à gestão do portal do Governo apenas surge na “carta de missão” no site do CEGER, mas sem ligação estipulada a nenhum director de comunicação. Assim, não surpreende que a formação de uma equipa que centraliza a comuni- cação do Governo tenha passado, no mínimo, despercebida.
O Governo nunca assumiu no seu discurso que a contratação de um director de comunicação correspondesse também à criação de uma unidade de gestão da comunicação do Governo, com contratação de uma pool de novos colaboradores.
Perceção e realidade
Desde Junho de 2022, sucederam-se notícias sobre a contratação de Cepeda e o seu percurso. O novo director de comunicação fez algumas declarações, pontuais e breves, a jornais, explicando o seu papel no executivo. Foi também claro que duas contratações (e apenas duas) para o gabinete do primeiro-ministro, e sem qualquer relação com o CEGER, seguiam o objectivo de reforçar a comunicação e criar uma miniequipa à volta de Cepeda. Eram eles João Pedro Oliveira, também Ex-jornalista da Time Out, que foi nomeado em Junho de 2022; e João Morgado Fernandes, Ex-jornalista do Diário de Notícias, e Ex-assessor do então ministro Mário Lino e de José Sócrates, e que deixou agora a comunicação do ISCTE, onde a Ex-ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues é reitora. Mas este grupo, designado como “grupo dos joões”, era a única face conhecida de uma estrutura maior – e essa manteve-se desconhecida.
No início de Março, o jornal Expresso publicou um artigo em que indicava um número de 15 pessoas a trabalhar na unidade de comunicação do Governo. O número era já a soma de algumas pessoas do gabinete do próprio primeiro-ministro e outras vindas do CEGER. A SÁBADO questionou o gabinete do primeiro-ministro sobre quem eram afinal essas pessoas, que tipo de vínculo público tinham, como tinham sido contratadas e quanto ganhavam. A resposta foi dada de forma informal por uma fonte governamental, mas sem concretizar nenhum desses detalhes – e indicando mesmo que “a estrutura [do CEGER] já existia”, existia há muito e que as 15 pessoas indicadas “não são novas, já trabalhavam para o portal do Governo”.
Mas na verdade, várias, como Leal Miranda, são mesmo novas, posteriores quer à mudança da lei orgânica, quer à contratação do próprio João Cepeda. Outros exemplos: a 13 de Janeiro, foi contratada como “técnica de comunicação do CEGER” Margarida de Freitas Filipe. A jovem licenciada em Geografia e Planeamento Regional pela Universidade Nova (em Julho de 2022) apenas tem como experiência profissional um estágio de meses na agência de comunicação JLM&A (João Líbano Monteiro&Associados). E inscreveu-se em Setembro num mestrado na Universidade Católica em Comunicação, Estratégia e Liderança. Também Sofia Pedro foi nomeada técnica de comunicação, no mesmo dia, com efeitos a partir de 1 de Janeiro, mas sem que seja possível encontrar sequer qualquer referência curricular que esteja publicamente disponível. O que é possível, na medida em que as contratações do CEGER, ao contrário do que acontece com as dos gabinetes dos membros do Governo, não incluem qualquer dado curricular dos contratados. Entre alguns percursos mais técnicos, surgem Hélder Tiago Matias Rogério, nomeado como técnico de apoio, em comissão de serviço, por dois anos, em Agosto último; João Paulo Capinha, consultor, nomeado em Outubro (era técnico especialista em informática no Politécnico de Setúbal); e William de Barros Costa, técnico de apoio, desde Agosto de 2022; Nuno Rosa Vaz, que desempenhava funções na câmara de Setúbal, foi nomeado consultor.
Outras rearrumações que foi possível detectar parecem prender-se com as mudanças na orgânica. José Henrique Rodrigues Felício era consultor coordenador, saiu em Agosto, para ser readmitido em Novembro como consultor. Norberto Albino, exonerado de consultor em Setembro, passou a consultor-coordenador.
Numa segunda insistência para o gabinete do primeiro-ministro, Secretaria-geral da Presidência do Conselho de Ministros e CEGER, apenas este último respondeu à SÁBADO: “Todas as contratações do CEGER são publicadas em Diário da República, com as respectivas informações sobre nomes, funções e estatuto remuneratório, e são feitas de acordo com as necessidades dos vários serviços. O CEGER fornece assistência a todos os serviços do Executivo, incluindo a Comunicação” e “destaca elementos para trabalhar directamente com os gabinetes, em projectos específicos e temporários”. Mas não clarifica vários pontos: quantas pessoas do CEGER estão em concreto na central de comunicação; se há mais contratações cuja publicação não tenha ainda ocorrido em Diário da República; e se o Governo tenciona continuar a contratar mais colaboradores para esta estrutura.
E, com esta fórmula encontrada pelo governo para montar a sua central de comunicação, também não é possível contabilizar o seu custo total para o Estado.
O que fazem?
De acordo com a informação prestada à SÁBADO por fonte governamental, a principal tarefa desse grupo é fornecer conteúdos a todo o portal do Governo, que abrange 18 ministérios. Mais dois elementos do gabinete do primeiro-ministro colaboram (Pedro Rebelo e Raquel Martins) e da parte do CEGER vem tudo o resto: um fotógrafo, dois videógrafos e vários redactores para os textos do portal.
Mas é também a esta unidade que cabe a organização de vários eventos recentes com apresentação de medidas do Executivo, como o pacote da Habitação ou a isenção de IVA em produtos básicos para apoio às famílias. Cepeda, por sua vez, reporta ao secretário de Estado Adjunto e articula-se também directamente com o primeiro-ministro – tem aliás gabinete na residência oficial. O resto da equipa, seja ela vinda do CEGER, seja do gabinete do primeiro-ministro, está a funcionar de forma provisória num espaço no segundo andar do nº 1 da Rua de São Bento, frente à residência oficial. Quando o Governo (ou a maior parte dele) se mudar para o edifício da Caixa Geral de Depósitos, actualmente em obras de adaptação, a equipa deverá ter um espaço próprio para funcionar nesse novo local.
A criação de uma central de comunicação dentro do Governo foi sempre um tema polémico e levou mesmo a um veto presidencial a primeira vez que foi tentada.
Belém desconhece a portaria
Em 2004, o Governo liderado por Pedro Santana Lopes quis formalizar a estrutura, criou os lugares e atribuiu-lhe um orçamento de 2 milhões de euros ao ano, mas viu o projecto travado pelo Presidente da República Jorge Sampaio. Na altura, o veto foi assim justificado pelo Presidente, em declarações ao jornal Expresso: “O esforço da participação dos cidadãos na vida política deve ser obtido através do incentivo do pluralismo e não da criação de um novo serviço administrativo de publicitação da actividade do Governo.” Sampaio deixou também este recado: “Não há défice, antes excesso, de presença estatal e governamental nos meios de comunicação.” A oposição, ou seja, PCP, BE e PS, concordou. Pedro Silva Pereira, então porta-voz dos socialistas, reagiu: “O PS vê este veto como um veto em legítima defesa da democracia e do pluralismo da comunicação social.” Na altura, o contexto era mais tenso relativamente à alegada interferência do Governo nos media. O ministro dos Assuntos Parlamentares, Rui Gomes da Silva, criticara a inércia da Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) face aos comentários de Marcelo Rebelo de Sousa na TVI, que classificou “de ódio ao primeiro-ministro e ao Governo” e sem contraditório. O então comentador deixaria pouco depois aquela estação de televisão, no seguimento de uma conversa com o presidente do conselho de administração, Miguel Pais do Amaral. E a AACS viria a considerar que tinham sido as declarações do ministro a constituir “uma pressão ilegítima”.
Agora, face à criação efectiva de uma central de comunicação, a SÁBADO apurou que Belém ficou à margem dos detalhes do processo, até porque o mecanismo escolhido, o da portaria, não tem de passar pela Presidência da República.
€98 mil para consultor
O consultor em comunicação Luís Paixão Martins recebeu 98 mil euros pelo apoio nas legislativas de 2022 do PS, segundo os dados entregues na Entidade das Contas para os Financiamentos Políticos.
-O valor foi indexado a resultados. De acordo com a proposta apresentada por Paixão Martins, receberia 10 mil euros se o PS ficasse com 108 ou menos mandatos, 50 mil entre os 109 a 115, e 100 mil para 116 mandatos ou mais (teve 120).
-Há novo contracto de Paixão Martins com o PS, mas as duas partes não revelaram o valor.


€2.449 Mínimo
Nos dados publicados pela Direcção-Geral da Administração Pública, o salário dos novos consultores do CEGER vai dos €2.449 aos €2.728 (ilíquidos).


€3.274 Máximo
Os despachos de nomeação têm somado 20% de “suplemento de disponibilidade” aos €2.728. O valor máximo passa a €3.274.

https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/como-costa-mudou-a-lei-para-montar-uma-central-de-propaganda

1 comentário:

Manuelgutelebeneiche disse...

A confusão entre Estado e Governo continua. E com dolo!, por parte do PS. Independentemente de ser decorrente dos sistemas e regimes que o Homem considera ser o melhor dos piores regimes mas que proliferam por esse mundo fora - ainda que, saliente-se, com um sentido de estado bem mais profissional e são do que todo o aparelho do PS -, o que é facto é que estamos, creio, irremediavelmente perdidos. Por estes e pelos outros que, confesso, não sei quem sejam...