Entrevista em 1983: Marcelo queria "apagar com uma borracha" a sua imagem irreverente, irresponsável, irrequieta
Maria João Avillez
Texto
O político sem “amigos políticos" - mas com a TV. O homem que leva a Fé a sério. Maria João Avillez conta a sua história com o candidato, após a sua eleição como Presidente.
17 Jan. 2016
texto publicado originalmente a 17 de Janeiro
Uma entrevista em 1983
1. Falava-me em “missão” e “sacrifício”, tinha uma pose de Estado, media as palavras. Só o olhar aceso era o mesmo de sempre. Secretário de Estado Adjunto da Presidência do Conselho de Ministros no VIII Governo – o segundo Executivo de Francisco Balsemão –, Marcelo Rebelo de Sousa necessitava da entrevista que esta foto ilustra como de um instrumento de salvação: era preciso apagar com uma borracha (e naquela Primavera de 83 a borracha era eu) o Marcelo irreverente, irresponsável, irrequieto e inquieto que durante oito anos, com ágil voracidade, escrevera no Expresso. Contaminando o país com doses permanentes de intriga, exclusivamente por si idealizada e produzida.
Mas agora tratava-se de ser convincente no papel de governante da pátria. Disfarçando que a AD já morrera, que a orquestra desafinava sob a batuta do seu aflito maestro; fingindo ignorar o meticuloso (e vergonhoso) trabalho de formiga de Freitas do Amaral – número dois da coligação – para a enterrar mais depressa; disfarçando que o mesmo Freitas galopava nas sondagens deixando o primeiro-ministro Pinto Balsemão seguir atrás, num trote infeliz; fazendo crer que o Governo estava de boa saúde e se recomendava. E por aí fora. Nada disto era verdade, nem aquela pose -revestida por uma convicção postiça – era verosímil.
Não acreditei em nada.
Mas acredito que talvez nunca tenha conhecido alguém onde o talento destoasse tanto de, digamos assim, algumas debilidades de personalidade. Talento, sim: no fulgor da inteligência, no brilho intelectual, na velocidade de raciocínio, na preparação invulgar, na leitura. Génio de tudo isto junto. Além de magnifico entertainer: abrilhantando sucessivos “diners en ville”, pontuava no centro das salas, contando histórias sempre apenas semi-verdadeiras, exibindo espírito, tendo graça, tirando partido de si mesmo, procurando efeitos, iludindo a verdade para obter ainda mais efeito. Sempre a seu favor. E sempre cumprindo duas “regras”, imutáveis através dos tempos: ser o centro das atenções; aludir, destacar ou sublinhar os defeitos das outras pessoas, fossem elas quem fossem.
As nossas (débeis) elites adoravam-no, telefonavam-lhe, citavam-no, mimavam-no, convidavam-no, ouviam-no. E que importância que alguma maledicência fizesse estragos, por vezes irreparáveis? Ou que a intriga fosse sulfurosa?
Era o talentoso Marcelo: tinha sucesso, influência, escrevia na Página Dois do Expresso, sabia tudo, acedia a tudo! Dispensava até o apelido. Tinha, é certo, de ser servido em doses homeopáticas e consumido a conta-gotas, mas as elites serviam-se. E aplaudiam. Ocorre o mesmo ainda hoje: como os Bourbons, não aprenderam nem esqueceram.
Mas a César o que é de César: gostei muito de ter trabalhado com Marcelo Rebelo de Sousa. A sua mente fulgurante, sempre em ebulição, possuía um ritmo de trabalho que tornava apaixonantes tarefas comuns e a sua rapidez de pensamento e decisão tudo facilitavam. Dono de boas ideias, fazia excelente ambiente, tinha um dinamismo contagiante, punha talentos a render. Foi o grande responsável por um dos maiores trunfos de sempre do Expresso – e da imprensa portuguesa – senão o maior, do qual ficou saudade e exemplo: a invenção da “Revista” onde o mais fresco, mais talentoso e mais criativo do nosso jornalismo se juntou à roda de Vicente Jorge Silva, a quem Marcelo entregara a chave do suplemento. Que tempos! Os melhores tempos!
Tendo uma personalidade excessiva, Marcelo Rebelo de Sousa era excessivamente íntimo na sua relação com os outros – amigos, conhecidos, desconhecidos, distantes, próximos, menos próximos, inimigos. Tratando-se dele, ignoro se de facto tem verdadeiros amigos ou se privará antes com uma multidão de “conhecidos”
No Expresso era também íntimo de toda a gente. Tal proximidade ofereceu-me um posto de observação privilegiado. A partir dele, fui elegendo as cores com que lhe ia pintando o retracto: foram sempre as mesmas. Anos fora, a vida confirmou-me as cores e o retracto.
Entre o pai Baltazar e a mãe Maria das Neves
2. Nasceu em Dezembro de 1948, deve ser dos poucos portugueses que dispensa apelido e é pelo menos tão popular quanto um jogador de futebol: a televisão tornou-o no primo que vem jantar aos domingos com histórias para contar. Uma transversalidade quase única na sociedade portuguesa, dotes de comunicação dignos de um Vitorino Nemésio, a plateia do país predisposta a acreditar mas, como dizer?, ao fundo da paisagem havia sempre, continua a haver, algo que nos constrange tanto quanto nos desconvence.
O pai era ministro de Marcelo Caetano, o filho herdou-lhe o nome: chama-se Marcelo Nuno, não restando hoje dúvida que a escolha de tal pronome sinalizava uma homenagem ao que anos depois seria Chefe do Governo. Esteve aliás para ser afilhado de Marcelo Caetano quando, oito dias antes do baptizado, este voltou atrás: dizia-se velho demais para apadrinhar uma criança. Se o padrinho mudou – foi Camilo Mendonça –, a devoção da família Rebelo de Sousa por Marcelo Caetano (as visitas a sua casa sucediam-se, em clima quase familiar) não se alterou.
Mas se o pai Baltazar era um “fiel” do antigo regime, dos seus chefes e dos seus valores, a mãe Maria das Neves, assistente social “engagée” de personalidade vincada e desenvolta, possuía – e não o escondia – um pé mais fresco. Nunca aliás se poderá evocar o seu filho Marcelo sem ao mesmo tempo ter presente aquilo que em parte o explica: a influência – imensa e por vezes obsessiva – que a Mãe tinha sobre ele, mais do que sobre qualquer dos outros dois filhos. Reclamando-se embora da figura paterna e do seu exemplo, Marcelo inspirava-se na mãe, bebendo-lhe o carácter forte: seguia-a, admirava-a, citava-a. A figura da mãe foi, em suma e bem mais que qualquer outra, uma referência constante e duradoura.
Era um ambiente familiar cerzido de estreitas relações com o poder, onde o jovem Marcelo, o segundo filho, cresce repartido entre a fidelidade de seu pai a Marcelo Caetano, as críticas da mãe ao regime e as frequentes visitas de ambos ao Presidente do Conselho. Jovem e dotado estudante de Direito, não se sentia próximo do grupo de extrema-direita que na universidade gravitava à roda de Jaime Nogueira Pinto e da sua revista “Política”, nem da extrema-esquerda empenhada e activa que se opunha ao regime e dispunha de pródigo palco na faculdade. Não tinha uma posição política definida, nem – aparentemente – dela carecia. (Talvez por isso, e ao contrário do que rezam certas crónicas, nunca tomou parte em nenhuma das greves académicas que inteiramente polarizavam os estudantes, de um e outro lado do regime, e ainda menos “furou” umas ou outras, como também por vezes se sugere).
“Pretendia o fundador do MAI combater – ou criticar – o então ministro da Educação, José Hermano Saraiva. Mas a acção do movimento foi limitada – e não muito notada –, cingindo-se a sua ténue influência às Faculdades de Letras e Direito.”
Limitou-se, ao chegar a Faculdade de Direito, a criar um movimento que pouco marcou, o MAI – Movimento Académico Independente –, na esteira de outro que entretanto agonizava – Acção Académica –, mas onde ele não chegara porém a participar.
Pretendia o fundador do MAI combater – ou criticar – o então ministro da Educação, José Hermano Saraiva. Mas a acção do movimento foi limitada – e não muito notada –, cingindo-se a sua ténue influência às Faculdades de Letras e Direito.
Mais tarde, no início dos anos 70, integra com mais felicidade o “Grupo da Luz” – animado pelo Padre Vítor Melícias –, onde se junta ao seu grande amigo António Guterres, mas também a Diogo Lucena, Helena Roseta, Miguel Beleza e Carlos Santos Ferreira, entre outros. Paralelamente entra (mas não à primeira tentativa) para a SEDES.
Em 1972 Balsemão, que dera por ele, desafia-o para integrar o projecto que então idealizava de um novo jornal; em 1973, e após ter fugazmente colaborado em “A Capital”, Marcelo estreia-se como analista político no Expresso que nascera em Janeiro desse ano, assinando a “Página Dois”, que viria a constituir o seu primeiro grande palco. E onde se estrearia também o “cronista” Francisco Sá Carneiro escrevendo o “Visto”, coluna semanal que muito trabalho veio a dar ao lápis azul da censura.
Insistindo que “queria apenas ser professor de Direito” mas fazendo jornalismo, agindo civicamente, namorando a política, iniciando uma brilhante carreira académica, Marcelo começava outra vida com o Expresso. De certo modo o país também.
Ele foi quase tudo. Ou não?
3. Conselheiro de Estado, professor catedrático de Direito, Ex-deputado, Ex-líder do PSD, Ex-secretário de Estado, Ex-ministro, pisou pela primeira vez a cena politica como deputado à Constituinte em 1975 nas listas do PPD, onde se filiara um ano antes. Duas décadas depois, em 1996, chega à sua liderança, após ter sido tudo o que se pode ser num partido político.
Vi-o – e sempre com o brilho da sua inteligência – subverter (quase) tudo onde começava por pôr uma mão
Vinte anos em que protagonizou, colaborou e até inventou um “conceito” completamente novo na história da política recente: os factos políticos. De tal forma que, um dia, deu-se até ao trabalho de discorrer em voz alta sobre tal “conceito”, em longo artigo que escreveu no Expresso. Inventava uns, semi-produzia outros e “analisava” os restantes, reais e concretos, temperando-os a gosto: com mais ou menos sal, com maior ou menor quantidade de pimenta, sempre conforme as suas conveniências políticas. Idolatrado ou detestado, convidado ou rejeitado, ganhou, perdeu, perturbou, iludiu, escreveu, governou, traiu e foi traído.
Conheci-o na Rua Duque de Palmela, onde então ficava o Expresso, nunca mais deixei de o ver até hoje.
Li-o em diversos jornais e revistas, entrevistei-o na SIC e em vários jornais mais de uma vez, acompanhei-o em manifestações cívicas, estive ao seu lado em celebrações religiosas, fiz a sua “apresentação” nalguns fóruns e eventos. Em suma: conheço-o de há muito e da primeira fila.
Por isso cedo me apercebi de algumas debilidades na ossatura da sua personalidade. E cedo alcancei que elas poderiam por vezes fazer gripar o motor do seu carácter. É que, com o mesmo brilho e a mesma velocidade, Marcelo era capaz de dizer tudo e o seu contrário, ser tudo e o seu oposto, sem nunca estar inteiramente comprometido com nada (a sério, só com Deus, já lá irei).
Lembro-me dele ser PSD e anti todas – sem excepção – lideranças do partido ao longo dos anos; de redigir em 1978 um projecto de revisão constitucional, a pedido de Francisco Sá Carneiro e depois produzir prosas agressivas no Expresso contra o mesmo Sá Carneiro; de apoiar Balsemão e troçar até ao limite de Balsemão, amar Soares e desamar Soares; crer nas várias AD e logo depois descrer, ao ponto de as abandonar à sua sorte; apoiar Cavaco para Presidente aceitando o seu convite para integrar o Conselho de Estado e depois preferir-lhe (publicamente) como modelo presidencial Jorge Sampaio.
Vi-o aliás ser íntimo de Jorge Sampaio (“era da casa”e “estudava com os filhos”) e desdenhar Sampaio apesar de, graças ao seu convite, se ter pela primeira vez sentado na bela sala do Conselho de Estado, na vigência presidencial do mesmo Sampaio, estava-se então em 2001. (Cadeira que abandonaria de livre vontade um ano depois, em desacordo com a promulgação da Lei da Programação Militar.)
Vi-o enfim – e sempre com o brilho da sua inteligência – subverter (quase) tudo onde começava por pôr uma mão. Ou um pé. Mas depois o escorpião preferia sempre ir ao fundo a… salvar-se a si mesmo. Fossem quais fossem as rãs.
Sabendo isto, sempre negou isto. Um dia de sol do final de Março de 2007, acabava ele de sair do mar quieto da Praia da Conceição em Cascais, quando, minutos depois, ali mesmo em frente, no terraço do hotel Albatroz, diante de um microfone para uma entrevista que então eu lhe fazia, ele me falou de carácter: “Não tenho defeitos de carácter”. Não estranhei: o meu gravador estava cheio de desabafos parecidos, supostamente redentores de passados enviesados.
Ao mesmo tempo, nesse final de manhã, tentava convencer-me – e não pela primeira vez – que entrara na política “contrafeito”, que a sua caminhada política fora uma “sucessão infeliz de acasos”, que a sua “vocação era o ensino do Direito”. Voltei a não acreditar.
O tempo da “Nova Esperança”
4. Basta olhar para trás no tempo para medir o equívoco do adjectivo “contrafeito”, aplicado por Marcelo Rebelo de Sousa à (sua) vida política. Nunca pensou noutra coisa, mesmo quando hesitava, voltava atrás ou parecia desistir. E mesmo que nunca se tenha esgotado nela – como ia ocorrendo na Universidade; na media, em jornais como o Expresso ou o Semanário; no comentário radiofónico ou televisivo; na administração de instituições e fundações –, a política era, foi sempre, a trave mestra.
E eis, a propósito, um dos melhores marcos desse “edifício”, e falo agora e não por acaso da “Nova Esperança”.
Vista da janela de Janeiro de 2016, merece que se olhe para ela. É uma grande árvore na paisagem política de Marcelo. Foi plantada no ano de 1983, na vigência do Bloco Central formado pelo PS e pelo PSD que (juntos) governavam o país, mas antes disso, numa cave da Rua de S. Félix à Lapa, já alguns jardineiros sonhavam com ela. Baptizada de Nova Esperança, ensaiava uma corrente de pensamento que se pretendia autónoma dentro do PSD “motapintista” de então.
Os jardineiros, resolutos e dotados, eram quatro e tinham pressa: Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Santana Lopes, José Miguel Júdice e José Manuel Durão Barroso não gostavam do Bloco Central. Há muito que, na imprensa e na televisão, Júdice se ocupava do tema da “bipolarização ao centro”, em sintonia com Santana (e à distância Durão Barroso, que estudava em Genève). Defendiam o mesmo e publicamente combatiam a receita política aplicada ao país. Desafiado por ambos, Marcelo, que também detestava a fórmula, não hesitou: era preciso “dar cabo daquilo”. Como? Fundando uma nova corrente-tendência, no seio do partido. Argumento forte: politicamente o país construir-se-ia com muito maior vantagem se assente sobre um grande partido à direita e outra grande formação à esquerda que se alternariam no comando de Portugal, evitando os estragos fatalmente produzidos por um bloco central – o fortalecimento dos extremos, a complacência, a corrupção. Em suma: longa vida à bipolarização ao centro.
A tarefa de pôr termo à aliança entre o PSD e o PS nunca os assustou: estavam organizados, eram destemidos, tinham uma estratégia e a vontade politica de a concretizar. O partido já dera por eles, Portugal iria dar: no final de 1983, Marcelo e os seus companheiros dão à estampa um pequeno livro, “Contra o Bloco Central”, onde evidenciavam razões e argumentos; meses depois plantam a árvore da “Nova Esperança”; não falham nenhum Conselho Nacional do PSD, com o propósito de fazer a “vida negra” a Mota Pinto, líder do partido e vice-primeiro-ministro de Mário Soares. Combatem a pretensão presidencial da direção social-democrata, que então se orientava para a escolha do militar Firmino Miguel, eventualidade que todos rejeitavam liminarmente, preferindo-lhe Alberto João. Jardim, com quem conspiravam.
Marcelo, o mais veloz, andava numa azáfama e se as paredes do escritório da Rua de S. Félix – que ele alugava e os outros frequentavam – falassem, muito contariam sobre esses tempos de agitação e esperança. O seu empenho era tal que Marcelo por vezes se deslocava de helicóptero do norte para sul e de um palco para outro. Fazia política com volúpia e pressa. Em 1984 o grupo, já com apoiantes e simpatizantes, leva uma moção ao Congresso de Braga do PSD. A tese era a mesma (bipolarização ao centro), os argumentos conhecidos, mas o certo é que em qualquer votação em que participassem era raro obterem menos de dez por cento dos votos, um feito político nesses tempos em, que sem esforço, antes com felicidade, os sociais-democratas, de uma forma geral, se deixavam enlear pelos encantos do Bloco Central.
Mas a grande apoteose da Nova Esperança surgiria porém meses depois, em Maio de 1985, no XII Congresso social-democrata, convocado por Rui Machete, então líder interino do partido, após a súbita morte de Mota Pinto. Tratava-se de eleger uma nova chefia, mas discordando do candidato João Salgueiro que, a seus olhos, representava a continuação conformista “do que estava”, o grupo decide “facilitar” a vida de Cavaco: aterrando de supetão na Figueira da Foz, Cavaco Silva, surpreendendo todos, anunciara a sua disposição de também disputar a conquista do PSD.
Marcelo discorda veementemente: “estão doidos? O homem fica lá dez anos e talvez mais dez depois em Belém….” Para os seus companheiros o futuro contava porém muito menos que o presente. E o presente, revisto por Cavaco Silva, anunciava – e prometia – o fim do famigerado Bloco Central.
Não foi fácil. Seguiram-se horas alucinantes de negociações, conspirações, intervenções, promessas, avanços, recuos. Saltando do palco para os bastidores e de “cafés” para quartos de hotéis, o grupo reúne, troca argumentos entre si, há concordâncias, discordâncias, discursos, e muita efervescência no ar político. A Nova Esperança é a grande vedeta, o grupo tornara-se politicamente indispensável, mas esta “indispensabilidade” deixara um travo amargo em Marcelo. E abre uma fissura na unidade daquele quarteto de cabeças de cartaz.
“Ferida de morte, a Nova Esperança esvaía-se na praia da Figueira Foz: já não era precisa. A verdade é que se Cavaco a atravessara de alto a baixo, reduzindo-a a cinzas após capturar algumas das suas estrelas, a aventura deixou memória impressiva.”
Desconfiado e descontente, Marcelo hesitará até ao fim mas acaba por se render. Cavaco ganha o Congresso graças ao apoio vindo da moção Nova Esperança – nunca Aníbal Cavaco Silva teria vencido sem ela – e o PSD obtém um inesperado candidato presidencial. Exit Jardim, Freitas do Amaral entra em cena, pela mão do recém-eleito líder. Começava uma outra história, a direita tinha uma nova dupla política. Santana e Durão seguirão o novo chefe da tribo. Marcelo recusa – com Júdice – entrar no perímetro cavaquista.
Ferida de morte, a Nova Esperança esvaía-se na praia da Figueira Foz: já não era precisa.
A verdade é que se Cavaco a atravessara de alto a baixo, reduzindo-a a cinzas após capturar algumas das suas estrelas, a aventura deixou memória impressiva.
Tudo aliás se pode resumir a uma pergunta: se de novo olharmos para trás, que “tendência” política, de que outro partido, produziu nos últimos quarenta anos, dois primeiros-ministros, um Presidente da Comissão Europeia e um muito provável Presidente da República? (Quanto a José Miguel Júdice, merece pelo menos o benefício da dúvida: onde teria chegado também ele caso tivesse continuado casado com a política em lugar de tão novo dela se ter divorciado? Longe, certamente.)
Sim, em 1985 Marcelo não segue Cavaco como antes não estivera com Sá Carneiro, ou estivera muito pouco, limitando-se a um empenho claudicante à AD, fundada pelo mesmo Sá Carneiro. E eis o que nos reconduz a um dos traços mais inexplicáveis da sua personalidade política: uma (automática?) aversão às lideranças carismáticas do seu partido e aos seus “chefes”, bem ou mal amados, mas largamente plebiscitados: detestou-os a todos mesmo quando fingia que não. (Desentendeu-se com Sá Carneiro, a quem nunca foi fiel; recusou seguir Cavaco, apoiando-o, contrariado e nada convencido, na corrida para Belém, para logo o “desapoiar” publicamente; com Passos Coelho não foi diferente, foi apenas mais visível: dominicalmente, durante quatro anos, arrasou a sua governação, triturando-a, passo a passo, medida a medida.)
Uns dizem ser uma questão de “ego”, outros apontam-lhe a necessidade de uma ocupação exclusiva dos palcos, fruto da sua insegurança. Pode ser, mas não explica tudo. E se o “caso” reclama análise mais profunda – e não será este o local para ela – impõe-se pelo menos o registo de uma singularidade: uma longa caminhada, feita sempre à margem dos grandes líderes do seu partido de estimação, quando não em confronto, directo ou enviesado, com todos eles.
Líder do PSD: o que há a reter
5. E no entanto… de toda essa “sucessão de acasos” que o próprio Marcelo classifica de “infelizes”, merece igualmente destaque e relevo a sua passagem pela liderança do PSD: primeiro, não foi de todo um acaso; segundo, nada ficou a dever à “infelicidade”. Talvez até pelo contrário, mas é cedo para se ser taxativo.
Vale a pena recapitular: em Março de 1996, Marcelo Rebelo de Sousa ganhara a liderança no Congresso do PSD em Santa Maria da Feira, embora logo dez minutos depois fosse… “um líder a prazo”! A quem a metade do partido que estava sempre contra a outra metade quando se tratava de novas lideranças – fossem quais fossem –, vaticinava dois meses no comando das tropas. Justamente, não foi assim. Foram sim tempos difíceis a partir desse “lugar” ingrato que é a chefia da oposição, num país onde ela ainda carece de estatuto e de importância. Guterres – a anos luz do “pântano” de onde haveria de um dia fugir – “dialogava” com glória com o “povo”, o país enlevava-se.
Marcelo optou por reagir hiperactivamente, desmultiplicando-se em actos, palavras, iniciativas. Algumas verdadeiramente notáveis, outras precipitadas, outras inoportunas, mas o que é relevante sublinhar é o que diz alguém muito próximo do candidato: nas “grandes alturas” e nos “momentos fulcrais” pode contar-se com ele. Isto é, Marcelo reage – reagirá, supõe-se… – com tino e sentido de Estado. Fosse como fosse, na oposição corria depressa. E teria certamente ido muito mais longe não fora aquela espécie de “recuo” que, nos momentos decisivos da corrida, lhe vetava a etapa seguinte. Sem estar no Parlamento, conseguia ir “ocupando” a oposição e incomodar o Executivo socialista, em vez de se reduzir a clamar que o Governo governava mal ou que as suas medidas eram erradas. Um inegável ponto a seu favor.
Da sua passagem pelo PSD há sim que reter algumas coisas, desde logo a atitude – sempre concertada com António Guterres – face à entrada de Portugal no euro. Nunca lhe ocorrendo por isso tomadas de posições à margem daquilo que entendia ser a correcta caminhada do país na senda da moeda única, o que naturalmente pressupunha o pré-entendimento entre o primeiro-ministro e o líder da oposição. Ganhou uma revisão constitucional que o PS ia adiando (Guterres nunca foi particularmente amigo de decidir), mas o então líder do PSD soube adiantar-se e bateu-se bem pela sua dama.
E há sobretudo que reter a influência da sua acção em dois momentos políticos cruciais, os referendos à regionalização e à despenalização do aborto: percebendo a importância de ambos na vida do país e na sociedade portuguesa, mobilizou-se e agiu, num e noutro. O segundo referendo interpelou ainda mais o católico activo e empenhado: Marcelo interveio, debateu, testemunhou. Presença assídua na campanha que antecedeu a consulta, acorreu, com generosidade e inspirados argumentos, a todas as chamadas. Esteve a sério e inteiro na batalha.
Virá a propósito lembrar que ainda hoje se tem como certo que, sendo Marcelo desde há muito um íntimo amigo de António Guterres, o referendo sobre o aborto teria contado com a acção discreta e a bênção aliviada do então primeiro-ministro, católico convicto. Puro engano: António Guterres não só pretendeu – insistentemente – dissuadir o seu amigo de tal iniciativa, invocando até o desagrado do Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, face a ela, como tranquilizava o seu interlocutor assegurando-lhe que ele, Guterres, “resolveria” a questão “na secretaria”. Ou seja, o líder do PS e primeiro-ministro António Guterres estava absolutamente certo de poder influenciar – a seu favor – a votação da sua bancada parlamentar quando lá aterrasse a lei. Ao contrário do líder do PSD que sobre isso não alimentava qualquer ilusão.
Por estes mesmos dias – Outubro de 1996 –, num avião que voava do Porto para Lisboa, Marcelo encontra a deputada do CDS Maria José Nogueira Pinto que lhe manifesta a sua preocupação com o andar dos acontecimentos. Conversam os dois. Entendem-se: queriam o mesmo, apostavam na bondade do referendo. Afinam uma estratégia. Marcelo decide agir, ela incentiva-o, ele percebe que conta com um apoio de peso. Quando o referendo foi anunciado ao país, o PSD e o CDS estavam na primeira linha dessa batalha.
Tiveram razão.
Quando Marcelo de desencontra consigo mesmo
6. Mas… e se fosse verdade – ou uma parte da verdade – isso dos “acasos” numa “sucessão infeliz”? É que sobram alguns tão misteriosos “ses” no seu caminho, que se alguém obtivesse a chave para eles, tínhamos a explicação deste personagem. E, com ela, talvez chegássemos ao âmago de uma mente desconcertante.
Nunca esqueci esses “ses” que no fundo equivalem a dois “pesados” momentos da vida política de Rebelo de Sousa. O primeiro, é este: e se Marcelo tivesse de facto querido ganhar Lisboa contra Jorge Sampaio nas autárquicas de Lisboa, em Dezembro de 89, em vez do contrário? Em vez do que amplamente mostrou ao longo de uma campanha que em tudo destoou da sua inteligência e do seu talento, do mergulho no Tejo à jaula do leão, passando por se mascarar de “taxista”, mas sobretudo por um debate cujos erros pareciam intencionais de tão certeiros? Mistério.
O momento mais marcante da campanha para Lisboa em 1989: o mergulho no Tejo, junto à Torre de Belém
Lembro-me aliás que imediatamente após esse histórico confronto entre ele e Sampaio, na RTP, ceámos juntos numa casa do Estoril, com amigos comuns. Foi de cortar à faca. A perplexidade tolhia-nos o pensamento e o verbo: porque é que ele fizera tudo para perder com Jorge Sampaio? Mistério, sim, até hoje. (Insegurança? Medo face às dificuldades que subiam de grau à medida que se desenvolvia a campanha eleitoral? Falta de ânimo para a empreitada? Desejo inconsciente de fuga perante um futuro protagonismo com responsabilidades bem mais pesadas do que as suas até então?)
Eis o segundo “se”: e se após Paulo Portas, em Março de 1999, ter irresponsavelmente traído a AD nº2 forjada por Marcelo num mar tempestuoso, ele tem ficado na liderança, transformando a deserção do ex-parceiro Portas numa vantagem política e enfrentando a súbita orfandade, com a sua gente?
Dizendo-lhes “fico” em vez de “saio”?
Não foi assim. Marcelo saiu, Barroso entrou. José Manuel Durão Barroso esperou o que foi o preciso, estava “lá”, ganhou.
Marcelo saiu, refazendo afinal o gesto que há décadas o identifica: não resistir a metade de si mesmo. A algo que dentro de si decide primeiro, pesando mais que as suas invulgares qualidades políticas que tudo deveriam levar por diante, mas quase nunca levaram. Há inegavelmente algo que (o) determina mais que o resto, e chame-se a isso personalidade, modo de ser, idiossincrasia, forma “mentis”. Ou porventura carácter.
O certo é que, caso tivesse ficado, caso tivesse persistido, teria sido primeiro-ministro, vocação primeira. Através da concretização desse apelo vocacional, seria conduzido ao seu “rendez-vous” com a História. Conforme ele teria gostado e, quem sabe…, acreditado.
A promessa de um “destino” vinha do berço, fora enlevadamente adubada em casa pela família e depois regada por ele próprio: o futuro seria glorioso. Mais: a entrada em cena de “Abril de 1974” e a concretização da democracia civilista e pluripartidária facilitariam – e dourariam – esse encontro. A liderança da oposição no final da década de 90 deveria justamente ter sido o presente desse futuro radioso. Não foi.
Marcelo desencontrou-se consigo mesmo.
7. E com a História? Com a História não se sabe. Os invioláveis amanhãs da política não permitem dizer hoje perentoriamente “sim” ou perentoriamente “não”. Mas uma coisa é certa: mesmo se na pista onde corre agora a sua última prova política Marcelo se apresenta em enorme vantagem perante os outros corredores, o seu grande encontro consigo mesmo e com o país não teria sido este. Nem a morada política que talvez o espere num palácio cor-de-rosa, no início de 2016, era a sua primeira escolha e desengane-se quem isto pensa. Por isso, mesmo que o cimento da pista pareça sólido debaixo dos seus pés e que a meta presidencial esteja à vista, nem uma era a “sua” melhor pista, nem a outra a “sua” sonhada meta.
O candidato da televisão
8. E esse tão ágil, eloquente e veloz político “doublé” de comentador que um dia decidiu casar com a televisão? Celebrando charlas dominicais que embriagavam a plateia nacional, ávida da sua mortal acutilância? Há que parar aqui, como é óbvio. Mas não tanto porque tais charlas enchiam o país de espectadores fiéis, mas sobretudo porque o banhavam a ele num caudal de indisfarçável felicidade. Já houvera a rádio, é certo, uma espécie de semente nesta história da “comunicação”. Sim, recordemo-lo: foi na TSF onde Marcelo Rebelo de Sousa esteve entre 1993 e 1996 que ele ensaiou, treinou e aprimorou o seu electrizante cozer e descoser da vida política nacional. Nada do que televisivamente ocorreria anos depois pode ser explicado sem esse prévio “Exame” radiofónico. Com notas e tudo. O “professor” estava a caminho.
Nascia um comunicador. O que lhe causava um deleite quase indizível: não só pelo puro gozo intelectual que lhe traziam tais performances, onde muito se divertia e estava no seu direito. Mas não, não era só isso: com o seu visceral horror à tensão e à violência, mesmo que apenas a da retórica, a sua maior felicidade provinha da possibilidade de fazer política sem dor. Sem suor e sem esforço.
Na TVI, ele foi rei do pequeno écran, coisa que nunca o desconsolará. Até já diz ter "saudades do comentário televisivo"
Como? Trocando esse imenso trabalho que é sempre preciso desenvolver para obter votos, por borbulhantes audiências televisivas. E trocando imprevisíveis escrutínios eleitorais por écrans inteiramente ocupados por si. Sem maçadas, outro luxo: Marcelo elege os seus territórios, demarca as suas fronteiras, traz o trabalho de casa feito, fala sozinho. Sem contraditório a embaciar-lhe o raciocínio, adversários a perturbá-lo, intermediários a toldar-lhe os argumentos. (E isso é de tal modo verdade – e já lá irei com mais detalhe –, que basta olhar para o modo como iniciou a actual campanha presidencial: longe. Longe de nós, longe da vida. Solitariamente, sem grandes contactos com gente de carne e osso. Sem quase se mexer. Aparentemente indo ter com o país, mas sem verdadeiramente se cruzar com ele.)
Marcelo Rebelo de Sousa não tem o povo, tem plateias.
Exagero meu? Talvez (mas não andarei longe da verdade).
A verdade é que ele foi rei do pequeno écran, coisa que nunca o desconsolará. Basta lembrar o extraordinário desabafo que o país lhe ouviu, mal tinha largado os estúdios e os écrans da TVI: “Tenho saudades de fazer comentário televisivo”.
Foi “a brincar”, disseram alguns. O pior é que não era a brincar.
Se for eleito Presidente da República sê-lo-á pela televisão. Não tem experiência governativa, nem equipas, nem conselheiros, nem tropas, nem “amigos políticos”. Tem espectadores. Correu quase sempre sozinho. É um “solitário político”. Mas tem a televisão. E mesmo que não esteja escrito em lado nenhum que a popularidade se transfira automaticamente para a urna de voto, quando se tratar de votos “verdadeiros” e já não de “audiências”, a visibilidade alcançada ao longo de anos nos écrans piscará obviamente o olho ao voto. De momento o que há é um pássaro na mão – a popularidade mediática; e outro pássaro – os votos – ainda a voar. Num voo hesitante entre pousar sobre si no dia 24 de Janeiro ou apenas quinze dias depois.
Se pousar.
Quanta solidão num prato de salada
9. Por falar em popularidade mediática. Ela é ponto tão fulcral para o nosso homem – é o ar que ele respira – e factor tão determinante no resto da sua vida, que ainda hoje me lembro do dia e da hora em que julguei ver o ocaso de tudo isso…Ou talvez mesmo o fim da sua aventura televisiva.
Fui dar com ele sozinho em casa, terrivelmente engripado e comendo um jantar frugal (“janto todos os dias esta mesma salada”). O seu futuro televisivo mostrava-se demasiado incerto e ele sabia-o. A ideia afligia-o
Foi uma vez, quando o visitei na sua casa de Cascais, já quase noite. Estava-se em plena crise da TVI que opusera o seu administrador, Miguel Pais do Amaral, a Rebelo de Sousa (na altura cunhados um do outro), tendo Marcelo sido afastado compulsivamente da estação onde há anos surgia dominicalmente, fazendo o pleno das audiências televisivas.
Mas naquele cair de tarde, longe do écran, do sucesso, da influência, do poder – se havia coisa que ele perseguia e usava, era poder e influência –, Marcelo estava em pleno desamparo de si próprio. Sem chão debaixo dos pés.
Fui dar com ele sozinho em casa, terrivelmente engripado e comendo um jantar frugal (“janto todos os dias esta mesma salada”). O seu futuro televisivo mostrava-se demasiado incerto e ele sabia-o. A ideia afligia-o.
Muito pouco tempo antes, num encontro que por uma extraordinária coincidência temporal eu tivera com Francisco Balsemão no seu gabinete na estação de Carnaxide, ocorrera-me dizer-lhe: “E se fosse buscar Marcelo?” Mas o patrão da SIC cortara cerce: “Não”.
Não me espantei: há feridas que se suspeita que Francisco Balsemão não queira ver saradas. Ponto final. O resto não era consigo, muito menos o destino televisivo de alguém que (irreversivelmente, pelos vistos) o decepcionara a este ponto.
Fosse como fosse, impressionei-me naquela tarde e naquela acolhedora casa no “miolo” antigo de Cascais ao despedir-me de Marcelo: quanta solidão naquele prato de salada. Faltavam-lhe as plateias, faltava-lhe o eco, faltava-lhe o futuro, faltava-lhe o ar. Percebi que naquele preciso momento, mais que a carreira académica, os livros, ou a docência; mais que os pareceres que dava, os inúmeros convites que tinha, ou a Fundação da Casa de Bragança, a vida que para ele contava – e a única capaz de lhe permitir a última aventura política – era respirar politicamente através de um canal de televisão.
Semanas depois as coisas compuseram-se, surgiu nova morada televisiva, Marcelo ressuscitou das cinzas do seu acabrunhamento. Mas eu nunca esquecerei aquele momento.
Quem é Marcelo? De certa forma, Marcelo é acima de tudo um solitário
10. E depois há a crónica pública embalada com zelo pelo próprio: não dorme, toma banhos de mar todos os dias, tem tempo para tudo, trabalha insanamente, é hipocondríaco, é curioso, dá-se com muita gente, é um “brincalhão”. Podia escolher outros exemplos, não valerá a pena. Chegam estes. Marcelo não é nada curioso: tem alguns interesses – o que não é a mesma coisa – e persegue-os; não entra (obviamente) no mar todos os dias; dorme – e bem – oferecendo às manhãs mais vazias de compromissos o sono roubado por actividade, trabalho e (inúmeros) telefonemas, madrugadas dentro. Os solitários costumam dar-se bem com a noite, Marcelo é acima de tudo um solitário. Sim, é verdade, é hipocondríaco, metendo diariamente ao bolso dezenas de coloridas cápsulas que vai engolindo com método ao longo do dia. Sim, coleciona livros, é alguém que lê mas nunca aqueles livros de que falava na televisão com pressa vertiginosa (ou deveria dizer desrespeitosa?); sim, vê muita gente mas a sua imensa capacidade de se maçar – disfarça mal – é a melhor defesa murada contra o ruído da curiosidade alheia pousada sobre si. Sim, alguma imaturidade emocional convida-o a ser “brincalhão” muitas vezes. Sucede porém que a leviandade e o espalhafato (os seus), se podem tornar embaraçosos nalgumas dessas vezes.
Ficar a meio. Nas respostas
11. Falemos então agora no que aí está. Uma campanha eleitoral que se concluirá dentro de dias e da qual o país se vai apercebendo com mais preguiça que entusiasmo e com mais desinteresse que curiosidade. Só isso explica que a ninguém ou quase ninguém tenha ocorrido perguntar ao candidato – “professor” – Marcelo, porque se candidata ele? Para lá do que sumariamente sabemos serem os seus nobres argumentos (desejo de servir o país, retribuindo-lhe o que “Portugal fez por si”), como pensa o candidato “rechear” tais motivações e como pretende norteá-las? Que áreas julga mais susceptíveis de exigirem um cuidado ou uma atenção suas? Que contrato nos propõe?
Em suma: porque vale a pena votar em si e não em outros?
Não tem havido respostas, apenas vislumbres, ou partes de respostas. Algumas quase inúteis como a de sabermos – por exemplo – que Marcelo Rebelo de Sousa, se for eleito, “irá convocar o Conselho de Estado quatro vezes por ano”… e eis uma certamente precipitada aritmética: e se houver fundamento para serem seis em vez de quatro, ou argumento para serem só três?
Diz-se que quer “inovar”. O quê, também não se percebeu bem: o modelo político, os usos e os costumes da “casa”, a composição da Casa Civil? As rotinas do cargo, substituindo-as por “novidades”? A relação presidencial com os portugueses?
Se não me engano, o que se lhe pede são uma ou duas boas ideias, um desígnio, alguns compromissos. Virão?
A “falta de poderes” do Presidente da República, sempre evocada nestas alturas, é um pau de dois bicos. Há sempre “poderes”. O que pode não haver é a vontade de os querer – e saber – utilizar. Ficando a meio. Como nas respostas.
Uma relação enraizada e antiga com Deus
12. E last but not least, há o seu lado mais privado – que intencionalmente deixei para o fim – e desse lado eu gosto. Falo dele com a autoridade da testemunha que há décadas conhece e acompanha o personagem – mesmo que muito dele tenha discordado.
O que agora abordarei é mesmo a outra face desta controversa moeda chamada Marcelo Rebelo de Sousa e é preciso saber ler o que lá está. E o que está, em grande plano, nesse avesso, é um pai atento, pedagogo, responsável e extremoso, absorvido ontem pelos dois filhos, como hoje pelos quatro netos; está o imenso amor do professor à Universidade, o seu culto pelo ensino, a sua devoção ao aluno; está o ser humano generoso, sempre pronto a entrar em acção, promovendo ajudas financeiras discretas, dando atenção a desvalidos, fazendo visitas – anónimas e fora de horas – a doentes terminais que ele não conhece mas o “conhecem” a ele; está o amigo que mima os seus próximos.
E está sobretudo Deus. Uma relação enraizada e antiga. Talvez porque ela lhe ofereça um sentido para as coisas; talvez porque necessite de balizar a inconstância da sua relação com a vida com a constância da sua relação com o transcendente. Talvez porque ela seja o seu pulmão mais limpo. Talvez como um caminho de expiação que ele conta – e espera – que o conduza à salvação.
Talvez muito simplesmente por uma pura questão de Fé. Seja como for há um Marcelo que se põe em sentido quando se trata de Deus e serve com Fé e generosidade sóbria uma Igreja onde sempre militou. Evitando exibir-se e trocando um Deus de boca por um testemunho sem preocupações de audiência.
Na conversa sobre Deus com Marcelo, a Capela do Rato ia vindo abaixo, nunca se lá viu tanta gente
No dia 4 Novembro do ano passado, uma quarta feira, esteve presente num ciclo que produzi na Capela do Rato, durante doze semanas, chamado Conversas com Deus e a cujo convite para participar ele logo acedeu. A plateia recompensou-lhe aliás a disponibilidade: a Capela ia vindo abaixo, nunca se lá viu tanta gente. Havia pessoas de pé, no chão, no coro; e gente até no passeio da rua, espreitando pela janela aberta e tentando seguir aquele vertiginoso monólogo do “professor”. Sim, Marcelo não tem confiança no diálogo – é inseguro demais para isso. Teme perguntas que não escolheu, alusões que não previu, receia ficar demasiado exposto, o controle voa-lhe das mãos. O monólogo defende-o: com ele ergue um muro à sua roda. Como nessa noite no Rato, onde ele voou ainda mais depressa sobre as palavras.
Quando o convidei, em Setembro, não era ainda candidato à Presidência da República. No início de Novembro, já o era oficialmente mas manteve a sessão, o que nos reconduz à outra face da controversa moeda: Marcelo leva Deus a sério. Como tal, candidato ou não, aceitou um desafio que tratava de Deus e cumpriu-o pontualmente.
13. Porque ele sabe que muitos são os chamados e poucos os escolhidos?
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Observador.