sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Sardinhas em escabeche de gasóleo

E isto sem falar dos duzentos litros de gasóil, claro. A gente até tivemos de deitar ao lixo mais de metade da mobília da sala, para caber. Agora a mesa de jantar são três tábuas apoiadas em quatro jerricans.

Ó pá! Isto só a mim! Atão esta coisa da greve lá dos motoristas de coisas perigosas afinal não durou quase nada! Andou aqui a gente cheia de cuidados para no fim, isto quase nem valer a pena...

E agora o que é que eu vou fazer às setenta latas de grão-de-bico, às cento e vinte latas de atum (sangacho, vá), aos trinta quilos de arroz, aos vinte quilos de lacinhos, aos quinze quilos de esparguete, às setenta e cinco latas de cavala de cebolada, às vinte e quatro latas de chispalhada (entretantos, já comi uma), às quarenta latas de pêssego em calda, aos doze quilos de bacalhau corrente demolhado e congelado, aos dez quilos de açúcar, às trinta morcelas, às quarentas alheiras, às sessenta e às cinco chouriças de sangue que tenho na despensa? E aos dezanove quilos de pernas de frango, às cento e quarenta e sete postas de pescada, e à vaca desmanchada que tenho ali na arca? E mais aos quatro porcos que mandei desmanchar ao homem do talho, e que já vêm a caminho?

E isto sem falar dos duzentos litros de gasóil, claro. A gente até tivemos de deitar ao lixo mais de metade da mobília da sala, para caber. Agora a mesa de jantar são três tábuas apoiadas em quatro jerricans. E mais um de cada lado da cama, a fazer de mesinha de cabeceira, com uma Nossa Senhora de Fátima e mais um candeeiro por cima. Sujeitos a pegar fogo a isto tudo.
A única coisa que eu já tenho mais ou menos ideia do que vou fazer é aos duzentos rolos de papel higiénico. Deus me perdoe.
Isto porque a gente, como qualquer bom português, quando vamos ao mar a gente avia-se em terra. Somos um povo muito previsto.
E de modos que, assim que a gente ouvimos dizer na televisão que a gasolina ia acabar, claro que a gente fomos logo à bomba, para acabar mais depressa, como pertence. Não fosse ela depois acabar.
A gente por acaso não é que precisássemos de ir a lado nenhum, graças a Deus, mas imagina que a gente de hoje prá manhã precisávamos?
Olha, por exemplos: a gente vamos abalar hoje prá terra, por via da Páscoa. Por acaso vamos de comboio, mas eu cá sou franca, fico muito mais descansada deixando cá o carro com o depósito atestado. Não vá ele querer ir a algum lado.
Estava ainda agora um homem a dizer na televisão que as bombas de gasolina são abastecidas de três em três dias. E que, como a greve também durou três dias, se a gente só tivéssemos gastado a gasolina do costume, nem se tinha dado por ela. Ora eu não sei que contas é que este homem fez. Cá nas minhas contas, três e três dá seis. Com mais três são nove. E nove vezes nove é dezoito. Portanto, faz todo o sentido a gente irmos a correr para as bombas atestar o carro.
E aos supermercados. Atestar o carrinho. É que isto depois afeta tudo! Isto está tudo ligado!
Eu fui logo direitinha ao atum, que é sempre o que desaparece primeiro nestas coisas. Que eu pensei: «então se isto é uma greve dos motoristas de cargas perigosas, também deve de meter ao barulho os que transportam as latas de conserva». Que são mercadorias muito perigosas. A gente se abre aquilo mais ao calhas está sujeita a ficar sem um dedo. Que a folha parece uma faca.
E fui dormir de véspera para a porta do Líder, que isto o primeiro milho é prós pardais, não é para as donas-de-casa calonas.
Ainda pensei em ir a seguir às urgências do hospital, não fosse eu dar uma queda em casa e depois não haver ambulâncias. Mas acabei por passar a tarde toda a andar às voltas de autocarro, não fosse a Carris ficar parada no fim-de-semana.
A minha nora, que é uma mulher tão precavida que vale por duas, é que a sabe toda! Ainda na terça-feira se despediu da perfumaria onde ela estava empregada, que é no Fripór, não fosse os barcos ficarem sem combustível e depois a desgraçada já não podia ir trabalhar. Agora diz que vai pra França, para a apanha da fruta.
O português é mesmo assim: há uma crise, e a gente aproveita logo para refazer a vida.
É esta a força dos sindicatos, conseguem mesmo parar o país. Quer dizer, parar não é bem a expressão. Conseguem pôr o país a correr. Neste caso, para uma bomba de gasolina.
Graças a Deus, acabou tudo bem. Agora é só esperar mais quinze dias para as gasolineiras conseguirem recuperar do estrago que a gente lhes fez. Mas também, como gastámos o resto do ordenado em gasóil, nem vamos dar conta que agora é que já não há mesmo.
Este país a funcionar é um relógio suíço! Isto não é para qualquer um!
E os camionistas lá conseguiram o que queriam, parece. Com uma greve que, feitas as contas, a única coisa que fez foi desviar três aviões para irem abastecer a Sevilha. Nestas coisas, a realidade não interessa para nada. O que importa é que ficámos com uma ideia do que isto podia ter sido. E podia ter sido o fim do mundo em cuecas.
Olha, no fim do mundo em cuecas fiquei eu com a casa. Que isto agora tenho a despensa que parece o Banco Alimentar Contra a Fome em dia de peditório nacional.  Não tenho sorte nenhuma.
Mas como eu sou uma dona de casa daquelas à antiga, já ando a ver aqui na Google uma receita qualquer que leve lasanha, ovas de pescada, maisena e pinhão sem casca. Que é o que eu cá mais tenho, derivados a ser o que estava em promoção.
Isto tudo bem regado a gasolina, já se sabe.
Eu depois conto como é que ficou.
Com licença

por A Porteira

Eu e os políticos - As memórias de uma porteira

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