domingo, 19 de maio de 2019

Cena da Taberna

Fernando Pessoa

              

Doutor Fausto?

                FAUSTO:

Sim.

—  O Doutor Fausto?

                FAUSTO: 

O Doutor Fausto, sim: o que há em sê-lo?

— Nada, confesso-o a rir e acreditara-o

Pois o não vira, mas de vós diziam

Serdes versado em artes e matérias

Do mágico e (…) horror (…)

A rir o digo que vos vejo aqui

Entre nós e bebendo como nós.

                FAUSTO: 

Sim, assim é; quem como eu vivia

Aparte logra sempre a negra fama

De bruxo… Há em mim cousa que mostre

Conhecimento d'artes vis e negras

Ou sacerdócio escuro de Satan?

— Nada; olhando bem em vós só vejo

Algo de triste que não é tristeza

No vosso rosto e no vosso olhar

Há uma causa a menos ou a mais

Que em outro... Isto vejo, ou me parece.

Perguntastes-me e rindo respondi.

                FAUSTO:

Agradeço-vos; traçastes-me retrato

Tão completo de bruxo

Que começo a ter medo de mim mesmo.

— Canta, oh Frederico

Aquela canção doida de beber

Chamada «O Bebedor» ou coisa assim.

                FRED:

A do «Bom Bebedor».

                OUTRO:

                                        É essa mesmo.

                TODOS:

Venha, venha a canção.

                FRED:

Lá vai amigos

                                (e depois)

E oxalá que, ao cantá-la, esquecer possa

Ou antes, não lembrar onde a aprendi.

Criança então era feliz. Lá vai:

Bom bebedor, bebe-me bem

Bebe-me, bom bebedor.

Só uma cousa boa esta vida tem

É o vinho: mira-lh’ a cor!

                CORO

A vida é um dia e a morte um horror

Bebe-me, bebe-me, bom bebedor.

Que morra de fome mulher e mãe

Haja vinho, que é o melhor!

                CORO

A vida é um dia e a morte um horror

Bebe-me, bebe-me bom bebedor.

Deixe a guela o vinho lá quando vem

Em lugar dele o estertor.

                CORO

A vida é um dia e a morte um horror

Bebe-me, bebe-me bom bebedor.

A vida sem vinho é um triste horror

Bebe-me, bebe-me bom bebedor.

O, leite, da parra é melhor que o amor

Bebe-me, bebe-me bom bebedor

                CORO

Bom bebedor bebe-lhe bem

Bebe-lhe bom bebedor

Que faz que a mulher ande à gandaia

E a filha seja pior

E a puta da neta levante a saia

Até ao quintal do prior?

O vinho é o mesmo e da mesma cor

Bebe-lhe, bebe-lhe, bom bebedor

                CORO

Bom bebedor, bebe-lhe bem

Bebe-lhe bom bebedor.

Bom bebedor, bebe-lhe rijo

Bom bebedor, bebe-lhe bem;

O vinho que dá? Alegria e mijo,

E a vida não vale melhor

E se a vida é isto e a cova um horror

Bebe-lhe, bebe-lhe, bom bebedor.

                TODOS:

Bravo! Bravo!

                FAUSTO:(saudando)

A quem escreveu essa canção.

Não foi o camarada?

                FRED:

                                        Versos, eu?

Nada aprendi-a, e há o tempo. É pouca coisa,

Uma maneira qualquer de berrar.

                FAUSTO:

Eu sinto-me irrequieto.

                FRED:

                                            Isso é do vinho!

                FAUSTO:

Do vinho?

                FRED:

                Olá se é. A uns dá-lhe assim

A outros doutra maneira. Isso é confuso.

Um velho tio meu que não fazia

Senão beber...

                OUTRO:

                                Fazia bem...

               FRED:

                                                   Pois esse

Dizia ser indício de saúde

Dar o vinho p'ra bulhas e contendas

«Estar irrequieto» como este lhe chama.

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.  - 139.

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