quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

E um hacker matou a nossa ‘inocência’

Perante o falhanço das instituições tradicionais das democracias liberais, hackers como Rui Pinto são um freio à corrupção no mundo digital. É agradável saber que alguém arruinou o sono dos corruptos.

Uma vez mais, um hacker matou a nossa ‘inocência’. Graças a Rui Pinto, ninguém pode agora ignorar, ou fingir que ignora, a origem da fortuna de Isabel dos Santos. Em 2013, Edward Snowden, um fornecedor de serviços da Agência Nacional de Segurança dos EUA, já havia mostrado ao mundo como o Estado americano usava (ou usa) de forma abusiva os nossos dados pessoais. Desde então, deixámos de ter dúvidas de que Estados e empresas têm informação que pensávamos ser nossa, pessoal e intransmissível. Os Panama papers divulgaram informação sobre transacções financeiras que a justiça, serviços tributários e entidades de supervisão aparentemente desconheciam. Violando, amiúde, leis, muitos hackers, com o apoio fundamental dos media, têm funcionado como um mecanismo de checks and balances de combate à corrupção nas democracias liberais.

Rui Pinto pôs fim ao mito da capacidade empreendedora de Isabel dos Santos. Alguns dirão que esse era um segredo de polichinelo. A verdade é que foi a informação divulgada pelo Luanda Leaks que tornou impossível a continuação desta farsa. A despeito dos seus méritos como gestora, Isabel dos Santos gerou e alimentou a sua riqueza na sombra dos privilégios familiares e relações preferenciais com o Estado angolano.

Abundam na história do mundo casos de enriquecimento em resultado de corrupção, apropriação de recursos naturais e de privilégios decorrentes da proximidade ao poder político. Durante muitos anos, grande parte da riqueza acumulada por esses meios era reinvestida no próprio país. No entanto, nas últimas décadas as democracias liberais ocidentais passaram a ocupar um papel central na circulação internacional da riqueza acumulada por cleptocratas. Neste contexto, importa referir o papel pioneiro da Suíça no sistema mundial de lavagem de dinheiro, desde o início do século XX.

Apesar das regras mais apertadas no controlo de capitais, o Ocidente, onde vigoram as democracias liberais e o Estado de direito, tornou-se o porto de abrigo de bilionários, que aí procuram protecção da sua propriedade acumulada ilicitamente e, também, reconhecimento e respeitabilidade social.De facto, a globalização financeira facilitou a circulação de capitais entre as economias emergentes e desenvolvidas. Bilionários de países em desenvolvimento – Angola, Rússia, Nigéria ou China –, com riqueza obtida por processos pouco lícitos e sem a garantia de protecção dos seus direitos de propriedade, deslocam as suas fortunas para paraísos fiscais e para países do Ocidente. Os paraísos fiscais têm sido o foco daqueles que se preocupam com a corrupção e a fuga aos impostos. Porém, uma parte significativa da riqueza extraída dos países em desenvolvimento por muitos dos seus bilionários não é aplicada em off-shores. Muitos preferem outras aplicações ou investimentos, como o mercado imobiliário das grandes capitais europeias – Lisboa é um exemplo – ou as participações empresariais. Dessa forma, paulatinamente, a origem dessa riqueza vai caindo no esquecimento e os seus detentores alcançam uma dignidade e segurança que nunca poderiam alcançar nos seus países de origem.

É paradoxal que estes bilionários, originários de regimes totalitários e cleptocráticos, procurem protecção nas democracias liberais. E é também um sinal do falhanço das instituições do Estado de direito nas democracias liberais.

Os ‘bilionários extratores’ tornaram-se um grande negócio para os países ocidentais. Bancos, gabinetes de advogados, consultoras, o mercado imobiliário têm sido os grandes beneficiários. Em Portugal, onde o capital escasseava, os bancos estavam falidos e o mercado imobiliário de rastos, bilionários como Isabel dos Santos foram uma verdadeira boia de salvação. Foram, por isso, recebidos de braços abertos e de olhos fechados.

No Ocidente, aquelas fortunas continuam a ser uma tentação para muita gente. Pior: os incentivos das instituições e dos poderes instituídos para impedir a entrada de capitais com origem duvidosa são ainda reduzidos. As escassas medidas eficazes de contra o branqueamento de capitais estiveram associadas ao combate ao terrorismo e à violação dos direitos humanos, como aconteceu com o Magnitsky Act, implementado em 2012 nos Estados Unidos.

Estima-se que a Rússia, que criou dezenas de bilionários com as privatizações que se seguiram à implosão da União Soviética, tenha cerca de metade da sua riqueza sediada no estrangeiro. Alguns desses bilionários vivem em cidades como Londres. Os mais exuberantes são proprietários de clubes de futebol. Outros procuram a respeitabilidade através de acções filantrópicas e de obras sociais. Por exemplo, Leonard Blavatnik, armado Cavaleiro de Sua Majestade a Rainha de Inglaterra, associou o seu nome ao Museu Victoria & Albert e a um college em Oxford.

Isabel dos Santos procurou (e ganhou) respeitabilidade, tornando-se acionista de algumas das mais importantes empresas portuguesas. Contou sempre com o apoio dos Governos. Podemos legitimamente questionar a imparcialidade dos processos judiciais em curso em Angola. O país está mergulhado numa crise económica grave e atravessa ainda um processo de mudança de poder. Neste contexto, o processo contra a filha do ex-Presidente poderá ser apenas parte de outro processo: a redistribuição de recursos entre a classe dirigente. Temos de esperar mais para perceber se estamos a assistir ou não à emergência de um Estado de Direito em Angola. Por outro lado, o contraste entre a vida faustosa da família de Isabel dos Santos e a miséria da população angolana já não pode ser ignorada ou mantida na sombra de uma história empresarial de sucesso. O Luanda Leaks trouxe uma nova luz sobre esta realidade, uma luz que não pode ser apagada.

Hoje, com o Luanda Leaks, já não é possível ignorar a origem da riqueza de Isabel dos Santos, nem que, nas últimas décadas, as instituições de Angola foram usadas por um conjunto de oligarcas e cleptocratas para seu enriquecimento pessoal.

Perante o falhanço das instituições tradicionais das democracias liberais, hackers como Rui Pinto são um freio à corrupção neste novo mundo digital. Há hoje, em Portugal e no mundo, corruptos e outros grupos de malfeitores aterrorizados. Não deixa de ser agradável saber que alguém lhes arruinou o sono, uma das torturas mais penosas a que se pode ser submetido. Estas insónias não são um benefício menor das actividades do hacker Rui Pinto.

Fernando Alexandre

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