domingo, 15 de novembro de 2020

O factor humano

1 - Em devido tempo, quando Gonçalo Ribeiro Teles foi homenageado nos seus 80 anos, tive ocasião de escrever sobre ele aquilo que pensava: que Portugal tinha para com ele uma imensa dívida de gratidão — a qual, nunca tendo sido reconhecida, ouvindo o que ele dissera durante décadas, se transformara numa obrigação pública de pedir-lhe perdão. Porque Gonçalo Ribeiro Teles arrastou a sua silenciada razão durante 40 anos em que teve razão antes de tempo, a tempo de ser escutado ou ainda a tempo de atalharmos os disparates trágicos que fizemos por o não ter escutado. Tivéssemo-lo feito, algures durante esses 40 anos, e Portugal seria hoje um país incrivelmente mais equilibrado, mais sustentável, mais viável. Mas, no fundo, creio que ele próprio, após os anos iniciais de liberdade em que tudo parecia novo e possível, nunca mais terá alimentado grandes ilusões. Após a sua passagem pela política, nesses anos iniciais, da qual nos deixou as duas leis estruturantes do ordenamento do território — a da Reserva Agrícola Nacional (RAN) e a da Reserva Ecológica Nacional (REN), desde então meticulosa e paulatinamente retalhadas pelos sucessivos governos —, ele terá compreendido, com amargura, que estava a pregar no deserto. É verdade — e isso fazia parte da sua extraordinária personalidade — que o seu optimismo e entusiasmo, quase infantis, nunca esmoreciam, mas, no seu íntimo, creio que não alimentava grandes ilusões sobre o caminho que Portugal iria escolher. A relação fundamental entre ambiente e agricultura, que ele tão exuberantemente defendia e explicava, seria desdenhada, como coisa utópica e sacrificada aos interesses de poderosos lóbis; a terra, como superfície sensível, insubstituível e dona das suas regras, adequadas aos recursos naturais existentes e à sabedoria dos que sabiam amá-la e cultivá-la, seria vandalizada pela agricultura intensiva e predadora de recursos, nas mãos de gente que não conhece e não ama a terra, mas apenas cultiva as regras dos subsídios europeus e a ambição do lucro rápido; e o ambiente seria sacrificado a cada passo pelas sempre inadiáveis e inquestionáveis exigências da indústria turística e os seus infalíveis projectos PIN — que hoje, face à pandemia e à queda a pique do turismo, nos revelaram a que ponto a aposta suicida numa economia monotemática, de nenhum valor acrescentado e de preços crescentemente desvalorizados, nos deixou mais expostos à crise que nenhum outro país.

Mas tudo isso, tudo o que o Gonçalo Ribeiro Teles foi tentando dizer e ensinar, exigia três coisas a que os portugueses são sabidamente avessos: informação, reflexão e paciência. E com nenhuma dessas três coisas se satisfaz o povo, com nenhuma delas se ganham eleições. Portanto, trataram de ir condecorando o Gonçalo e fazer tudo ao contrário do que ele dizia. Sabiam que ele tinha razão, mas punham-lhe uma medalha ao peito, aliviavam assim a consciência e seguiam para eleições. Desgraçadamente, é assim que se governa hoje em dia, e a culpa é recíproca: de governantes e de governados.

Mas o Gonçalo era um senhor, continuava sempre a sorrir e a tentar explicar-lhes coisas evidentes por si, mesmo sabendo que ninguém o iria escutar. Estou a ouvi-lo: “Estás a ver, Miguel, esta moda dos girassóis é um disparate. Plantam-nos porque há um subsídio, mas depois nem sequer os colhem porque o subsídio é só para o plantio. Desde quando é que se semeia o que não se vai colher?” Aposto que morreu a sorrir, como sempre o encontrei. Um sorrido de gratidão pela infinita beleza que viu na natureza durante 98 anos de vida, e a que prestou homenagem desenhando jardins que nos encantam e ensinando-nos coisas que todos devíamos aprender. E um sorriso de tristeza pela nossa infinita estupidez e ingratidão.

2 - Apesar de tudo, tivemos um Ribeiro Telles. E um Mário Soares e um Ramalho Eanes e muitos outros e outras cuja enumeração agora seria extensa, mas que, em vários momentos da nossa vida em liberdade, me deixaram confortado por ser português. Apesar da facilidade com que botamos abaixo qualquer um que nos queira governar, apesar da sempre pronta acusação de corrupção que reservamos para os que estão em cima — em contraste com a benevolência que reservamos para quem está numa autarquia perto de nós —, tivemos sempre gente de que nos podíamos orgulhar enquanto governados e nunca descemos ao ponto de conviver sem nojo com personagens abaixo do mínimo de decência aceitável. E nunca como hoje, quando, olhando à nossa roda e vendo a categoria de gente com que outros povos são servidos, isso é tão evidente.

Quando penso que uma democracia de 328 milhões de cidadãos, cuja Constituição começa com as solenes palavras “We, the people...”, está agora suspensa de um psicodrama indecoroso e humilhante causado por um Presidente que não aceita o resultado das eleições e que luta para que o Supremo Tribunal — de que um número suficiente de juízes escolheu pessoalmente e para este efeito — mande rasgar os votos necessários para transformar uma derrota numa vitória, percebo como pode ser afinal ténue a linha que separa a liberdade da tirania, a decência da falta de vergonha. O que se está a passar nos Estados Unidos, embora não fosse de todo imprevisível, ultrapassa, porém, tudo aquilo que seríamos capazes de adivinhar que gente decente conseguisse aceitar. O espanto não é que Donald Trump, os filhos e o genro, ou gente da lavra de um Giuliani ou de um Mitch McConnell, líder do Senado e homem de inabaláveis princípios voláteis, se prestem a dar ao mundo a imagem dos Estados Unidos como um país de Terceiro Mundo, com um Presidente-ditador de opereta, que só aceita os resultados de eleições se as ganhar e só abandona o palácio à força. O que espanta é que o Partido Republicano aceite ser aterrorizado, chantageado e tornado escravo de um touro enraivecido que há muito já deu sinais evidentes de não se preocupar com os interesses do povo que governa, mas apenas com os seus interesses próprios, exacerbados por um egocentrismo e um narcisismo doentios.

Benevolentemente, poderíamos dizer que Donald Trump é um caso clínico, de tal forma o seu comportamento social é doentio. Mas isso seria benevolência a mais: o que ele é verdadeiramente é um caso humano, na sua absoluta desumanidade e crueldade — um homem capaz de ordenar a separação das mães e dos filhos, bebés e crianças, capturados e internados em campos de concentração por terem atravessado a fronteira sul clandestinamente, ou capaz de friamente preferir deixar morrer 240 mil americanos (20% das vítimas mundiais de covid, num país que apenas tem 4% da população mundial), para não prejudicar a economia, o seu maior trunfo eleitoral. Mas, de novo, o que é verdadeiramente aterrorizador é pensar que nada disto era desconhecido. Mesmo que o tivesse querido, Donald Trump nunca teria conseguido disfarçar aquilo que é a sua bestial natureza. E foi sabendo-o que mais de 71 milhões de americanos votaram nele: porque gostam de ser governados por alguém assim. E é por isso que o papel do Partido Republicano é nesta hora absolutamente decisivo para o futuro da democracia americana. Entalados entre um Presidente disposto a tudo, incluindo um golpe de Estado constitucional para se manter no poder, e uma multidão de apoiantes fanatizados, incitados pelas redes sociais a não acreditarem em nada que não nas “verdades alternativas” que Trump lhes serve, os congressistas republicanos têm pela frente uma escolha clara: porem-se ao lado dos seus interesses eleitorais a curto e médio prazo ou porem-se ao lado da Constituição. Deixarem-se levar pela turba ou cumprirem o papel que lhes cabe numa democracia representativa, a tão desprezada função de serem uma elite. As elites em que sempre assentaram as democracias e as nações civilizadas.

Nero contra Roma. Eis o ténue fio da navalha em que está suspensa, nos dias que correm, a democracia nos Estados Unidos da América. Era previsível, mas, apesar de tudo, não deixa de ser impressionante. Tudo isto é, afinal, tão frágil e tão dependente de uma coisa tão simples: o factor humano! E ainda há quem defenda que não são os líderes que escrevem a História!


Miguel Sousa Tavares – Expresso

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