quinta-feira, 15 de julho de 2021

Vereador da CML terá simulado procedimentos de contratação

Adjudicou contractos (€3.957/mês) à mulher do seu assessor numa Consulta Prévia onde as empresas "concorrentes" estão ligadas a amigos, cônjuges e Ex-colegas. Mulher do assessor é sócia em duas dessas empresas e só ela respondeu às Consultas Prévias. Naturalmente, ganhou. CML contratou ainda empresa de que Miguel Gaspar foi sócio.

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A 27 de Março de 2019, Miguel Feliciano Gaspar, vereador da Mobilidade da Câmara Municipal de Lisboa (CML), autorizou a abertura de um concurso por Consulta Prévia para "prestação de serviços para apoio à contratação de equipa externa para o desenvolvimento do Plano de Mobilidade Urbana Sustentável para Lisboa". Não está no Portal Base que empresas a CML convidou para esta Consulta Prévia (só após perguntas da SÁBADO se soube que empresas eram), mas consta quem a venceu: Ana Leal Vasconcelos, Lda. Em nome desta empresa (de que detém 70%), assinou a 29 de Abril Ana Leal Serpa de Vasconcelos um contracto de 23 meses por €91.020 (IVA incluído), no que resulta €3.957 por mês. A empresa fora fundada a 19 de Fevereiro de 2019, ou seja, dois meses antes.

Esta rapidez embate ainda num problema adicional: segundo o Portal da Justiça, Ana Leal Serpa de Vasconcelos é casada (em comunhão de adquiridos) com Vasco Fernandes Pires Damas Mora. Nome profissional: Vasco Mora. Cargo: assessor do vereador da mobilidade da CML. Ou seja, Miguel Gaspar adjudicou contractos à mulher do seu assessor. E, como vamos ver mais à frente, os sócios das empresas auscultadas nestas Consultas Prévias estão todos ligados directa ou indirectamente a Miguel Gaspar e/ou a Vasco Mora.

Decorridos os tais 23 meses, Ana Leal Vasconcelos ficaria sem contracto com a CML, não fosse o caso de ter aparecido outro contracto mesmo a tempo, a 30 de Abril de 2021, agora para "desenvolvimento do observatório de mobilidade urbana de Lisboa, no âmbito do WP7 do projecto europeu VoxPop". Outra Consulta Prévia sem indicação de quem foram os concorrentes. Preço: €58.548 (com IVA). Prazo: 16 meses (média: €3.659).

Segundo o seu Linkedin, Ana Vasconcelos está na Divisão de Estudos e Planeamento da Mobilidade da CML desde maio de 2018 (ou seja, antes dos contratos da sua empresa com a CML). Era investigadora no Técnico, onde se formou em Engenharia Ambiental (1997-2003). O marido, Vasco Mora, é assessor de Miguel Gaspar desde novembro de 2017 "com especial foco na análise e gestão de processos e no potencial tecnológico para a mobilidade urbana", também segundo o seu Linkedin.

Vasco Mora também é formado no Técnico, mas em Engenharia Civil, em 2003, tal como Miguel Gaspar. Os dois foram para a Tis.PT, consultora de mobilidade. Miguel Gaspar ficou lá 12 anos, chegou a ser administrador e saiu para o Governo em 2015 (adjunto do secretário de Estado Adjunto e do Ambiente). Vasco Mora ficou menos tempo na Tis.Pt: saiu em 2007. O amigo recrutou-o da EMEL, onde ainda pertence aos quadros, quando assumiu o cargo na CML.


Eram mesmo empresas concorrentes?

Embora o omita dos seus currículos oficiais (nada consta no seu currículo na CML, no seu Linkedin, ou no seu despacho de nomeação para o governo), em 2012 Miguel Gaspar tornou-se acionista (2%) e gerente de uma subsidiária da Tis.PT, a Mobilidade Suave, que concorreu e ganhou vários (17) contratos públicos (€677.296). A 26 de outubro de 2017, quando tomou posse como vereador, Miguel Gaspar herdou um contrato (assinado a 4 de outubro) com essa empresa: ajuste direto de €70.500 para três meses de "estudos de mobilidade urbana".

Havia ainda outro contrato na CML (via EMEL): ajuste direto de €62.475 (três anos) para "estudos e projetos de ordenamento de estacionamento na via pública". Um ano depois, 29 de outubro, a EMEL voltou a contratar a Mobilidade Suave para o mesmo objeto e por 66.076. Dias antes, a 16 de outubro, a CML contratou também a Mobilidade Suave, agora por €11.650 para 30 dias de "estudo de tráfego na Av. Descobertas".

As respostas da CML à SÁBADO adensam a história. Primeiro, a questão da empresa Ana Leal Vasconcelos, Lda.

A CML diz que na Consulta Prévia para o contrato de 2019 foram auscultadas as empresas Ana Leal Vasconcelos, Lda, Occam e Zebracategory. Na Consulta Prévia para o contrato de 2021 foram auscultadas as empresas Ana Leal Vasconcelos, Lda, Occam e Francisco & Diogo, Lda.

Em comum (além da empresa Ana Leal Vasconcelos, Lda) está a Occam. Uma simples consulta no Portal da Justiça mostra que a Occam foi co-fundada em 2007 por... Ana Leal Vasconcelos. Outro dos fundadores foi Tiago Lopes Farias, que é o presidente da Carris (empresa da CML tutelada por Miguel Gaspar) - e que também omite do seu currículo oficial esta participação.

Segundo a SÁBADO consultou no Informa D&B, a Occam mantém os mesmos sócios (pelo menos à data de 31 de dezembro de 2019). A empresa não regista qualquer atividade há vários anos. A CML diz à SÁBADO que questionou o CEO da Carris e este informou que "já não é sócio da empresa desde 2009". O CEO da Carris, via assessoria, questionados sobre as suas omissões como acionista de empresas no currículo, e convidado por nós a enumerá-las, apenas respondeu que nada possui desde que entrou na Carris, em fevereiro de 2017. Num email posterior, corroborou a tese de que nada tem a ver com a empresa desde 2009.

A SÁBADO chegou a falar por mensagem com uma das gerentes da Occam, Sofia Taborda, que nos referiu que a empresa "encontra-se em fase de dissolução". Sobre os sócios, confirma que Ana Leal Vasconcelos "detém uma participação na empresa" e que Tiago Lopes Farias (atual CEO da Carris) "já não é sócio desde 2009".

Em resumo, pelo menos no caso de Ana Leal Vasconcelos, há óbvias ligações com as duas empresas que a CML foi ao mercado auscultar: é dona de uma empresa e co-fundadora e sócia da outra.

E porque é que a sua empresa Ana Leal Vasconcelos, Lda ganhou os dois contratos? Porque foi a única a responder ao convite da CML, diz a autarquia: "No concurso de 2019, apenas a empresa Ana Vasconcelos, Lda apresentou resposta ao convite endereçado pelos serviços do município. As demais empresas declinaram dar resposta ao convite. No contrato de 2021, as empresas Francisco & Diogo Lda e Occam Lda responderam afirmando não estar em condições de responder ao convite."

Diga-se que a Francisco & Diogo Lda tinha sido fundada dois meses antes, a 22 de janeiro. Um dos sócios é Diogo Jardim, que tem um longo passado em comum com Miguel Gaspar e Vasco Mora: entraram em 2003 na Tis.PT. Diogo Jardim, a ver pelo seu Linkedin, esteve na empresa até janeiro deste ano, altura em que criou com Francisco Tiago Faria a empresa Francisco & Diogo Lda - e ainda mais outra, a FJ Consultores, ambas na área da mobilidade. Sem surpresa, Francisco Tiago Faria também esteve na Tis.PT com Miguel Gaspar.

Apesar da experiência destes sócios, e de ser uma empresa jovem no mercado, não responderam ao convite da CML para este importante contrato. A Francisco & Diogo Lda não tem contactos disponíveis. A SÁBADO ligou para os números da FJ Consultores, sempre sem sucesso.

A empresa Zebracategory foi criada em 2018 por Filipa Afonso Bernardino, também com um currículo ligado à mobilidade. Não detetámos ligações empresariais com os nomes acima mencionados, mas o seu Linkedin diz-nos que tirou o mesmo curso (Engenharia Civil) na mesma faculdade (IST) e nos mesmos anos que Vasco Mora e Miguel Gaspar. A SÁBADO contactou telefonicamente com Filipa Afonso Bernardino, que declinou falar do assunto. A Zebracategory tem também contratos com a CML na área da mobilidade (aqui). O marido da sócia-gerente, João Pedro Bernardino, está ligado também à mobilidade. Duas empresas suas, a Gobiklio e a Bicicultura, têm também contratos relacionados com a mobilidade na CML (aqui e aqui).

A CML declinou sempre responder à SÁBADO sobre quem foram as pessoas (ou os contactos usados) nestas empresas quando lhes fez os convites para as duas Consultas Prévias.

Quanto ao pormenor do currículo de Ana Leal Vasconcelos, que diz trabalhar na CML desde 2018 (anterior aos contratos que ganhou na própria CML), a autarquia esclarece: "Foi bolseira em diferentes centros do IST entre 2003 e 2019, incluindo no Instituto de Engenharia Mecânica. No âmbito dessa atividade colaborou em dois contratos desse Instituto com a CML, o primeiro datado de 2015 onde integrou a equipa desde o primeiro dia, e o segundo em 2018."

Quanto à empresa Ana Leal Vasconcelos, Lda., não tem site ou contacto disponível. A SÁBADO tentou contactar a gerente através das redes sociais, sem sucesso até ao fecho desta edição. Pediu também esse contacto à CML, sem sucesso.

A 10 de setembro de 2020, o Tribunal de Contas (numa fiscalização a procedimentos contratuais da Junta de Freguesia de Arroios) já tinha alertado para as situações em que empresas concorrentes têm os mesmos sócios. "Os contratos evidenciarem representantes legais com estreitas relações familiares e ambos serem sócios das duas empresas. Houve, assim, violação de normas de contratação pública, o que é suscetível de gerar responsabilidade financeira, nos termos do artigo 65.º, n.º 1, al. l) da LOPTC."


A omissão no currículo do vereador

Quanto ao assunto Mobilidade Suave, o vereador (via assessoria da CML) assume essa omissão dos currículos, mas diz que Miguel Gaspar já tinha sido chamado à atenção em 2019 "na sequência de acusações levantadas pelo deputado Municipal Carlos Barbosa (também presidente do ACP) sobre a mesma matéria. Foi remetida toda a informação documentada e por escrito para a Assembleia Municipal numa carta enviada a 23 de setembro de 2019 à sua presidente."A CML diz que Miguel Gaspar abandonou os cargos de administrador da TIS.pt e da Mobilidade Suave em 2015, quando foi para o governo. Mas a posição acionista continuou. "Até outubro de 2017, manteve uma participação social de 2% na empresa Mobilidade Suave, que voluntariamente alienou antes da tomada de posse como vereador da Câmara Municipal de Lisboa. Todas estas participações foram comunicadas ao Tribunal Constitucional nos termos da Lei. Mais, na sequência da eleição como Vereador da Câmara Municipal de Lisboa, e sem estar legalmente obrigado a fazê-lo, deu conhecimento destes factos e impedimentos decorrentes de ter participado nos órgãos sociais através de carta enviada na data de instalação dos órgãos municipais ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa."

A SÁBADO pediu essa carta que Miguel Gaspar enviou a Fernando Medina, tendo a mesma sido enviada. Nela, Miguel Gaspar invoca a lei 64/93, no seu artigo 9-A, onde se diz que (e aplicando a lei ao seu caso) estava impedido de participar em concursos da TIS.pt e da Mobilidade Suave com a CML durante três anos. Daí que as contratações à Mobilidade Suave tenham sido feitas pela EMEL (empresa municipal tutelada por Miguel Gaspar, mas que garante não ter responsabilidades nas suas adjudicações) e pelo departamento de Urbanismo da CML.

A EMEL diz à SÁBADO que os dois contratos com a Mobilidade Suave que têm o mesmo objeto são referentes a estudos em partes diferentes da cidade.

Sábado

15/7/2021

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