Transição energética no cu dos outros, para mim é refresco.
José Diogo Quintela
Pela reacção histérica de quem se lançou às bombas de gasolina com miúfa de ficar empanado, é óbvio que os portugueses não estão prontos para os desafios que o futuro energético traz.
Em que ocasião é que os portugueses reflectem sobre o estado do mundo e concluem que tudo aquilo que defendiam é, afinal, uma parvoíce pegada? Cuido que, para cada pessoa, há uma situação específica que apela à viracasaquice, um tinir de campainha que espoleta o trocatintismo, um momento charneira a partir do qual nada volta a ser igual. Pode ser na altura de entregar o IRS. Ou, então, quando se pagam as compras, no supermercado. Às vezes é a ouvir um deputado, no telejornal. Para cada um, o seu momento Judas, de trair aquilo em que se acreditava. Já se percebeu que, para a maioria dos portugueses, essa grande epifania ideológica dá-se na bicha da bomba de gasolina, durante um pânico pré-greve. É aí que descobrem que, afinal, são reaccionários. E até gostam.
O repetitivo pára-arranca, o rádio em surdina, as buzinadelas impacientes, a voz metálica que sai da bomba e diz “pode atestar”, a
mulher ao telemóvel a ameaçar divórcio se não tiverem combustível para ir de férias, tudo junto é uma algaraviada que dá, até ao mais pacato pai de família, vontade de invadir a Polónia. Na impossibilidade de montar uma campanha militar dessa envergadura, sobra passar-se a achar que os camionistas são uns filhos da mãe abusadores, a greve um atentado ao Estado de Direito e as leis laborais uma maçada que urge rasurar.
Para este nosso compatriota, que se orgulha de nunca ter votado à direita, os trabalhadores – que sempre apoiou – agora são madraços gananciosos, e os patrões – que habitualmente despreza – são empresários probos, pilares da comunidade, que importa apoiar. Uma estação de serviço na A2 é a nova cervejaria de Munique. Quer o português veraneante, quer o alemão belicoso, gostam muito dos seus tanques.
O curioso é que os portugueses que não admitem que camionistas lhes cortem o acesso ao gasóleo são os mesmos que admitem (e aplaudem) que o ministro do Ambiente queira fazer a mesma coisa. Há qualquer coisa de sedutor na voz cava de Matos Fernandes, que faz tremer as pernas de quem quer atestar e ouve em sussurro: “Larga a mangueira, maroto. Anda mas é fazer transição energética comigo”.
Pela reacção histérica de quem se lançou às bombas de gasolina com miúfa de ficar empanado, é óbvio que os portugueses não estão prontos para os desafios que o futuro energético traz, já aí ao virar da esquina. (Só não chegou ainda porque vem movido a energia solar e, como dobrar uma esquina é uma manobra complicada, o futuro energético está a carregar as baterias). Felizmente, a próxima geração é mais resiliente e está preparada para enfrentar as limitações que aí vêm. O meu filho, por exemplo, vai-se estar a borrifar para tudo isto. Tem 10 meses e a sua brincadeira predilecta é olhar para candeeiros e vê-los a acender e a apagar. Atenção, ele não se excita com a luz, ele delira é com a intermitência. Encanta-o a incerteza. “Será que a luz volta?”. Quando for adulto, vai conviver bem com apagões.
(Aliás, o meu filho daria um óptimo cidadão da Venezuela. Além deste jogo, que treina para a falta de energia, os seus jogos preferidos são: “O bebé não está cá! Ai, está, está!”, que prepara para os sequestros por parte da polícia política; e aquele jogo de pedir ao bebé para apontar o pé, o nariz ou a boca, um jogo que normaliza a denúncia que, por vezes, uma pessoa tem de fazer, para se safar a si e à família. Quem aponta o nariz logo à primeira, sabe apontar um vizinho, se for preciso. Fossem todos como o meu filho e a URSS ainda existia).
Por uma daquelas coincidências que costumam acontecer quando o cronista precisa de forçar a correlação entre dois temas, para ter o que escrever, enquanto Portugal receia ficar sem gasolina, Greta Thunberg prepara-se para ir a Nova Iorque pedir para que Portugal, entre outros países, fique sem gasolina. Greta Thunberg é a escandinava mais famosa a fazer a travessia do Atlântico Norte, desde que, em 985, Erik, o Vermelho, partiu da Islândia para colonizar a Gronelândia. Nessa altura, apesar de não haver automóveis, fábricas ou aviões a emitirem CO2, vivia-se o chamado Período Quente Medieval, com temperaturas parecidas com as actuais, e era possível viver na Gronelândia com relativo conforto – ou, tratando-se de nórdicos, relativo hygge.
Há quem, maliciosamente, diga que, se Greta Thunberg quer viajar com o mínimo possível de emissões, então devia ir a pé. O que é estúpido. Não se consegue ir a pé até à América. Agora. Porque já houve uma altura em se conseguiu. Foi assim que, há cerca de 20 mil anos, o homo sapiens migrou para a América através do Alasca, que na altura estava ligado à Sibéria. No fim da última Idade do Gelo, o nível das águas era bastante mais baixo do que na actualidade, o que permitiu que os caçadores entrassem na América atrás de mamutes. O mamute era parte importante da dieta do paleolítico, assim chamada por ser a dieta que se comia no paleolítico. Isto passou-se, mais uma vez, numa altura em que a Terra tinha um clima diferente, apesar de não haver qualquer influência humana. Esquisito. O que nos conduz à questão filosófica: se a temperatura se alterar, mas não houver crianças a faltarem às aulas, as redes sociais fazem barulho? Observador
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