quinta-feira, 16 de maio de 2019

Documento mostra o que os bancos exigem a Berardo (e o que Berardo não pagou)

O Observador teve acesso à acção posta a Berardo pela CGD, BCP e Novo Banco. Conclusão: de 864 milhões que a banca lhe emprestou, só pagou 2,2 milhões entre 2012 e 2019. Conheça todos os detalhes.

  1. O objectivo da acção: ficar com as obras de arte da colecção Berardo
  2. Como surgiu a dívida de Berardo
  3. O reforço das garantias: o penhor da colecção Berardo
  4. De que vale o penhor?
  5. O acordo de que os bancos também precisavam
  6. A denúncia da dívida

Os bancos deram várias hipóteses a Joe Berardo para pagar as suas dívidas — mas de pouco ou nada serviram. O Observador teve acesso à acção contra Berardo apresentada no Juízo de Execução de Lisboa pela Caixa Geral de Depósitos, BCP e Novo Banco e, segundo o documento, o empresário apenas pagou a dois destes bancos (o BCP e o Novo Banco) 2,3 milhões de euros. Tendo em conta que o total de capital emprestado pelos três bancos é de cerca de 864 milhões, conclui-se que o valor amortizado pelo empresário entre 2012 e 2019 corresponde a apenas 0,2% do capital em dívida.

À Caixa, a Fundação José Berardo, a entidade selecionada pelo empresário madeirense para pedir formalmente uma boa parte dos empréstimos que estão em causa e que terão servido para comprar ações na altura da guerra pelo poder no BCP, não amortizou sequer um euro do capital que pediu emprestado. Em 2012, a dívida à CGD era de cerca de 265,9 milhões de euros — e passados sete anos assim continua.

Nestes sete anos (2012-2019), apenas a CGD e o Novo Banco assumem que houve incumprimento por parte de Berardo. Mas a ação conjunta de execução sumária – no valor de 962 milhões (962.162.180,21 euros, para ser mais concreto) — foi subscrita não só por estes dois, como também pelo BCP. Este banco juntou-se à ação não por ter registado incumprimento de Berardo, mas por ter uma cláusula contratual que lhe permitia fazer o mesmo que o Novo Banco e a CGD, se estes denunciassem o incumprimento do empresário.

Só o valor total dos juros de mora ascende a cerca de 123,7 milhões de euros, enquanto os juros remuneratórios vencidos totalizam cerca de 13,2 milhões — valores que reforçam o contexto de incumprimento que rodeou a relação de Joe Berardo com aqueles dois bancos.

Mas o valor não vai ficar por aqui. Os três bancos requerem na sua ação que o tribunal decrete o pagamento de juros de mora de 7,5% desde o 13 de abril de 2019 “até ao efetivo e integral pagamento” dos créditos em incumprimento, lê-se no texto da ação.

O objetivo da ação: ficar com as obras de arte da coleção Berardo

Na ação de execução que visa Joe Berardo, a FJB — Fundação José Berardo (o devedor formal da maior parte dos empréstimos) —, a sociedade Moagens Associadas, SA, a Metalgest (uma das holdings do universo Berardo) e a Associação Coleção Berardo (ACB), os três bancos pretendem, como o Jornal Económico avançou no dia 10 de maio, ficar com 100% dos títulos que Berardo e aquelas entidades por si dominadas detêm na ACB. É esta a entidade dona dos quadros e restantes obras de arte da Coleção Berardo, em exposição no Museu Berardo, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

Do ponto de vista prático, e apesar de tal objetivo não ser assumido na ação apresentada, os bancos querem ficar com a Coleção Berardo para revenderem as 861 obras que fazem parte da coleção a preços de mercado e gerarem liquidez para limparem as dívidas do universo Berardo do seu balanço. É um plano que, como todos, pode ser falível, visto que o acervo de arte do comendador foi avaliado pela leiloeira Christie’s em 2006 em cerca de 316 milhões de euros — valor muito abaixo do valor total em dívida. Numa segunda avaliação encomendada por Joe Berardo em 2009, o valor subiu para 500 milhões de euros — mesmo assim, pouco menos de metade do valor total da dívida.

Contudo, a Caixa e o BCP assumem na ação que a execução do penhor constituído a seu favor sobre os títulos da ACB “garante o cumprimento da totalidade das obrigações contraídas pela Fundação José Berardo perante cada uma das instituições financeiras”. Mas, nas contas de 2017, aquela associação apresentava um buraco financeiro de 517 milhões de euros. Só o Novo Banco, que apenas aceitou reestruturar dois dos vários financiamentos contratualizados com o madeirense, diz que a execução do penhor cobrirá 94,44% da dívida em incumprimento.

Como surgiu a dívida de Berardo

Estávamos em 2007 e o BCP era o centro de uma guerra entre quem estava no poder (Paulo Teixeira Pinto) e o grupo encabeçado pelo líder histórico Jardim Gonçalves (que tinha passado o testemunho ao delfim Teixeira Pinto). Joe Berardo, madeirense como a família Jardim Gonçalves, tomou partido por Teixeira Pinto. Mas, para ser um aliado de facto, precisava de reforçar a sua participação no capital do então maior banco privado português. E é aqui que nasce a história da dívida astronómica de Berardo.

O banco do Estado, então gerido pela dupla Carlos Santos Ferreira/Armando Vara, nomeada pelo Governo de José Sócrates, foi um dos principais financiadores de Joe Berardo. O Banco Espírito Santo, de Ricardo Salgado, viu também ali uma boa hipótese de financiar uma guerra no seu principal rival direto.

Foi assim que a administração de Carlos Santos Ferreira aprovou uma abertura de crédito em conta corrente no valor de 350 milhões de euros que, de acordo com o texto da ação apresentada a 20 de abril de 2019, tem apenas uma “promessa de penhor”, sem especificar o objeto, contratualizada a 28 de maio de 2007. Este penhor, indica a mais recente auditoria da EY aos atos de gestão da Caixa, dizem respeito às ações do BCP em que Berardo investiu com o dinheiro da Caixa (com uma taxa de cobertura de 105%).

Um pouco menos de um ano depois, esse crédito foi reforçado com um segundo no valor de 38 milhões de euros, mas com o penhor das ações do BCP como garantia. Total: 388 milhões de euros

Já o BES fez três operações com Berardo com o mesmo objetivo:

  • 200 milhões de euros através de uma abertura de crédito em conta corrente celebrada no dia 12 de outubro de 2007;
  • Cerca de 41,2 milhões euros através de um contrato de financiamento formalizado a 2 de julho de 2008;
  • “Operação de equity swap que tem ativo subjacente de 29.710.526 ações representativas do capital do BCP que foi contratualizada a 28 de junho de 2007 e renovada em 27 de junho de 2008″ — sem valor especificado.

Portanto, em pouco mais de um ano a Caixa e o BES entregaram a Berardo um total de 629,2 milhões de euros — fora o valor do equityswap (contrato de partilha de retornos futuros) acordado com o BES — para participar na guerra do BCP.

O BCP, então liderado por Paulo Teixeira Pinto, tem um relacionamento de alguns anos com o empresário madeirense e limitou-se a aproveitar instrumentos de crédito anteriormente abertos em nome da Fundação Berardo para financiar o comendador:

  • 350 milhões de euros — abertura de crédito em conta corrente celebrado a 1 de junho de 2005, alterado em 3 de julho de 2006 e a 27 de novembro de 2007;
  • 45 milhões de euros — autorização de saque a descoberto de conta da Fundação José Berardo;
  • 1 milhão e 700 mil euros — abertura de crédito em conta corrente até um máximo de 1,7 milhões de euros celebrado em 15 de fevereiro de 2005 e alterado em 31 de julho de 2006.

No auge da guerra do BCP – ou “assalto ao BCP”, como ficou conhecido o caso que marcou a economia nacional entre 2007 e 2008 – o banco tinha uma exposição a um dos protagonistas desse conflito na ordem dos 346,7 milhões de euros.

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O reforço das garantias: o penhor da coleção Berardo

Já depois da explosão da crise do subprime nos Estados Unidos e da queda do Lehman Brothers em Nova Iorque, mas antes da chegada da troika a Portugal, os três bancos exigiram o reforço das garantias a Joe Berardo. É a 15 de julho de 2010 que, em cumprimento da promessa de penhor anteriormente subscrito, é assinado um contrato de penhor entre Joe Berardo e a Metalgest, de um lado, e a CGD, o BCP e o então BES, do outro lado.

Esse contrato visou aumentar o penhor de 75% para a totalidade dos títulos da Associação Coleção Berardo (ACB). “Com a celebração deste contrato, o penhor, de primeiro grau, constituído a favor dos bancos exequentes, em garantia de todas e de cada uma das Obrigações Garantidas, passou a incidir sobre 100% dos títulos de participação da ACB, incluindo os respetivos direitos”, lê-se no texto da ação a que o Observador teve acesso.

Assim, os bancos repartiram o penhor sobre os títulos da entidade que detinha a Coleção Berardo na seguinte proporção:

  • CGD — 40%
  • BCP — 40%
  • BES — 20%

A ACB foi notificada desse penhor e o mesmo foi “devidamente inscrito no Livro de Registo de Emissão de Títulos Patrimoniais” daquela associação.

De que vale o penhor?

O penhor aos títulos da ACB, contudo, é uma história mais profunda do que aquela que a advogada dos três bancos optou por contar na ação de execução. Aliás, durante a audição de Joe Berardo no Parlamento, na última sexta-feira, este foi um tema muito discutido.

Não está ainda claro, para os deputados da comissão parlamentar de inquérito à CGD, quando é que a Caixa (e, por arrasto, os restantes bancos) se apercebeu que os títulos de participação na ACB obtidos no penhor de 2009 não lhe dariam capacidade de aceder e controlar as obras de arte da coleção de arte. Nem se algum parecer jurídico no momento do acordo original de penhor lançava algum alerta sobre o assunto.

Os bancos terão percebido que andavam em cima da navalha no início de 2016. A poucos meses de Berardo e o seu inseparável advogado, André Luiz Gomes, assinarem a renovação do acordo com o Estado para a cedência das obras de arte (o que também não ajuda, mas já lá vamos) começaram a surgir estranhas manobras na ACB.

Em 22 de abril desse ano, realizou-se uma Assembleia Geral da ACB. Até aqui nada de estranho, não fosse o caso de os bancos credores de Joe Berardo (em rigor, credores da Fundação José Berardo e da Metalgest, além de detentores de um penhor sobre os títulos da associação) não estarem presentes. Os próprios explicam porque é que faltaram à chamada: não tinham sido convocados, pelo que a reunião da AG, que servia nada menos do que para alterar os estatutos da associação, se realizou “à sua revelia”.

À revelia dos credores pignoratícios [em termos simples, os detentores do penhor] — a saber: a Caixa Geral de Depósitos, SA, o Banco Comercial Português, S.A. e o Novo Banco, S.A, detentores de 100% dos direitos de voto da Associação Coleção Berardo — os Associados da mesma Associação Coleção Berardo reuniram e deliberaram, em 22 de abril de 2016, a alteração parcial dos estatutos da Associação.”

Os deputados da comissão parlamentar de inquérito questionaram Berardo sobre esta matéria e as respostas primeiro foram evasivas e depois desafiadoras.

Deputada Cecília Meireles (CDS-PP)– Em abril de 2016 fez uma alteração dos estatutos à revelia dos credores pignoratícios. Sem eles saberem…

Berardo – Quem vem [à AG], vem…

CM – Foram convocados por quem e de que modo?

Berardo – Era uma alteração aos estatutos que foi feita pelo tribunal (…) Foi feita por nós. (…) Mas para essa eles não foram convocados.

CM – Qual foi o objetivo da alteração dos estatutos?

Berardo – Foi por uma ordem judicial. Depois aproveitamos para fazer um aumento de capital. Eles tentaram fazer uma AG e também não nos convocaram. Nós também fizemos uma, mas fomos ao tribunal primeiro.

Apesar de Berardo se escudar numa “ordem judicial” – que não consegue precisar qual é – o que os associados da ACB fizeram em maio foi alterar alguns estatutos da associação para, na prática, bloquear a capacidade de os bancos credores virem a mexer nas obras de arte.

Como? Alterando desde logo o número 5 do artigo 11. Seguem-se as várias versões deste artigo, para que se perceba o que Berardo tentou fazer, foi contrariado, mas acabou por levar avante. A formulação original dos estatutos era esta, tal como consta de ato societário da ACB de 2014:

“5. A transmissão inter vivos e mortis causa dos títulos de participação — e, com ela, a transmissão de correspondente posição de associado — bem como a sua oneração, designadamente através da constituição de penhor, é livre”. Fixemos a palavra livre.

Em abril de 2016, Berardo mexe-se para aprovar uma alteração aos estatutos, numa AG para a qual os bancos credores não foram convocados. Um dos pontos principais é precisamente o número 5 do artigo 11, que passa a ter a seguinte redação:

“5. A transmissão inter vivos a qualquer título e mortis causa está sujeita a consentimento a prestar pela assembleia geral, sem direito de voto dos títulos patrimoniais a transmitir, no prazo de 90 dias contados da intenção de transmissão ou ou morte do de cujus. Em caso de transmissão não autorizada, os títulos patrimoniais transmitidos perdem o direito de voto (…)”.

O que quer isto dizer? Quer dizer que os bancos credores e detentores do penhor sobre os títulos de participação na ACB passavam a depender da assembleia geral da associação (cuja composição na íntegra Joe Berardo diz que não se recorda) para tudo. Berardo até o explicou na audição de sexta-feira: “[Significa que] não podem ser transferidos os títulos para terceiros sem coordenarem connosco”. Só podem vender, “desde que a gente concorde”.

Há mais, como podemos perceber olhando para o número 6 do mesmo artigo 11 . “Os associados instituidores [entre os quais se inclui Joe Berardo e a sua Fundação] não perdem a respetiva qualidade por transmissão da totalidade dos seus títulos de participação se assim for decidido pelo presidente da associação [que é Joe Berardo enquanto for vivo e passa hereditariamente aos seus descendentes] aquando do conhecimento da transmissão”. Tradução: Joe Berardo mantém intactos os seus direitos de veto sobre as opções da ACB mesmo tendo passado aos bancos os seus títulos.

Ainda piora mais. Se os estatutos dizem que cada título de participação (obtido através de uma contribuição de 250 euros) vale um voto, Joe Berardo criou uma forma de poder dispor dos votos a seu favor. Como? Basta olhar para o número 7 do mesmo artigo 11. “Não obstante o disposto no número três antecedente [que institui a regra de um título de participação por cada 250 euros] poderá o presidente da associação conferir privilégios no uso de parte dos bens da associação aos seus instituidores”.

E isto é muito diferente do que existia? Totalmente, já que os estatutos originais, especialmente no número 7 original, referiam o seguinte: “No caso dos títulos de participação serem onerados, designadamente através de penhor, é permitido ao respetivo titular conferir, durante o período de vigência do ónus, o direito de voto ao beneficiário do ónus”.

Para finalizar: Berardo alterou a formulação para a constituição da assembleia geral e a respetiva convocatória para a mesma, como podemos perceber a seguir.

O artigo original nos estatutos (portanto, desde 2008) diz que “a AG é constituída pelos associados instituidores que não renunciarem a essa qualidade e por todos os demais titulares dos direitos de voto, incluindo os credores pignoratícios [bancos credores de Berardo, detentores de um penhor] para quem esses direitos tenham sido transmitidos”.

Ora, Berardo fez aprovar uma nova formulação em 2016: “A assembleia é constituída pelos associados instituidores e titulares de títulos de participação com direito de voto”. Logo aqui desaparece a menção aos credores. E o aviso da realização da AG passa a ser feito apenas para os “associados constantes dos registos da associação”, quando originalmente era obrigatório avisar “os titulares dos títulos de participação e os credores pignoratícios”. Fecha-se o círculo.

Na prática, estas alteração esvaziavam o penhor dado, pondo a salvo – em definitivo – as obras de arte de uma execução bancária. Com mais de 315 milhões de euros em causa (o valor da coleção), os bancos fizeram o mesmo (como Berardo confirmou na audição). Invocaram os direitos especiais como associados credores e realizaram mesmo uma AG própria, em Outubro de 2016, na qual alteraram os estatutos que lhes retiravam poder real na ACB.

“Em consequência, e porque munidos da titularidade de 100% dos direitos de voto da Associação, quer diretamente na qualidade de credores pignoratícios, quer indiretamente, no uso de poderes conferidos pelos Associados, foi deliberado, em reunião da Assembleia Geral de 4 de outubro de 2016, reverter a alteração de estatutos efetuada pela já mencionada escritura pública lavrada em 6 de maio de 2016”. Esta alteração visava “repor em vigor, substancialmente, a anterior redação dos estatutos”.

Treze dias depois, Berardo alterava novamente, pela quarta vez nesse ano, os estatutos da Associação. Voltando tudo ao mesmo. Com esta explicação percebe-se melhor as perguntas dos deputados na audição de Berardo e, sobretudo, as respostas do comendador.

Deputada Mariana Mortágua (Bloco de Esquerda)– Os bancos como credores em penhor têm lugar com direito de voto na AG?

Berardo – Não. Não. (…) Se eles não exercerem os seus direitos, não é minha culpa. (…) Até hoje nunca estiveram lá. (…) Pode ter o direito de ir lá, para ser administrador ou isso, mas se não se apresenta não sou mãe deles.

MM – Mas têm lugar?

Berardo – Os estatutos previam que eles podiam exercer esse direito.

MM – Se os credores executarem a associação ficam com maioria dos votos na associação, ou não?

Berardo – Eu não sei. (…) Ainda não executaram, quando o fizerem depois vê-se. Whatever, eles que façam esse trabalho.

MM – Ficam com a maioria dos direitos de voto ou não?

Berardo – Só quando eles vierem para executar os direitos que têm, então é que se vê.

MM – Os credores neste momento têm ou não maioria na AG?

Berardo – Se não exerceram ainda não têm.

MM – Têm direito ou não? E com isso a maioria dos votos?

Berardo – Está a ir a um ponto muito sensível que é: eles pensam que têm a maioria mas não têm.

MM – Houve emissão de novos títulos desde que foi dado o penhor?

Berardo – Sim, houve aumentos de capital.

MM – Portanto a posição dos bancos foi diluída.

Berardo – Não era diluída se eles tivessem ido ao aumento de capital. (…) Eles não quiseram aumentar o capital, o problema é deles.

MM – Foi dado um golpe, portanto.

Berardo – Golpe é as pessoas que estão a dirigir estas instituições não sabem o que fazem.

O acordo de que os bancos também precisavam

Face a novos incumprimentos e com o agudizar da crise económica em Portugal, as dívidas do Universo Berardo começaram a pressionar de forma intensa o balanço dos bancos. A troika está muito atenta ao elevado endividamento do setor público mas também do setor privado e tem dúvidas sobre a solidez da banca nacional.

É neste contexto, e para impedirem que as imparidades passassem a perdas definitivas, que os três bancos negoceiam um Acordo Quadro com Joe Berardo. O acordo assinado a 16 de março de 2012 estipulava o seguinte:

  • Verificou-se uma reestruturação global dos créditos concedidos pela Caixa, BCP e BES às entidades ligadas a Joe Berardo, sendo recalendarizados os pagamentos de juros e reembolso de capital. Do texto da ação de execução não consta qualquer perdão de dívida por parte dos bancos a Berardo;
  • O prazo dos financiamentos passou a ser de 7 anos contados a partir da data da celebração do acordo;
  • O reembolso do capital ocorreria em duas fases: 30% no final do sexto ano e os remanescentes 70% no termo do prazo;
  • A primeira prestação de juros teria lugar no final do 18.º mês, sendo a partir daí, os juros liquidados semestralmente de acordo com as taxas ali fixadas”, lê-se no texto da ação.

O BCP e o BES aproveitaram este Acordo Quadro para juntarem créditos mais antigos de Joe Berardo no processo de reestruturação. Assim, o retrato das dívidas do Universo Berardo era o seguinte à data de março de 2012:

a) Caixa Geral de Depósitos:

  • 265,9 milhões de euros — montante de capital em dívida da abertura de crédito em conta corrente de 350 milhões de euros contratualizada em 28 de maio de 2007 com promessa de penhor [sobre as ações do BCP], posteriormente alterado em 20 de abril de 2010.
  • 38 milhões de euros — abertura de crédito em conta corrente com penhor de ações contratualizada em 29 de abril de 2008 que, por efeito da capitalização de juros, ascende a 39.155.636, 45 euros.

Isto é, Joe Berardo amortizou cerca de 84,1 milhões de euros dos créditos concedidos pela Caixa em 2007 e em 2008.

Total da dívida à Caixa: 305.132.843 euros

b) Banco Espírito Santo (BES)

  • 19.850.050, 12 euros — descoberto autorizado formalizado através de contrato de financiamento com data de 3 de agosto de 2011;
  • 221,2 milhões de euros –  abertura de crédito em conta corrente celebrado no dia 12 de outubro de 2007 e posteriormente aletrado;
  • 43.076.227, 61 euros – contrato de financiamento formalizado a 2 de julho de 2008 e posteriormente aditado
  • 15.549.203, 34 euros — contrato de abertura de crédito em conta corrente celebrado no dia 9 de dezembro de 1997

O BES foi o único banco que, além de não ter visto o seu cliente Joe Berardo reduzir o capital em dívida, ainda aumentou a sua exposição ao empresário madeirense com um descoberto de cerca de 19,5 milhões de euros. O total da dívida ao banco da família Espírito Santo que Joe Berardo reconheceu no Acordo Quadro ascende a um total de cerca de 299,6 milhões de euros — isto é, mais cerca de 60 milhões de euros do que em 2007. Se retirarmos o crédito de 1997, que também foi reestruturado, estão em causa mais 44,5 milhões de euros. Contudo, a reestruturação do BES só envolveu os créditos mais antigos, ficando de fora o crédito de 19,8 milhões de euros de 2011.

c) Banco Comercial Português (BCP)

  • 234 milhões de euros — abertura de crédito em nome da Fundação José Berardo (FJB) celebrado em junho de 2005;
  • 450 mil euros — abertura de crédito em conta corrente celebrado em 15 de fevereiro de 2005 e alterado em 31 de julho de 2006,
  • 45 milhões de euros — autorização de saque a descoberto de conta da FJB celebrado em 21 de abril de 1998;

No caso do BCP, Berardo amortizou cerca de 116 milhões de euros de capital em dívida entre 2005 e 2012.

Esta era uma espécie de última hipótese para Joe Berardo pagar as dívidas à Caixa, BES e BCP mas também não iria correr bem.

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A denúncia da dívida

Na perspetiva dos bancos, os incumprimentos das entidades de Joe Berardo tornaram-se recorrentes. No caso da Caixa Geral de Depósitos, a Fundação José Berardo “não cumpriu as suas obrigações a que se vinculou, não tendo nomeadamente procedido ao pagamento em 15 de setembro de 2016 e 15 de março de 2017”, lê-se na ação de execução interposta.

Por isso mesmo, a CGD declarou integralmente vencida e imediatamente exigível a totalidade da dívida, interpelando a FJB à sua liquidação a 24 de março de 2017.

De acordo com o ponto da situação feito pela Caixa a 12 de abril de 2019 — oito dias antes da apresentação da ação de execução no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa –, o Universo Berardo devia ao banco público um total de 357.063.395, 19 euros — ou seja, mais cerca de 51,9 milhões de euros do que em 2012. Porquê? A resposta resume-se aos incumprimentos e aos juros de mora que, a partir daí, foram gerados.

No principal contrato em dívida, o valor global era de cerca de 311,2 milhões de euros, sendo que estava assim dividido:

  • 265.9 milhões de euros de capital em dívida — exatamente o mesmo valor de 2012 quando foi assinado o Acordo Quadro;
  • Cerca de 5 milhões de euros de juros remuneratórios vencidos;
  • Cerca de 40,1 milhões de euros de juros de mora;
  • E cerca de 24,7 mil euros de comissões.

A segunda parcela da dívida dizia respeito a 45,8 milhões de euros assim divididos:

  • 39.155.636 euros de capital em dívida (o mesmo valor que em 2012);
  • Cerca de 745 mil euros de juros remuneratórios vencidos;
  • Cerca de 5,9 milhões de euros de juros de mora;
  • Cerca de 3,6 mil euros de comissões.

Já no caso do Novo Banco (que assumiu a posição contratual do BES com a resolução determinada pelo Banco de Portugal), a Fundação José Berardo “só pagou 186.004, 78 euros por conta” da primeira prestação de juros que se venceu em setembro de 2013: 37.610, 45 euros na data do respetivo vencimento e mais 148.394, 33 euros depois dessa data. O valor remanescente da prestação (cerca de 2,6 milhões de euros) entrou em mora, quantia que se mantém em dívida.

A 12 de abril de 2019, a dívida de Berardo ao Novo Banco totalizava cerca de 327,7 milhões de euros — mais cerca de 47,9 milhões de euros do que em 2012.

  • 279, 6 milhões de euros de capital em dívida — a 16 de março de 2012 o capital em dívida era de 299,6 milhões de euros ;
  • 5,8 milhões de euros de juros remuneratórios vencidos;
  • 42,2 milhões de euros de juros de mora.

A explicação para a diferença do capital em dívida não tem nada a ver com nenhuma amortização. Simplesmente, o Novo Banco só aceitou reestruturar três dos quatro créditos em dívida — ficou de fora um crédito a descoberto aprovado em 2011 precisamente no valor de cerca 20 milhões de euros.

O BCP tinha um acordo muito semelhante ao do Novo Banco, com reembolsos do capital na mesma proporção (30%/70%) e nas mesmas datas. Na realidade, o banco fundado por Jardim Gonçalves é o único que não tem razões de queixa no que diz respeito a incumprimentos após a assinatura do Acordo Quadro.

Contudo, uma cláusula contratual permitia ao banco que Berardo tentou dominar “considerar automaticamente vencidas as dívidas da Fundação José Berardo” (FJB), no caso de ser decretado o “vencimento de qualquer financiamento bancário em que a FJB fosse mutuária”. Como a CGD e o Novo Banco avançaram nesse sentido em março de 2017, o BCP fez o mesmo.

A 12 de abril de 2019, a dívida ao BCP do Universo Berardo totalizava 277.341.842, 42 euros. Isto é, menos 2,1 milhões de euros do que em 2012. A dívida estava assim dividida:

  • Cerca de 240 milhões de euros de capital em dívida;
  • Cerca de 1,7 milhões de euros de juros remuneratórios vencidos;
  • Cerca de 35, 5 milhões de euros de juros de mora

Resumindo e concluindo: entre 2012 e 2019, Joe Berardo amortizou 2,1 milhões de euros do capital em dívida ao BCP e pagou juros ao BES no valor total de 186 mil euros, segundo a ação de execução.

O valor da ação de execução que a Caixa Geral de Depósitos, BCP e Novo Banco interpuseram em abril contra Joe Berardo e as suas empresas tem um valor de 962,1 milhões de euros, mas na realidade o valor que Berardo terá de pagar será significativamente superior. Tudo por causa dos juros de mora de 7,5% que os bancos requereram ao Tribunal de Execução de Lisboa que comecem a ser contados a partir do dia 13 de abril de 2019 e até ao pagamento integral das dívidas.  Luis Rosa e Nuno Vinha – Observador

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