Questões muito bem colocadas, de difícil compreensão, para mim.
LAURENCE REES - INTRODUÇÃO
“Os meus pais tinham opiniões muito firmes relativamente a Adolfo Hitler. Ambos viveram a guerra — e o irmão do meu pai morreu nos comboios do Atlântico — e por isso pensavam que Hitler corporizava todo o mal. Mas lembro-me de pensar, quando era criança, que, se Hitler era o Diabo em forma humana, como conseguiu que tanta gente levasse a cabo os seus desejos? De certa maneira é uma pergunta em que tenho continuado a pensar desde então, e à qual procuro responder nesta obra. À primeira vista, Adolfo Hitler seria o mais improvável líder de um Estado sofisticado no coração da Europa. Incapaz de amizades normais, incapaz de debates intelectuais, cheio de ódio e de preconceitos, desprovido de qualquer verdadeira capacidade para amar, e «solitário»1. Indubitavelmente, era, «enquanto figura humana, lamentável»2. Contudo, desempenhou o papel mais importante em três das mais devastadoras decisões jamais tomadas: a decisão de invadir a Polónia, que levou à Segunda Guerra Mundial, a decisão de invadir a União Soviética, e a decisão de assassinar os judeus. Mas Hitler não criou todo este horror sozinho, e a par das suas mui-tas insuficiências pessoais possuía sem dúvida grandes poderes de per-suasão. «Toda a minha vida», disse memoravelmente em 1942, «pode ser resumida neste meu esforço incessante de convencer os outros.»3E conheci muitas pessoas que viveram este período que confirmaram esse juízo de valor. Ao serem pressionadas para revelar a razão pela qual achavam tal estranha figura tão convincente, apontaram uma miríade de factores, como as circunstâncias da época, os seus medos, as suas esperanças e por aí adiante. Mas muitos também descreveram simples-mente o forte sentido de atracção que sentiam por Hitler — algo que muita gente atribuiu ao seu «carisma».
Mas o que é ao certo o «carisma»? A palavra tem raízes gregas que significam uma graça ou um favor conferidos pelos deuses, mas o carisma, tal como hoje usamos a palavra, não é um dom «divino» mas «de valor neutro»4 — tanto pessoas desagradáveis como pessoas sim-páticas o podem ter. O significado original também implica que o carisma é uma qualidade absoluta que existe — ou não — num indivíduo em particular. Mas o apelo carismático de Adolfo Hitler não era universal. Apenas se apresentava no espaço que existia entre ele e as emoções da sua audiência. Duas pessoas podiam conhecer Hitler ao mesmo tempo, e uma podia achá-lo carismático e a outra podia achá-lo um tolo. A nossa compreensão contemporânea do conceito de «carisma» inicia-se com o trabalho do teórico social alemão Max Weber, que escreveu sobre «liderança carismática»5 na viragem do século xix para o século xx. Embora ele escrevesse muito antes de Hitler se tornar chanceler da Alemanha, o seu trabalho continua a ser relevante para todos aqueles interessados no estudo do nazismo em geral e de Hitler em particular. De um modo crucial, o que Weber fez foi estudar a «liderança carismática» como um tipo específico de governo — e não como uma qualidade pessoal que uma estrela pop pode possuir ao mesmo nível de um político. Para Weber, o líder «carismático» deve ter um forte elemento «missionário» e é, quase, uma figura religiosa. Os seguidores de um tal líder procuram mais do que apenas impostos mais baixos ou melhores cuidados de saúde; buscam objectivos mais latos, quase espirituais, de redenção e salvação. O líder carismático não pode existir confortavelmente no interior de estruturas burocráticas normais e é motivado por um sentido de destino pessoal. Nestes termos, Hitler é o arquétipo do «líder carismático». Em particular, penso que é difícil subestimar quão importante é compreender que o carisma se cria numa interacção entre indivíduos. E, neste contexto, a minha capacidade de conhecer e questionar pessoas que atravessaram este período extraordinário tem sido de enorme vantagem. Ao escrever este livro, tive a boa fortuna de ter acesso a uma fonte primária única — as centenas de entrevistas com testemunhas e perpetradores que realizei para o meu trabalho como documentarista histórico ao longo dos últimos 20 anos. Apenas uma pequena fracção.
deste material foi alguma vez publicada, pelo que a grande maioria dos testemunhos citados neste livro surge aqui impressa pela primeira vez. Tive o enorme privilégio de poder viajar pelo mundo e conhecer estas pessoas — das que trabalharam de perto com Hitler às que cometeram crimes em prol dos seus objectivos, das que sofreram às suas mãos às que finalmente ajudaram a destruí-lo. Tive também a sorte, depois da queda do Muro de Berlim, de ser um dos primeiros a visitar os antigos países comunistas da Europa de Leste e gravar entrevistas sinceras e honestas sobre o nazismo com pessoas que viveram atrás da Cortina de Ferro. O que aí me foi dito foi muitas vezes chocante e surpreendente ao mesmo tempo.Beneficiei também muito das profundas discussões que tive com muitos dos maiores historiadores académicos do mundo — material que reuni para o meu site pedagógico WW2History.com — e também ao estudar informação de fontes de arquivo e de outras fontes mais tradicionais. Mas encontrar e entrevistar pessoas que conheceram Hitler e que viveram sob o seu jugo foi o que me deu as melhores pistas sobre a natureza do seu apelo. (Os testemunhos presenciais devem ser trata-dos com considerável cuidado e já escrevi noutros locais sobre os muitos testes e salvaguardas que usámos ao recolher este material.)6Também aprendi muito ao estudar filmes de arquivo da época — em particular, imagens dos discursos de Hitler. Há 20 anos, ao começar o meu trabalho sobre o nazismo, pensei que o «carisma» de Hitler seria de algum modo muito visível nas imagens. Contudo, tornou-se rapidamente claro — pelo menos para mim — que Hitler, hoje, é decidida-mente pouco carismático em filme. Mas, claro, é precisamente essa a questão. Não senti nada porque não pertenço àquela época — e, ainda por cima, não sou alguém à partida predisposto a acolher o apelo caris-mático de Hitler. Não tenho fome; não me sinto humilhado após ter per-dido uma guerra; não estou desempregado; não tenho medo da violência generalizada nas ruas; não me sinto traído pelas promessas quebradas do sistema democrático; não vivo aterrorizado com a possibilidade de as minhas poupanças se desvanecerem num colapso bancário; e não quero que me digam que toda esta confusão é culpa de outra pessoa. É também importante declarar enfaticamente que as pessoas que aceitam o «carisma» de um líder, não estão, de forma alguma, «hipnotizadas».
Sabem exactamente o que se está a passar, e continuam a ser responsáveis pelas suas acções. O facto de alguém decidir seguir um líder carismático não pode ser posteriormente usado como álibi ou desculpa. Contudo, Hitler não era, é preciso que se diga, apenas um líder com carisma. Também usou as ameaças, o crime e o terror para alcançar o seu objectivo, e tento mostrar como estes aspectos se encaixam na história da sua ascensão ao poder e do seu posterior governo. Existiam certamente algumas pessoas que cumpriam os desejos de Hitler apenas por medo, tal como outras nunca o terão achado carismático de todo. Por fim, embora este trabalho seja inteiramente sobre Hitler, acre-dito sinceramente que tem relevância contemporânea. O desejo de ser liderado por uma personalidade forte durante uma crise, a ânsia da nossa existência em ter um qualquer propósito, a quase-veneração de «heróis» e de «celebridades», o anseio pela salvação e pela redenção: nada disto mudou no mundo desde a morte de Hitler, em Abril de 1945.Os seres humanos são animais sociais. Queremos pertencer. A vida, de outro modo, pode ser uma experiência muito fria. E só ao compreender como aqueles que procuram o poder nos tentam influenciar, e como participamos muitas vezes activamente na nossa própria manipulação, é que podemos entender os perigos que enfrentamos se deixarmos o racionalismo e o cepticismo de lado e, em vez disso, depositarmos a nossa fé num líder com carisma.”
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