Os políticos preocupam-se muito com as beatas no chão, mas nada com a riqueza ortográfica do português.
À memória do Vasco Graça Moura.
Se pensam que este artigo é duro, imaginem o que ele escreveria.
Prometi a mim próprio escrever um ou dois artigos por ano contra o chamado “acordo ortográfico”.
E fiz essa promessa para não pecar do mesmo mal da inércia, que é a principal força que mantém este acordo vivo. Na verdade, são duas forças conjugadas, uma, a inércia, e a outra, o desprezo pela língua portuguesa. São duas forças muito poderosas e, conjugadas entre si, ainda mais poderosas são. Mas são forças negativas, que misturam preguiça, indiferença, incultura, desprezo pela memória, e irresponsabilização pelo desastre e fracasso diplomático que representou o acordo.
O resultado é que todos os anos o português escrito em Portugal se afasta do do Brasil, de Angola, Cabo Verde, onde o acordo ou não existe ou não é aplicado. Ficamos com um português de ortografia pobre, menos resistente a estrangeirismos e menos expressivo, em nome de um objectivo falhado: o de fazer a engenharia da língua de forma artificial. E não me venham com o “pharmácia” e farmácia, porque o contexto deste acordo inútil é muito diferente dos anteriores, porque foi feito num momento em que tudo aconselharia prudência em mexer numa língua cujas ameaças principais não vêm da falta de unificação ortográfica, mas da correlação entre a perda de dinamismo social e a riqueza da língua, ortografia, léxico, gramática e oralidade. E aqui Portugal fica sempre a perder com o Brasil.
E não me venham também com o facto de ser apenas um acordo na ortografia, que não afecta a oralidade, nem a riqueza lexical.
Afecta e muito, porque lemos com os olhos, e para lá dos olhos é a imagem das palavras que fica, e uma coisa é ser-se “espetador” e outra ser-se espectador, apesar da inútil dupla grafia. Por detrás do espetador, como diria o Napoleão diante das pirâmides, mais de dois mil anos de civilização contemplam os infelizes do acordo, sem pai nem mãe latina e grega. Mas quem é que quer saber disso?
Este é um dos casos em que fico populista e atiro em cima “deles”, os políticos. “Eles” preocupam-se muito com as beatas no chão, mas nada com riqueza ortográfica do português, na sua memória, nas palavras antigas que são o solo que pisamos. E é por isso que o acordo serve a ignorância, dos políticos do PS e do PSD e do CDS, que deixaram à suposta geração designada “a mais preparada de sempre”, um dos mitos com que alimentamos a nossa mediocridade colectiva. Sim, uma geração que faz cursos universitários sem ler um livro, e que fala com
a expressividade dos SMS e do Twitter numa linguagem gutural e pobre, que o acordo ajuda a consolidar.
O Big Brother de Orwell eliminava do vocabulário todos os anos algumas palavras.
Para ele, a linguagem patológica dos escassos caracteres do Twitter, onde não passa um argumento racional, mas passa com facilidade um insulto, seria um ideal a conseguir. Falar com vocabulário variado e rico, algo que só se tem lendo, dá poder. O Big Brother queria retirar poder e não tenho dúvidas de que gostaria do acordo ortográfico, para eliminar a memória das palavras vindas dos dias de cor e passar ao cinzento da farda.
Na verdade, é um problema maior do que a ortografia, é o problema da cultura e da democracia, onde todos os dias os parâmetros de mínima exigência são baixados, pelos pais, pelos professores, pelas instituições e, como o peixe apodrece pela cabeça, pela nonchalance dos nossos políticos pelas coisas importantes. E se há comparação que me honra é com o Velho do Restelo. Na verdade, o Velho do Restelo é uma das personagens mais interessantes e criativas d’Os Lusíadas. E tinha razão.
E deixem-me lá as excepções. A regra é que os mais velhos traíram a memória da língua, e os mais novos vivem bem no mundo do Big Brother. O tecido cultural do país, agredido pelo acordo, não é feito de excepções mas sim da regra, e a contínua enunciação das excepções só serve para esconder a regra.
Pode-se ser culto sem saber quem era Ulisses, ou Electra, ou Lear, ou Otelo ou Bloom? Não, não pode. Como não se pode ser culto sem perceber a inércia, ou o princípio de Arquimedes. E, no caso português, sem ter
lido umas frases de Vieira, ou saber quem eram Simão Botelho, Acácio, o sr. Joãozinho das Perdizes, ou Ricardo Reis, ele mesmo. E não me venham dizer que sabem outras coisas. Sabem, mas não chega, são menos, são diferentes, e não tem o mesmo papel de nos fazer melhores, mais donos de nós próprios e mais livres. Sim, livres, porque é de liberdade que se está a falar.
José Pacheco Pereira - Historiador. Escreve ao sábado no Publico
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