É sempre uma chatice quando
pessoas de quem gostamos
escrevem textos de que não
gostamos, e é ainda uma
chatice maior quando nos
sentimos moral e
profissionalmente obrigados a
comentá-los em público. Se este
meu artigo sair mais coxo do que é
habitual, dêem-me o desconto: eu
conheço, gosto e admiro
intelectualmente Maria de Fátima
Bonifácio. Infelizmente, não gosto
nem um bocadinho do artigo
“Podemos? Não, não podemos”,
não reconheço nele a mulher que
admiro, nem percebo como pôde
ele ser intelectualmente sustentado
com tantas generalizações de cair o
queixo — e que, sim (custa-me
muito dizer isto), entram mesmo
no campo do racismo.
Porque é que não fico calado,
então, e escrevo sobre outra coisa
qualquer? Porque sinto que não
devo, nem quero participar numa
jogatana esquerda-direita nesta
matéria, como alguns já se preparam para fazer, com a claque
pró-Bonifácio a defender que ela
disse grandes verdades que
ninguém tem a coragem de
verbalizar, e a claque anti-Bonifácio
a garantir que o seu artigo é
incitação ao ódio e merece
perseguição criminal. Seria fácil
para mim ignorar o texto original e
atirar-me às reacções descabeladas
que já ouvi por aí (José Eduardo
Agualusa, homem habitualmente
ponderado, escreveu que Bonifácio
e o PÚBLICO deveriam responder
“perante a justiça portuguesa”, por
amor de Deus), mas sendo uma
estratégia fácil também seria
cínica, até por causa de uma
palavra que foi invocada e me é
muito cara: cristandade.
Maria de Fátima Bonifácio afirma
no seu artigo que nem africanos
nem ciganos “fazem parte de uma
entidade civilizacional e cultural
milenária que dá pelo nome de
Cristandade”. Não só isso é
factualmente errado (estima-se que
40% dos africanos sejam cristãos e
os ciganos tendem a adoptar a
religião dos países onde se
instalam), como a própria história
da cristandade é, desde a sua
fundação, baseada no
universalismo e no desejo de
abertura a todos, sejam eles
brancos, amarelos ou vermelhos, lusitanos, africanos ou ciganos. A
discussão entre Pedro e Paulo
sobre se os gentios, por não serem
circuncidados, poderiam ser
cristãos, foi ganha por Paulo no
século I — ou seja, quase dois mil
anos atrás. Faz algum sentido
retomar essa discussão hoje em
dia, assumindo que há uns que
podem partilhar os valores da
cristandade (os circuncidados do
século XXI), e outros, coitados, que
não podem?
Tal como Maria de Fátima Bonifácio, não acredito que todas as culturas se equivalham.
Acredito no progresso; acredito
que há culturas superiores a
outras; acredito que o
multiculturalismo assolapado
desembocou numa guetização
nefasta em certos países
ocidentais; acredito que a cultura
que produziu os Direitos
Universais é infinitamente
superior ao wahhabismo ou às
tradições ancestrais de mutilação
genital feminina; e acredito que
existe demasiada complacência
em relação ao tratamento das
mulheres nalgumas comunidades.
Só que pular da crítica a uma
determinada cultura para a crítica
de todos os indivíduos que a
integram é um salto inaceitável,
precisamente por ir contra os
valores que Maria de Fátima
Bonifácio quer defender. A razão é
simples: não é possível acreditar
numa matriz cultural que diz que
podes ser salvo até ao último
suspiro (Lucas 23, 39-43) e depois
pregar que há grupos de gente
condenada a ficar às portas da
civilização que tanto consideras.
Isso seria, mais uma vez, querer
proteger a cristandade traindo os
melhores valores que ela tem para
nos oferecer.
João Miguel Tavares - Jornalista
jmtavares@outlook.com
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