terça-feira, 23 de julho de 2019

E se a Constituição ficar nas mãos da esquerda?

Quando olhamos para os números das sondagens, todas elas catastróficas para a direita, costumamos fazer as contas em termos de maioria absoluta para o PS, centrando a nossa atenção no próximo executivo. Contudo, para além da discussão sobre quem vai governar o país nos próximos quatro anos, e a forma como o irá fazer, há um outro número a que convém começar a prestar a devida atenção: 66,7%.
As sondagens mais recentes dão o PSD a uma distância de mais de 15 pontos percentuais do PS; mas dão mais do que isso — dão também a esquerda (PS, Bloco, PCP e PAN) próxima de somar os 67% que colocarão dois terços dos lugares no Parlamento à sua disposição. Ou seja, pela primeira vez na história da democracia portuguesa, podem acontecer duas coisas, ambas trágicas para o equilíbrio do sistema político tal como o conhecemos:

1) A direita ficar à margem de uma revisão constitucional.

2) O Tribunal Constitucional ficar com uma supermaioria de juízes escolhidos em exclusivo pela esquerda.

Dir-se-á que António Costa não está interessado em promover uma revisão constitucional à boleia da esquerda radical, até porque o eleitorado que o elegeu não compreenderia isso — não estou assim tão certo, mas suspendamos essa hipótese por hoje. Concentremo-nos antes em algo que já poderia ser bastante mais tentador para António Costa na era pós-“geringonça”: nomear os próximos juízes do Tribunal Constitucional através de negociações com a esquerda, em vez de negociar, como até agora sempre aconteceu, à direita.
O Tribunal Constitucional é constituído por 13 juízes. Dez são eleitos pelo Parlamento (com maioria de dois terços), três são cooptados pelos seus pares. Todos estão sujeitos a um mandato único de nove anos. Neste momento, existe paridade perfeita entre esquerda e direita: cinco juízes propostos por partidos de esquerda; cinco juízes propostos por partidos de direita; três juízes cooptados, um mais à direita, outro mais à esquerda, outro mais ao centro (isto não significa, naturalmente, que as suas votações sejam “ideologicamente puras”, como vimos na altura da troika).
Na próxima legislatura (2019-2023), e segundo as datas que estão inscritas no site do Tribunal Constitucional, seis desses 13 juízes terão de ser substituídos, quatro dos quais já em Julho de 2021: Fernando Vaz Ventura, eleito por proposta do PS;
Maria de Fátima Mata-Mouros, eleita por proposta do CDS; Maria José Rangel de Mesquita, eleita por proposta do PS; e Pedro Machete, cooptado. Um quinto juiz (Lino Ribeiro) e um sexto juiz (João Caupers), ambos cooptados, sairão em 2022 e 2023, respectivamente.
Entre os sete juízes que prolongarão o seu mandato para além da próxima legislatura, há quatro que foram propostos pelo PS e três pelo PSD.
Como diria António Guterres, é fazer as contas. Se a direita ficar reduzida a um terço dos votos, e se a esquerda unida decidir tomar o Tribunal Constitucional de assalto, é teoricamente possível que em 2023 existam dez juízes do TC oriundos da esquerda, e apenas três propostos pela direita. Sim, eu sei que Portugal não é os Estados Unidos, e que o Constitucional não tem o peso, nem a tradição, do Supremo. Mas recordo que o Tribunal Constitucional foi a grande paixão da esquerda durante o Governo de Passos Coelho. Não foi por acaso. O estado calamitoso da direita portuguesa não vai custar apenas a cabeça a Rui Rio — pode muito bem vir a custar uma alteração radical nos equilíbrios políticos do país.

João Miguel Tavares - Jornalista
jmtavares@outlook.com

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