quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Os feirantes e o ‘recuo’ do Governo

A linguagem militar, diria bélica, ou se preferirem desportiva, ou de confronto, entrou há muito no léxico político. Mas o que era excepção tornou-se regra, e hoje já não se fala de outro modo. O que é uma forma de diminuir a política e exacerbar o combate.

Como toda a gente ouviu e leu nas notícias, no passado sábado António Costa anunciou que a partir desta quarta-feira não haveria feiras no conjunto dos concelhos mais afectados pela pandemia.

Como toda a gente ouviu e leu nas notícias, os feirantes não gostaram da medida e começaram a fazer-se ouvir. Diziam que vendendo na rua tinham, até, mais condições de higiene e circulação de ar do que os vendedores dos centros comerciais. Argumentaram que era por não terem um lóbi de interesses que ficavam prejudicados.

Como toda a gente ouviu e leu nas notícias, esta terça-feira o Governo recuou e disse que afinal, dentro de certas regras determinadas pela DGS (aliás como nos outros casos) e com autorização devida da Câmara Municipal respectiva, poderia haver feiras. Os feirantes acharam que foi feita justiça e ficaram mais felizes com a medida.

Ora aqui entra o ponto: o verbo recuar remete para conceitos de avanços e retrocessos. Mas nem a medida anunciada avançava para lado nenhum, nem a sua retirada constitui qualquer recuo.

Por que motivo se diz, então, ‘O Governo recuou’ ou ‘Costa recuou’? Porque a ideia instalada das relações políticas são as da maximização do combate, da ‘coragem’ (haverá palavras melhores, concedo), do enfrentamento, e não as do diálogo e das cedências mútuas.

Pessoalmente, acho que os feirantes tinham bastante razão nas suas demandas. E quero crer que a maioria dos governantes e o primeiro-ministro acharam o mesmo. Porque eram lógicas e porque a medida não tinha qualquer benefício claro, provocando, em contrapartida, malefícios óbvios.

Nesse sentido, seria bom interrogarmo-nos em que consiste a política; falo da política a sério, e não da politiquice costumeira. Em primeiro lugar, na busca do bem comum, algo que, em pluralismo, tem diversas leituras não condizentes. Ao contrário do belicismo com que hoje é tratada (os chefes de partidos têm ‘tropas’; delineiam estratégias; esmagam os adversários, avançam e recuam), a política é uma arte pacífica de diálogo que, em sociedades abertas, pretende alcançar o maior número de pessoas. Mais, muitas vezes, a boa política pretende conciliar interesses diversos e não opor “classe contra classe”, como definia o leninismo, ou raça contra raça, como os fascistas, ou nós e eles, como todos os totalitarismos.

O Governo, perante os feirantes, não recuou. Podíamos ter escrito e dito que o Governo deu razão ao ponto de vista dos feirantes; que reconsiderou a medida, depois de ter mais dados sobre a situação em que ficariam milhares de pessoas; que acedeu aos pedidos dirigidos por autarcas, que explicaram a pessoas que, no geral, vivem em grandes urbes, como os governantes e os burocratas da Administração Pública, a importância das feiras em terras mais pequenas; que tinha, enfim, arranjado uma solução que contenta os feirantes e previne o perigo de contágio que qualquer aglomeração pode ter.

Mas isto seria retirar a combatividade de que depende a radicalização para que as políticas tenderam nos últimos tempos. A esquerda mais esquerda e a direita mais direita veem-se obrigadas a arranjar inimigos externos e internos, para justificarem as suas propostas. E o triste é que aqueles que poderiam combater esta deriva, que só pode terminar mal, demitem-se de o fazer por várias razões, que podem ser válidas do seu estrito ponto de vista, mas nenhuma delas eficaz para a construção de um terreno comum de serenidade, onde propostas possam ser discutidas e adotadas, sem que tenha de haver vencedores e vencidos, chefes e tropas, recuos e avanços.

Tanta gente preocupada com as palavras do politicamente correto, e quase nenhuma empenhada em contrariar esta deriva que, também ela, tem a ver com palavras.

HENRIQUE MONTEIRO – Expresso

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