Ricardo Araújo Pereira
Os mais fervorosos defensores de Jesus, ao que parece, não conhecem Jesus.
Havia aquela música, cantada por um padre: “Um dia uma criança me parou, olhou-me nos meus olhos a sorrir, caneta e papel na sua mão, tarefa escolar para cumprir. E perguntou no meio de um sorriso o que é preciso para ser feliz.” A canção é perturbadora por várias razões.
Primeiro, a criança é muito corajosa. Aborda um padre e olha-o nos olhos a sorrir. É brincar com o fogo. Segundo, a incumbência de tentar descobrir o que é preciso para ser feliz parece uma tarefa escolar determinada por um professor deprimido. No meu tempo, eram redacções sobre a vaca. Mesmo sendo inquietante perceber que o professor tem uma vontade suspeita de ler sobre gado bovino, ainda assim é menos mau do que passar a instrução primária sob a influência de uma pessoa atormentada pela bílis negra. Terceiro, mesmo tratando-se de uma criança, é inverosímil que alguém procure apurar o segredo da felicidade junto de um celibatário. Quarto, a resposta do padre sobre o exemplo de Jesus deve surpreender boa parte dos seguidores de Jesus.
Não inclui os conselhos “assinar petições a exigir a retirada de programas como Jesus assinou”, ou “lançar cocktails molotov como Jesus lançou”. Tenho constatado, aliás, que os mais fervorosos defensores de Jesus, ao que parece, não conhecem Jesus. Às vezes, a ignorância é uma condição necessária para o amor. Essa é, precisamente, a razão da minha baixa auto-estima: quanto mais me conheço, menos me amo. Mas Jesus é, ao que me dizem, ligeiramente mais admirável do que eu, e por isso os que dizem amá-lo ganhariam em conhecê-lo. No entanto, não parecem ter esse interesse. Por exemplo, é frequente ouvirmos cristãos a dizer que não se pode ofender a fé dos outros. O Papa disse exactamente isso na sequência dos atentados ao Charlie Hebdo.
Curiosamente, porém, Jesus ofendia a fé dos outros. Em várias ocasiões, os fariseus ficaram mesmo muito ofendidos com ele. No Novo Testamento, ofender a fé alheia é uma característica de Jesus; punir quem ofende a fé alheia é uma característica dos seus adversários.
Alguns cristãos, no entanto, seguem outro catecismo – e suponho que rezem de outra maneira. “Pai nosso que estais no céu a assistir a programas da Netflix, perdoai as nossas ofensas assim como nós não perdoamos a quem nos tem ofendido, e tanto assim é que desejamos puni-los, seja pela via judicial, seja por meio de ataques terroristas. Ámen.”
(Opinião publicada na VISÃO 1400 de 2 de janeiro)
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