sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Defender os patrões, esmagar os grevistas.

Para os comunistas, não é concebível que as lutas dos trabalhadores se possam travar fora da esfera de influência da CGTP – isto é, do próprio PCP. Quem vier de fora é um inimigo.

A esquerda deixou de defender os pobres dos bairros operários. A greve demonstra-o: eles estão órfãos de representação política – maltratados por patrões, esmagados pelo Estado, rejeitados pela voxpop. Os motoristas de transporte de matérias perigosas ganham 630 euros de salário-base. Com as horas extraordinárias, o valor pode chegar até perto dos 1000-1200 euros. Mas, para tal, trabalham entre 12 e 14 horas diárias, com um horário semanal que ronda as 60 horas ou mais. É praticamente o dobro do horário da função pública (35 horas). Acresce que, por necessidade profissional, passam noites longe da família, com o consequente desgaste pessoal e os custos financeiros que isso representa – e cujas despesas as empresas têm de devolver (e que artificialmente inflacionam as folhas de vencimento). Empresas que fazem parte de negócios multimilionários e extremamente rentáveis, como é o caso das petrolíferas. Ou seja, estes motoristas estão no fundo da cadeia alimentar do mercado de trabalho. São mal pagos embora trabalhem muito mais horas do que o normal; não gozam de prestígio social embora sejam fundamentais para o funcionamento da economia e dos serviços públicos; têm uma profissão que implica riscos (transportam “matérias perigosas”) embora isso não se reflicta adequadamente na sua remuneração; fazem parte de negócios multimilionários privados embora sejam remunerados abaixo dos padrões nacionais. E, à conta de uma greve que visa melhorar as suas condições de trabalho (como seria expectável numa greve), ficaram sozinhos contra o país.

Esse isolamento tem uma enorme relevância política, em particular na esquerda, o campo ideológico onde seria de esperar uma adesão imediata à sua causa. Repare-se: é difícil imaginar um caso que encaixasse melhor na histórica defesa dos direitos dos trabalhadores que os partidos clássicos da esquerda lideraram. E, no entanto, a esquerda parlamentar tem sido um feroz adversário dos grevistas. No PCP, os sindicalistas que lideram a greve não têm a sua legitimidade reconhecida e são institucionalmente diabolizados pelo comité central. Na prática, não é concebível aos comunistas que as lutas dos trabalhadores se possam travar fora da esfera de influência da CGTP – isto é, do próprio PCP. Ou seja, esta sua instrumentalização da “luta de classes” é uma manifestação de clubite: os direitos dos trabalhadores só se defendem através da CGTP – e quem vier de fora é um inimigo. Mas há mais. Também no BE o posicionamento é contraditório: após silêncios, hesitações e mais silêncios, lá surgiram umas críticas discretas ao governo. Um tacticismo envergonhado e simples de explicar: os bloquistas não querem hostilizar o PS e também não querem apoiar quem está do lado impopular, embora reconheçam qual o lado certo. Tudo metido na balança, a direcção do BE vendeu-se por uns votos.

“Votos” será, porventura, a palavra-chave na estratégia do PS. Em vésperas de eleições, o governo intrometeu-se na negociação entre patrões e trabalhadores – e escolheu o lado dos patrões, cuja associação (ANTRAM) tem como porta-voz um militante do PS que este governo já nomeou por duas ocasiões. Consequentemente, o primeiro-ministro sacou dos mísseis para matar moscas, recorrendo a uma brutalidade retórica sem igual e exibindo toda a musculatura do Estado com serviços mínimos preventivos, requisições civis (em menos de 24 horas de greve), detenções de grevistas e uns telegénicos gabinetes de crise, que colocam ministros sucessivamente no horário nobre dos telejornais – e fizeram desaparecer tudo o resto: onde está a oposição? É possível que o exercício de autoridade valha votos e aproxime o PS da meta da maioria absoluta. Mas a que custo? O direito à greve ficou semi-arrasado – Cavaco Silva teria inveja. De resto, igualmente preocupante e como bem chamou à atenção Mafalda Pratas, o governo colocou militares e recursos do Estado ao serviço das empresas privadas, com muitas horas de trabalho “gratuitas” que neste momento estão a beneficiar financeiramente essas empresas – sem que essa subsidiação tenha sido explicada pelo primeiro-ministro. Os patrões, que durante tanto tempo se têm recusado a aumentar os baixos salários dos seus motoristas, só se podem estar a rir: acabaram financiados pelos contribuintes.

Haverá muitas lições a retirar destes dias de greve. Sobre a instrumentalização do Estado para a propaganda eleitoral, como fez o PS. Sobre as consequências das decisões do governo para o exercício do direito à greve. Sobre a inexistência de oposição política e o consequente desequilíbrio do regime. Mas a mais importante lição de todas é esta: a esquerda portuguesa abandonou o que ainda tinha de pureza ideológica e deixou formalmente de representar os mais pobres, a “classe trabalhadora”, nomeadamente os colarinhos azuis e quem vem dos bairros operários. São esses os grevistas que nestes dias ficaram sozinhos. Fazem parte de uma população tradicionalmente de esquerda, mas que PS-PCP-BE esqueceram, porque não encaixa nas causas identitárias da esquerda moderna, nem se revê no progressismo social das causas fracturantes. E porque também não tem peso eleitoral (por falta de organização) que justifique uma palavra de conforto nos discursos de PCP, BE e PS, sempre apontados a grupos de eleitores (como os funcionários públicos). Com Marcelo a jogar no tabuleiro da reeleição e uma direita que perde por falta de comparência, estes portugueses de colarinho azul, como esta greve demonstra, são os verdadeiros órfãos de representação política do nosso tempo – maltratados por patrões, esmagados pelo Estado, rejeitados pela voxpop. Não importa se têm razão (e alguma até têm), já que ninguém os ouve.

(Onde é que já vimos isto? Por exemplo, nos EUA, no desligamento dos democratas em relação à cintura industrial americana, que ajudou a eleger Donald Trump por se rever na sua campanha anti-sistema e no seu apelo à produção made in USA – e para descarregar a raiva. Não faltam provas de que o vazio de representação política é facilmente preenchido por populismos, incluindo na radicalidade das acções sindicais – afinal, quem se sente ignorado pelo sistema terá maior inclinação para furar as regras deste. Eis um aviso que os partidos têm sucessivamente ignorado, à esquerda e à direita: quem semeia ventos geralmente colhe tempestades.)

Alexandre Homem Cristo – Observador

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