sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

O cão comeu-me o Código Penal

Talvez haja energúmenos que são eternos insatisfeitos, e fiquem desapontados com a dimensão dos hematomas que provocam. Nesse caso, talvez se possa dizer que, de facto, é difícil saber se um agressor, agredindo, cumpriu o propósito de agredir.

Uma das características mais belas do machismo (eis uma observação que não se ouve todos os dias) é a sua profunda inclinação para o igualitarismo. O pensamento machista trata as mulheres como inferiores e os homens como idiotas. São demasiado idiotas para terem crianças a seu cargo, para fazerem o seu próprio almoço, para coserem um botão. Uma sentença de 2017, na ilha do Faial, absolveu um homem que pontapeou e asfixiou a mulher porque o juiz considerou que o réu não teve intenção de agredir. É desafiante tentar reconstituir o raciocínio do juiz. O acórdão diz: “Resultou provado que apertou o pescoço, puxou os cabelos e desferiu pontapés em Cátia, que lhe provocou traumatismos. Porém, não se apurou que esse tenha sido o seu intencional propósito, nem que o tenha conseguido.” Há aqui problemas filosóficos interessantes. Qual será a intenção de uma pessoa que agride? Assistir a um combate de boxe na companhia deste juiz deve ser uma experiência inesquecível. “Muhammad Ali acabou de deixar o seu adversário inconsciente com um soco, mas não sei qual seria a sua intenção. É curioso. Este homem é campeão do mundo sem querer. Que sorte.” Imagino que os pais, se usavam os mesmos métodos educativos da minha avó, tenham tido alguma dificuldade em fazer-se entender. Acredito que o juiz, em criança, pensasse para si: “A minha mãe deu-me umas chineladas no rabo na sequência de eu ter partido dois candeeiros com uma bola de futebol. Qual seria a intenção dela? Que progenitora tão misteriosa me havia de calhar.”

Outro problema é o de saber – como o juiz pergunta, e bem – se uma pessoa, mesmo tendo intenção de agredir, consegue o seu propósito só porque aperta o pescoço, puxa cabelos, desfere pontapés e provoca traumatismos. Tinha a intenção de agredir e agrediu. Mas, se for um perfeccionista, talvez não tenha ficado satisfeito com as agressões perpetradas. Talvez haja energúmenos que são eternos insatisfeitos, e fiquem desapontados com a dimensão dos hematomas que provocam. Nesse caso, talvez se possa dizer que, de facto, é difícil saber se um agressor, agredindo, cumpriu o propósito de agredir. Até porque, de acordo com o ideário machista, um homem nem sempre é responsável pelas suas atitudes. Ou quase nunca. Acontece o mesmo com seres do tipo do homem, tais como orangotangos, por exemplo. Às vezes fazem umas asneiras, mas quem é que pode garantir qual era a intenção do símio?

(Opinião publicada na VISÃO 1402 de 16 de Janeiro)


Ricardo Araújo Pereira

Boca do Inferno

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