Não pensem que são apenas os industriais da restauração e os taxistas. Nós (ou eu) os sábios também ficamos prejudicados.
A que horas tinham o Isaac ou o Albert a sua maior criatividade? Não sabeis a quem me refiro, claro. Vou colocar a pergunta mais simples: a que horas Newton e Einstein tinham mais criatividade? A resposta é não sabem, certo? Pois, o vosso problema é não estudardes afincadamente os hábitos dos sábios. Eu também não sei a que horas eram mais produtivos, mas posso dizer, por experiência própria, quais as melhores horas para qualquer intelectual de elevada craveira: entre as 23 horas e as cinco da madrugada aos dias úteis, e depois das 13 até às cinco da madrugada nos fins de semana.
Não pensem que foi por acaso que o Governo liderado por Marcelo e Costa escolheram estes períodos como recolher obrigatório. A ideia é que ninguém possa ser mais inteligente, e produzir mais intelectualmente, do que eles. É uma ideia mesquinha e até pouco inteligente, mas para mal dos nossos pecados, foi a que tiveram.
Se recolherem todos os génios (ou eu) àquelas horas indicadas, ainda por cima os recolherem obrigatoriamente, é mais do que evidente que ficamos sem modo de ser criativos, inventivos, disruptores, interruptores, geniais. Quedamo-nos, que é como quem diz caímos, na mais abjeta das trivialidades. Passamos a fazer poemas como o Manuel Alegre, livros como o Gonçalo M. Tavares, pinturas como a Paula Rego. Mas não esperem um ensaio com a profundidade de um Reboredo, um romance histórico em verso do calibre de um Tomás Ribeiro ou um libelo com a virulência de um José Agostinho de Macedo. Talvez consigam um Dantas, quando muito um Soeiro Pereira Gomes, mas nada mais do que isso.
Aqueles que têm o talento e a verve necessários à obra-prima (ou mesmo tia), imorredoira, imortal, inextinguível, indelével, é nas horas de pouco tráfico que a produzem. Não esperem um poeta Chiado a dizer uns versos, que ninguém conhece, no meio de um engarrafamento da Avenida da Liberdade, ou mesmo do Largo de Camões, que é mais perto. O próprio Fernando Pessoa, que escreveu “absinto que só produzo lá para as três da manhã”, disse do poeta cuja estátua está em frente da sua mesa na Brasileira do Chiado:
“O Chiado sabe-me a açorda.
Corro ao fluir do Tejo lá em baixo.
Mas nem ali há universo.
E o tédio persiste como uma mão regando no escuro.”
A que horas acham que isto foi escrito? Depois do jantar, às 10 da noite? Antes do pequeno-almoço, às sete da manhã? Numa alvorada de sábado? Não pode ser, tudo isto apenas faz sentido entre as três e meia e as quatro e um quarto da manhã; e se estivermos de pijama, à chuva, no meio da Rua Morais Soares (no Porto pode ser a da Constituição, em Coimbra a da Sofia, e em qualquer outra cidade numa rotunda).
Por isso, amigos taxistas, amigos hoteleiros, amigos comerciantes e amigos da restauração (que já têm um importante largo em Lisboa, os restauradores), não é só a vós que o recolher obrigatório afeta. Eu que, por junto, valho mais PIB que cada um de vós por metade, posso afirmar que este recolher obrigatório me prejudica o negócio, e de que maneira! Por causa dele, e só nestes 15 dias, perdi um best-seller que não escrevi; um argumento para Hollywood, e uma série de cartas que costumo escrever a desoras, justamente aquelas em que o Governo do Prof. Marcelo e do Dr. Costa nos mandaram recolher.
Além do mais, penso que os três F que definiam Portugal ficam definitivamente mortos. Fátima, aqui representada na fé católica, fica sem as missas do meio-dia de domingo, as mais concorridas. Se o fiel tem de estar em casa à uma e mora a mais de 100 metros da Igreja, o padre tem de dar a missa em passo de corrida; de tal forma que quem quer rezar o terço antes da Eucaristia, tem de rezar apenas 1/6 e o Pai-Nosso tem de ser dito à velocidade de uma criança de 10 anos quando é obrigada pela avó. O Fado, já se viu que é sempre ‘meia noite e uma guitarra’ e nunca compatível com estar no recolhimento às 23 horas. O Futebol é a mesma coisa, embora a cabisbaixice da nação benfiquista contribua, e bem, para a causa do estar em casa cedo. Quem ganha com isto são os militares, que já tinham o toque de recolher à caserna antes da 23h; os devotos e eremitas, que passam a vida recolhidos, e os totós. Já quem se dedica a uma vida de criatividade e pulsão artística, com ou sem cocaína, fica numa posição insustentável. Não sei que Portugal teremos depois de a mediocridade se instalar.
Comendador Marques de Correia
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