sexta-feira, 5 de julho de 2019

Cronicas de RAP, na Visão

Inspira, expira 29.03.2019


Agora somos tão civilizados que precisamos de aprender a executar aquelas tarefas que os animais fazem instintivamente, como respirar e dormir. Ora, não é o meu caso. Eu continuo a ser um animal – como acho que se nota.
Havia aquela anedota de uma loira que vai ao cabeleireiro. Pedem-lhe para tirar os auscultadores do walkman mas ela diz que não pode ser, caso contrário morre. A esteticista diz-lhe que não seja tonta, tira-lhe os auscultadores e, segundos depois, a loira cai morta. A esteticista põe os auscultadores e ouve uma voz que diz: inspira, expira, inspira, expira. Hoje, a anedota não faz sentido. Já não há walkman, já não há loiras em anedotas e já quase não há anedotas. E, mais importante, já não é extravagante não saber respirar. Há uma boa quantidade de livros, vídeos e até cursos destinados a ensinar a respirar – o que significa que toda a gente precisa de aprender a respirar. E não só: também ninguém sabe bem como dormir. Há dias estava a ver um inovador produto que promete ensinar a respirar melhor para que o consumidor durma melhor. Trata-se de um disco que se coloca na mesa-de-cabeceira. Ele projecta uma luz para o tecto e a gente tem de ir respirando ao ritmo a que a luz brilha. A cadência da luz vai diminuindo e, por isso, a nossa respiração também. E então adormecemos mais facilmente. Estive a segundos de encomendar o produto, que custava 49 libras, até que me ocorreu que eu era a loira da anedota. Talvez neste ponto eu deva fazer algumas declarações de princípios. Eu não acho que exista uma relação entre a cor do cabelo de uma pessoa e a sua capacidade intelectual. Não discrimino entre loiras, morenas ou ruivas. Tenho amigas loiras e acho que elas devem poder casar e adoptar crianças. Possuo um papel azul de 25 linhas selado e reconhecido por um notário que comprova tudo o que acabei de dizer. Mas não queria ser a loira da anedota porque ela é burra ao ponto de não saber respirar. É só isso.
No entanto, hoje ninguém parece saber respirar. Nem dormir. Eram coisas que se nascia a saber fazer, como qualquer animal. Mas agora somos tão civilizados que precisamos de aprender a executar aquelas tarefas que os animais fazem instintivamente, como respirar e dormir. Ora, não é o meu caso. Agradeço a ajuda da sociedade para respirar e dormir mas cá me hei-de arranjar. Eu continuo a ser um animal – como acho que se nota. E não é circunstância que me entristeça, atenção. Posso ser um bicho selvagem, mas poupei 49 libras.


Porco selvagem é o senhor . 22.03.2019


O facto de cada história acabar com um banquete entusiasmava muito o pequeno alarve que eu era
Entre as notícias mais interessantes dos últimos tempos conta-se a que revela que Portugal sofre de uma praga de javalis. A existência de javalis costuma ser vista como uma curiosidade adorável, uma plácida ocorrência bucólica. Nunca tendo comido javali, eu já lhe sentia o sabor, por causa dos livros do Astérix. O facto de cada história acabar com um banquete entusiasmava muito o pequeno alarve que eu era. Com os livros dos Cinco era a mesma coisa. Eu não fantasiava muito com as aventuras dos primos que capturavam uma quadrilha de bandidos que estavam escondidos na torre do farol para roubar os planos de um submarino que o tio tinha concebido. Estava mais interessado nas lancharadas que eles faziam, e que me pareciam preparadas com cuidado e gosto. O combate ao crime não me interessava tanto. Portanto, acolho com entusiasmo a notícia de que vai haver debate parlamentar sobre javalis. Tento imaginar como é que a assembleia se dividirá ideologicamente a propósito do javali e tenho dificuldade. Tirando o PAN, que em princípio é a favor da praga, nenhum partido produziu, que eu tivesse visto, pensamento coerente sobre o javali. Na pior das hipóteses, o debate servirá para que os deputados se agridam com insultos inovadores. Por exemplo, proferindo frases tais como: “Na opinião do meu partido, é fundamental acabar com estes porcos selvagens”, enquanto se aponta disfarçadamente para outro grupo parlamentar.
Seja como for, é uma discussão que acompanharei com interesse. Trata-se de um problema difícil: por um lado, a praga de javalis constitui uma ameaça; por outro, é importante tratar dela com alguma humanidade. O destino a dar aos javalis nunca será plenamente satisfatório, sobretudo tendo em conta as duas grandes saídas profissionais que costumam apresentar-se aos javalis portugueses: ou acabam no prato, com batatas fritas, ou num programa de televisão de domingo à noite, a escolher uma noiva. Ambas são bem pouco dignas.Talvez a primeira seja, apesar de tudo, menos má.

É mais fácil um camelo passar pelo buraco de um rico 15.03.019


Ricardo Salgado é o maior lesado do BES. Foi quem mais perdeu com a queda do banco. Era o Dono Disto Tudo e deixou de ser. Deve ser terrível perder tanto
Posso estar a citar com pouco rigor, mas sei que há uma frase bíblica sobre a improbabilidade de acontecerem determinadas coisas a ricos. Às vezes, temos a sensação de que eles são altivos e não têm sentimentos, mas há várias provas do contrário. Ainda esta semana, Ricardo Salgado deu uma entrevista em que confessava: “Consigo dormir, mas não durmo totalmente descansado.” E acrescentou ainda: “Penso todos os dias nos lesados. Todos os dias. E sofro com isso.” O facto de ninguém se ter comovido documenta mais uma vez a profunda crise de valores que a nossa sociedade atravessa. Um homem anuncia em público que, sendo embora capaz de dormir, não consegue fazê-lo totalmente descansado e ninguém se condói, não se ouve um lamento, nada. Além disso, declara que guarda todos os dias um bocadinho para pensar nos lesados do banco que dirigia e nenhum deles foi capaz de lhe agradecer o gesto. É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um lesado manifestar compaixão pelo homem que o lesou. Muito feio. E pouco cristão.
A verdade é que Ricardo Salgado é o maior lesado do BES. Foi quem mais perdeu com a queda do banco. Era o Dono Disto Tudo e deixou de ser. Deve ser terrível perder tanto. Ficou reduzido a apenas umas mansões com vista para o mar e, provavelmente, alguns milhões de euros em contas offshore. Ninguém fala neste drama. Olha-se para ele e nota-se a falta de sono – e a magreza. Desde que o BES colapsou, parece ter perdido uns 200 gramas. Talvez 250. Já dá entrevistas a órgãos de comunicação que não controla através da publicidade, e tudo.
Enfim, quando se cai é com estrondo. E o pior de tudo é que, ao contrário dos outros lesados do BES, Ricardo Salgado tem de conviver diariamente com o homem que o lesou. Vai fazer a barba e lá está o outro, no espelho. Segue-o para todo o lado, o provocador. É inevitável que Salgado se irrite quando o vê a almoçar em bons restaurantes de Cascais, ou a ver televisão na sala de estar do seu palácio, ou simplesmente a andar em liberdade. Os outros lesados do BES não têm de assistir a isto. Mas Ricardo Salgado dorme com o homem que o lesou. Não admira que não consiga dormir totalmente descansado.

Intoxicação de notícias sobre intoxicação . 08.03.2019


Só há uma coisa pior do que pecar: é pecar mal. A partir do momento em que se estabelece que o pecado vai ser cometido, então é para pecar a sério. Para transgressõezinhas, não me convidem. Ou é ou não é
Parece que Portugal está de tal maneira contaminado por glifosato que todos os portugueses têm no organismo vestígios do herbicida que a Organização Mundial da Saúde classifica como provável carcinogéneo. Já se dizia que o frango tinha hormonas, a vaca tinha antibióticos, o peixe tinha mercúrio e agora tudo tem pesticidas. Confesso que é um grande alívio. Quando tudo está infectado, não há nada a temer. Qualquer estratégia para evitar o mal é fútil. Portanto, há que aproveitar. É como com o pecado. Só há uma coisa pior do que pecar: é pecar mal.
A partir do momento em que se estabelece que o pecado vai ser cometido, então é para pecar a sério. Para transgressõezinhas, não me convidem. Ou é ou não é. Essa ética do pecador chega agora à comida. Acabaram as preocupações, as estratégias para evitar certos alimentos, os cuidados com a proveniência dos ingredientes: tudo é mau e estamos todos perdidos. Nunca estive tão feliz.
O apocalipse nutritivo dá-me uma fulgurante alegria. Ingiro refeições ricas em colesterol? Sim, e depois? Seja como for, estou todo carcomido por dentro. Fará bem fumar um charuto depois do almoço e outro depois do jantar? É provável que não, mas isso só seria preocupante se eu não tivesse o organismo atafulhado de coisas tóxicas. Não se nega um cigarro a um moribundo, e eu estou a morrer de glifosato há décadas.
Uma vez li um texto de Marina Keegan, uma escritora, dramaturga e jornalista que era intolerante ao glúten. Dizia que, se soubesse o dia em que iria morrer, encomendaria uma última refeição de pizzas, hambúrgueres, donuts e todos os alimentos com glúten que não tinha podido comer. Keegan morreu com 22 anos, num desastre de automóvel, apenas cinco dias depois de se ter graduado magna cum laude na Universidade de Yale. Não pôde cumprir o seu desejo.
Eu acabo de perceber que estou todo podre. Os meus últimos dias são estes. Venha a picanha com antibióticos, a cabidela com hormonas, o sargo com mercúrio, tudo acompanhado de grelos salteados com glifosato. Agora é que eu me vou divertir a sério.

Nove em cada dez secretários de Estado recomendam . 01.03.2019


Olá, eu sou o secretário de Estado da Energia e sinto-me fresco, seguro e natural porque consumo os produtos da EDP
Quando se soube que o secretário de Estado João Galamba tinha pedido aos cidadãos da Guarda para recompensarem os investimentos da EDP na região consumindo mais energia, fiquei chocado. Eu também já fiz publicidade a grandes empresas e não creio que este seja o método mais adequado. Segundo o Jornal de Notícias, Galamba disse mesmo: “Continuem a consumir. Consumam mais.” Ora, se é certo que todas as manobras publicitárias visam apelar ao consumo, também é verdade que esse apelo será mais eficaz na mesma medida em que consiga ser subtil. Cristiano Ronaldo não encara a câmara para dizer simplesmente às pessoas que consumam mais champô. Primeiro, gaba as qualidades do produto no combate à caspa, à comichão e à oleosidade. E deixa subentendido que são as virtudes do champô que lhe permitem acelerar com mais alegria no carro descapotável em que se encontra. Receio, por isso, que a intervenção de João Galamba não tenha sido tão persuasiva como a direcção de marketing da EDP desejaria.
Uma estratégia clássica, mas sempre boa, é a recomendação. A figura escolhida para protagonizar o anúncio revela ser consumidora do produto e aconselha o público a fazer o mesmo: “Olá, eu sou o secretário de Estado da Energia e sinto-me fresco, seguro e natural porque consumo os produtos da EDP.”
Mais interessante ainda é evidenciar o modo como o produto anunciado nos mudou a vida: “Eu sou João Galamba, e há apenas quatro ou cinco anos era um blogger obscuro. Mas entretanto comecei a consumir a energia da EDP, e agora sou secretário de Estado. Obtenha também o sucesso consumindo os produtos EDP.”
Outro modelo de reclame é aquele em que se conta uma pequena história na qual o produto desempenha um papel decisivo. Por exemplo: “Ontem mesmo solicitei o aumento de potência contratada à EDP e assim pude lavar, secar e passar a minha camisola da EDP, que trago sempre vestida por baixo do fato.”
A última sugestão é arriscada mas, por isso mesmo, chama muito a atenção. Trata-se de usar psicologia invertida e desdenhar do público: “A energia da EDP é, de facto, muito boa. Mas, se não quiser, não consuma. Mesmo que todos os cidadãos da Guarda passem um ano sem acender uma única lâmpada, a EDP já ganha mais do que o suficiente, só com os chamados CMEC.

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